Até meados de julho de 2023, a definição do verbete madrasta no Google era “aquilo de que provêm vexames e dissabores em vez de proteção e carinho”.

Hoje, depois de um intenso processo iniciado por Mariana Camardelli, fundadora do movimento Somos Madrastas, a palavra passou a ser descrita simplesmente pelo que é, sem juízo de valor: “mulher em relação aos filhos anteriores da pessoa com quem passa a constituir sociedade conjugal”.

Nem boadrasta nem mãedrasta, é madrasta mesmo: expectativas e realidades desse tipo de maternar

Família de dois adultos e 3 crianças.

Mas ainda existem muitos desafios, especialmente nas relações entre os adultos, que envolvem esse tipo de maternar.

O estereótipo de madrasta má e a luta pela mudança no dicionário

Duda Machado é diretora de conteúdo e gestora de comunidade no Somos Madrastas. Ela conta que, há cerca de quatro anos, Mariana Camardelli foi chamada para fazer uma palestra sobre sua entrada na madrastidade e as experiências advindas disso quando, ao preparar o conteúdo para a apresentação, se deparou com a definição pejorativa do dicionário Oxford, que fornece os dados para o Google.

Pesquisando a palavra “padrasto”, no entanto, Mariana viu que a definição era bem diferente, ou melhor, era apenas o que deveria ser mesmo: “homem que se relaciona com uma pessoa que já tem filhos”.

Na época, o Somos Madrastas ainda não existia como é hoje, já que ao longo dos dois primeiros anos o movimento foi se entendendo e consolidando. Justamente quando esse entendimento já estava mais claro, o projeto deu início ao abaixo-assinado pela mudança da definição no dicionário, o que aconteceu efetivamente este ano.

“Ainda existe uma definição pejorativa lá, mas não é mais a primeira que aparece, não é mais o primeiro contato com a palavra que alguém que faça essa busca vai ter”, conta Duda.

A mudança pode até parecer pequena diante das dificuldades e muitas vezes da invisibilidade que as madrastas encontram na sociedade como um todo, mas foi um passo importante para começar a reverter o estereótipo que atinge essas mulheres.

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Origens da conotação negativa

Duda Machado afirma que, quando o Somos Madrastas começou a ter mais visibilidade, foi importante fazer um mergulho no contexto histórico do termo para entendê-lo melhor e, também, ter mais competência para falar sobre o assunto.

“Sem dúvidas, as animações da Disney ajudaram a difundir a ideia da madrasta má, mas quando olhamos para os contos que inspiraram as animações, estamos falando de histórias que foram escritas usando a figura da mãe”, explica.

Segundo Duda, conforme a Igreja Católica foi passando a exercer cada vez mais poder, se inserindo e dominando os campos de acesso à cultura e ao lazer, em um papel de validação do que poderia ou não ser consumido pela sociedade, houve um confronto.

“A figura da mãe para a igreja é algo sagrado. Então, não poderíamos mais ter histórias sendo difundidas com mãe tendo esses comportamentos, que seriam julgados como desumanos, errados. É aí que entra a figura da madrasta”, explica.

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Além do estereótipo, a legislação

Duda destaca que, por muito tempo, não existia também a lei do divórcio, então os casamentos eram para sempre. Assim, a figura da madrasta e do padrasto passaram a existir em um contexto literal de substituição de um cônjuge que havia morrido.

“Por isso, quando a esposa morria, era permitido aos homens que ficaram viúvos se casar novamente. Entendia-se que esse homem não tinha condições de cuidar dos próprios filhos, e que por isso precisava de uma mulher que fizesse isso, que cuidasse das crianças da casa”, explica Duda.

Compreender esse processo histórico é muito importante para assimilar verdadeiramente de onde vem esse estereótipo imposto às madrastas. “Não é que existiu uma história real de uma madrasta que foi uma pessoa muito ruim, muito maldosa, e por isso todo esse imaginário foi criado. Em algum momento transformaram a madrasta em vilã e depois foi só ladeira abaixo”, comenta Duda.

A figura do padrasto, por outro lado, tem uma aura heróica. Um homem tão desprendido e bondoso que passa a cuidar dos filhos de sua amada como se fossem seus. Quanta diferença, não é?

O reconhecimento da madrastidade como um tipo de maternar

Nem boadrasta nem mãedrasta, é madrasta mesmo: expectativas e realidades desse tipo de maternar

Menino beijando mulher mais velha no rosto, demonstração de afeto.

É inegável que houve um avanço no diálogo e na disposição de compreender as origens do estereótipo da madrasta má, mas ainda há muito trabalho a ser feito e espaço para caminhar. Hoje já podemos ver grandes marcas que consideram a ideia do recasamento e das múltiplas configurações familiares, e que incluem o papel da madrasta em suas campanhas mais importantes, como a de Natal.

Mas, no dia a dia, dentro das casas e das escolas, ainda são necessárias muitas mudanças. Boa parte se deve ao fato de que a madrastidade é, sim, uma maneira de maternar, mas ainda não é entendida assim por muita gente. Um dos exemplos são os termos “boadrasta” ou “mãedrasta”, usados inclusive por madrastas para se referir às mulheres que fogem ao estereótipo.

Se por um lado existe a ideia de que mulheres que são mães têm algo de inerentemente bom dentro de si, por outro existe esse conceito de que toda madrasta é má e egoísta. “Esse encontro forma um muro difícil de transpor, mas é preciso olhar para as madrastas como mulheres que maternam, sim, filhos que não são biologicamente delas”, diz Duda.

Inclusive, o “ma”, de madrasta vem de mater, de materna, e não de malvada. “É claro que existem madrastas que escolhem não se envolver nos cuidados diários dos filhos da pessoa com quem se relaciona, mas no Somos Madrastas nós incentivamos que essas mulheres façam isso. Primeiro, para ocupar esse lugar de madrasta e, segundo, porque a nossa causa é a causa das crianças, então ter mais um adulto para cuidar e ser mais uma fonte de amor não é, de nenhuma maneira, algo ruim”, afirma Duda.

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Ventos de mudança

Como existem inúmeros arranjos e configurações familiares, existem também mulheres que se tornam madrastas de bebês que ainda estão na barriga, e outras que são madrastas de enteados que já estão na vida adulta, com vinte e tantos, trinta anos.

São muitos cenários para considerar uma só maneira de exercer a madrastidade, ter uma só regra ou um só viés de olhar. E, em todos eles, existe o poder de escolha da mulher sobre o quanto deseja se envolver, e de que maneira.

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No caso das crianças, Duda reforça que o posicionamento do movimento é de respeitar a escolha individual da mulher, e também de explicar que conviver com um adulto que deliberadamente não cuida, não está interessado e não se preocupa com ela provoca um rasgo com consequências que serão descobertas apenas na vida adulta.

“Enteados não são opcionais, não existe ‘meu companheiro ou minha companheira às vezes tem filhos, às vezes não’. Reconhecer isso, e fazer um esforço na tentativa de ter famílias mais unidas e estruturadas é por onde a gente se guia para acolher e orientar essas mulheres”, explica.

Mulheres essas que já são mais de 70 mil e estão presentes em todo o Brasil e em vários países, como Reino Unido, Portugal, Espanha, Austrália e Estados Unidos. Para elas, Duda finaliza dizendo que não é preciso amar como filho, pode amar como enteado mesmo. “Não é um amor menor. Não precisa querer que chame de mãe, pode chamar de madrasta mesmo. Não é uma palavra feia”, conclui.

Estante Quindim

Conheça 3 obras que retratam famílias diversas e um novo olhar para as formas de maternar:

Se as coisas fossem mães (escritora Sylvia Orthof, ilustradora Ana Raquel, editora Nova Fronteira)
Se as coisas fossem mães, de Sylvia Orthof
Drufs (autora Eva Furnari, editora Moderna).
Drufs, de Eva Furnari
A árvore generosa (autor Shel Silverstein, editora Companhia das letrinhas)
A árvore generosa, de Sheldon Allan Silverstein