A chamada fase do rubicão, ainda desconhecida de muitas famílias, é um importante marco do desenvolvimento infantil. Caracterizada pela transição entre o final da primeira infância e o começo da pré-adolescência, essa etapa da vida é associada a muitas mudanças físicas, emocionais e, principalmente, comportamentais nas crianças.
Mas de onde será que surgiu essa nomenclatura? De acordo com os especialistas, a fase do rubicão recebe esse nome em referência a um momento em que o imperador Júlio César atravessou o Rio Rubicão, na Itália, indicando com esse ato que tomaria um caminho sem volta. Justamente por isso, passou a ser associado ao fim da infância e começo da pré-adolescência.
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O que é a Fase do Rubicão?
Segundo Marcela Pisa, psicóloga clínica com experiência em psicologia hospitalar infantil e especialização em terapia familiar, a fase do Rubicão é aquela que separa a primeira infância do início da pré-adolescência.
Nesse marco, que em geral acontece em torno dos 9 ou 10 anos de idade, podemos começar a perceber as crianças não tão crianças assim. “Elas começam a deixar de brincar tanto, de obedecer sem questionar, e de ter os pais como as únicas vozes que escutam, como as únicas pessoas importantes”, explica Marcela.
As mudanças físicas na fase do rubicão
Além das mudanças de comportamento, os aspectos físicos também podem passar por transformações. Enquanto nas meninas tende a surgir o chamado broto mamário, nos meninos costuma haver aumento do tamanho dos testículos.
Em ambos, ocorre o surgimento de pelos pubianos e também nas axilas, o aparecimento de odor corporal, um aumento de oleosidade na pele e talvez até algumas espinhas. “Ainda não é uma adolescência, nem mesmo uma pré-adolescência, mas são sinais importantes de que esse corpo de criança não vai permanecer assim”, complementa a psicóloga.
Como ajudar os filhos diante de tantas mudanças?
Todas essas mudanças internas e externas, naturalmente, vão mexer com as emoções da criança e da família. Nesse período, é esperado que temas que até então não despertavam muita atenção ou curiosidade passem a ser fonte de perguntas e muitos questionamentos. A sexualidade é um deles.
Por isso, se até então talvez fosse possível responder uma dúvida usando algum elemento meio mágico como parte da história, isso tende a mudar. Marcela Pisa conta que seu filho, um dia, disse que sabia que para nascer seu pai tinha colocado uma sementinha em sua barriga, e que já tinha entendido também como tinha saído de lá. Mas, agora, ele queria saber como a sementinha foi parar lá.
“Eles passam a ter curiosidade sobre coisas que antes aceitavam sem muito questionamento. Não aceitam mais o ‘porque sim’ ou ‘porque não’ como resposta, querem argumentos, querem entender as coisas, e passam a contra-argumentar também. Então, esse é um momento muito importante para reconstruir esse vínculo com os filhos de maneira a tornar um outro tipo de conversa possível. Os pais precisam se preparar para ter essas conversas de outra maneira, com uma outra abordagem, inclusive pensando nos anos futuros”, orienta Marcela.
insegurança, ansiedade e inadequação: como lidar?
Ainda que as transformações físicas e comportamentais sejam mais evidentes, é preciso considerar, também, que essas crianças que não são mais tão crianças assim estão passando por uma verdadeira ebulição interna. Ainda que alguns demonstrem mais, com alterações de humor, portas batendo e pedidos para ficar sozinhos, os tidos como mais quietinhos também estão com a cabeça a mil, tentando entender o que está acontecendo.
São muitas dúvidas, muitos sentimentos e emoções para processar, ao mesmo tempo em que a opinião de amigos, colegas e professores passam a ser tão importantes quanto a dos pais. Daí, podem surgir sentimentos de insegurança, ansiedade e inadequação, que precisam ser trabalhados para que a criança não se sinta navegando por conta própria nessas águas tão turbulentas.
Também é comum que surjam novos medos, como o medo da morte, dos pais perderem o emprego, da violência, dentre outros. Isso acontece justamente em função de uma nova compreensão do mundo e da realidade, além da constatação de quem nem tudo é bonito, tranquilo, feliz ou justo como se pensava antes. As preocupações passam a ir bem além do núcleo familiar.
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Como falar de sexo e sexualidade com as crianças?
Um dos temas que mais desperta a curiosidade nessa fase é a sexualidade. Marcela Pisa sugere que, sempre que as crianças trouxerem dúvidas ou perguntas sobre o assunto, os pais devolvam a questão para entender do que elas estão falando, em vez de apenas supor que sabem. Questionar “o que você acha que é?” ou “o que você sabe sobre isso?” pode ajudar a delimitar até onde ir com a explicação, de acordo com a idade e capacidade de compreensão de cada criança.
A psicóloga explica também que tão importante quanto responder às perguntas é entender de onde está vindo a curiosidade, em que circunstâncias a criança ouviu a informação em questão, e o que ela entendeu do que ouviu. Sobretudo, é preciso procurar tratar sexo e sexualidade com a maior naturalidade possível, e não como um assunto proibido ou problemático.
“Normalmente, quando essas perguntas aparecem é porque elas já foram abordadas em algum lugar. Dificilmente vem do nada. Alguma coisa aconteceu na escola, na conversa com os amigos, com os primos, com os vizinhos, ou com alguém que está ali, em contato, com a criança, e que fez o assunto surgir. Por isso a importância de criar um vínculo para que a criança possa contar o que ela ouviu, mesmo que se sentindo um pouco desconfortável, porque muitas vezes os pais vão dar uma versão dos fatos e os amigos vão dar outra. E, se você não souber o que veio do outro lado, talvez as versões fiquem muito diferentes”, orienta Marcela.
As conversas sobre sexo costumam ser um momento muito temido por algumas famílias, especialmente porque muitos de nós não tiveram um canal de diálogo franco com nossos próprios pais durante a infância. No entanto, ao construir um vínculo sólido com nossos filhos, de honestidade e de confiança, é possível também falar de um jeito sincero sobre tudo, ainda que adaptando à faixa etária e compreensão de cada indivíduo.
“O melhor é a gente poder falar, entendendo qual é a pergunta da criança, e dar a resposta correta, condizente com a realidade, nos termos que cada família considera importante. Mas é muito importante falar, porque a criança vai descobrir. Hoje, muitas acabam tendo celular muito cedo, descobrem muita coisa e às vezes veem coisas que não entendem. É preciso, então, que tenham segurança para perguntar”, reforça a especialista.
O apoio dos pais é fundamental na fase do rubicão
Depois de anos sendo o centro do universo das crianças, é natural que mães, pais e cuidadores primários sintam uma grande angústia ao perceber uma fase com tantas transformações tendo início, frequentemente de maneira muito intensa.
Fazer de conta que nada mudou, ou que não tem coisas diferentes acontecendo não é a solução. É preciso que as crianças entendam que, ainda que passem a fazer algumas coisas sozinhas, de maneira mais autônoma e independente, nós continuamos ali, à disposição para auxiliar, proteger e acolher sempre que necessário. Sobretudo, é fundamental que se sintam vistas, ouvidas e acolhidas.
Como tudo o que envolve a criação de filhos, não existe uma receita pronta: é preciso calibrar as ações de acordo com a realidade de cada família. Na prática, isso quer dizer que pode ser bem frustrante comparar o que seu filho faz com outros colegas ou familiares da mesma idade. Cada criança demanda uma atenção particular.
COMO LIDAR COM O luto do fim da infância
Ver nossos filhos crescendo é um privilégio. Mas observar e, de fato, internalizar seu desenvolvimento em todas as fases – e, muitas vezes, se tornando pessoas bem diferentes daquelas que eram na primeira infância – pode trazer consigo uma sensação de luto que pode ser bem difícil para muitas mães e pais. Afinal, quem nunca se perguntou onde foi parar aquele bebê rechonchudo enquanto observava uma criança com pernas e braços compridos correndo por aí, não é mesmo?
As mudanças mais sentidas, no entanto, podem ser aquelas que transformam uma criança que outrora era carinhosa e buscava sua companhia e atenção a todo tempo em outra que prefere ficar com os amigos ou mesmo sozinha quase sempre.
A fase do rubicão, no entanto, ainda não é a adolescência, então é natural que aconteçam muitas idas e vindas no processo de crescimento desse ser que, embora maior, não custa lembrar, ainda é uma criança. Isso, de uma certa maneira, é um acalento para os pais, para que possam elaborar esse luto, autorizando, de uma certa maneira, que este filho também esteja plenamente vivenciando uma nova fase.
“As crianças passam a trazer ‘outros heróis’ além dos pais, ou seja, começam a considerar como importantes as opiniões dos amigos e de outros adultos. Pode ser um ponto difícil quando a criança descobre esse mundo que não é só a família, e passa a se encantar com outras coisas, com outros pontos de vista, com outras falas. Perder esse lugar da referência mais importante faz parte do luto dos pais”, explica Marcela.
Como a literatura pode ajudar
Os livros podem não só ajudar os pequenos leitores a entenderem pelo que estão passando, mas, também, abrir as portas para importantes diálogos com os pais. Narrativas que falam sobre o mundo, diferentes configurações familiares, problemas sociais e de relacionamentos com amigos, que podem se tornar mais conflituosos conforme as crianças vão crescendo, podem atrair a atenção dos leitores crescidinhos.
A mudança pelos gostos e interesses também se manifesta na literatura, e é muito importante não só validar as preferências das crianças mas se interessar genuinamente por elas. Então, se seu filho gosta muito de quadrinhos, mas diz que não tem paciência para ler romances, que tal apresentar a ele uma bela novela gráfica? Além disso, procure ler o livro também, para que vocês possam conversar mais profundamente sobre os personagens, seus dilemas, decisões e desafios.
E o acesso à internet durante esse período?
Sabemos que está cada vez mais comum o acesso, muitas vezes irrestritos, de crianças aos mais diversos tipos de conteúdos na internet, seja por meio de canais no YouTube ou das redes sociais. Mas o fato de as crianças estarem maiores e mais independentes não quer dizer que não precisem ser acompanhadas nesse universo, que pode ser muito rico mas também muito perigoso. Afinal, se você não deixaria seu filho sozinho em uma cidade grande, por que fazer isso na internet?
Marcela Pisa faz um alerta sobre a importância de acompanhar e monitorar as experiências, interações e pesquisas das crianças, intervindo e orientando sempre que necessário. Se antigamente cabia aos pais fazer um filtro do que chegava até seus filhos, hoje tudo está completamente disponível.
“Se antes as crianças aprendiam com os amigos, hoje elas podem aprender com absolutamente todas as fontes. Justamente por ser esse um momento em que a criança se volta mais para o mundo externo, os pais têm que permanecer muito atentos, principalmente às crianças que têm um telefone próprio e têm liberdade para usar da maneira que querem. Eles têm a curiosidade, mas não têm o discernimento”, reforça Marcela.
Com tudo isso, ainda que a fase do rubicão seja desafiadora e, por vezes, angustiante, deixe claro o quanto você ama seu filho. Demonstre com ações concretas que apoia e respeita seus interesses, e que vai estar sempre ao seu lado – especialmente enquanto ele ainda está descobrindo quem irá se tornar.
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Estante Quindim
Os livros infantis podem ser ótimos aliados para lidar com a fase do rubicão em crianças. Conheça 3 obras incríveis para ler em família!