No mês das mães é comum vermos por aí diversas mensagens, propagandas e homenagens às mães recheadas de estereótipos maternos. A mãe do comercial de margarina, a mãe mulher-maravilha, a mãe que sabe tudo. Mas de onde surgiram esses modelos? Qual é o conceito de maternidade por trás deles?
A jornalista e mãe Martha Lopes é também pesquisadora e estuda o tema da maternidade. Ela conversou com o Clube Quindim sobre seus diversos aspectos, a relação com o feminismo, questões históricas, origens e conceitos. Confira!
Clube Quindim – Como era e como é hoje a relação entre feminismo e maternidade?
Martha Lopes – O feminismo mudou muito ao longo da história, se multiplicou em muitas vertentes – são inúmeras as pautas dos movimentos de mulheres, afinal – e da mesma maneira se modificou a relação entre feminismo e maternidade. Na época em que Simone de Beauvoir lança “O Segundo Sexo”, quando temos o que chamamos de segunda onda feminista, a maternidade é vista como um determinismo biológico que destina as mulheres à procriação, e consequentemente seu abandono do espaço público e do mundo do trabalho. Em um segundo momento, desconstrói-se a ideia de que a maternidade é um defeito: o problema seria, na realidade, as relações de dominação que atribuem um significado social à maternidade.
Entre as inúmeras vertentes do feminismo, há ainda a do feminismo matricêntrico, batizado pela pesquisadora Andrea O’Reilly. Ela defende a criação de um ativismo e de uma teoria sobre maternidade, aponta que o feminismo invisibiliza as pautas das mães, e que ser mãe coloca as mulheres em um lugar de dupla opressão. Sinaliza que a maternidade deve ser um exercício mais valorizado pela sociedade, mas que não define uma mulher, assim como criar uma criança não deve ser uma responsabilidade exclusiva das mães. Também fala sobre a importância de enxergar a maternidade como múltipla, atravessada pela vivência de cada mulher e que deve ser vista de acordo com recortes raciais, étnicos, de orientação sexual, geracional e geográfico.
CQ – Qual a importância desse olhar sobre a história social da maternidade?
ML – A autora Adrienne Rich nos ajuda a olhar para essa questão. Ela enxerga a maternidade sob dois aspectos: o primeiro seria o da potência que a mulher tem de gerar uma vida, de se relacionar com essa vida, seria o poder que essa experiência tem de transformação e de vivência individual. Já o segundo aspecto é o da instituição: ao longo da história, muitas das práticas da maternidade e os mitos relacionados a ela foram sendo construídos de acordo com interesses culturais, de Estado e patriarcais. Rich fala que essa maternidade institucional impediu as mulheres de tomarem decisões diretamente relacionadas às suas vidas, aliviou os homens de assumirem sua paternidade, criou a perigosa diferenciação entre esfera privada/doméstica e pública e alienou as mulheres de seus próprios corpos, encarcerando-as dentro deles. Olhar para a construção histórica e cultural da maternidade é uma forma de desnaturalizar as suas práticas, ou seja, entender as expectativas que nos oprimem, de onde elas vêm, trabalhar para desconstruí-las e focar nossa vivência materna em uma experiência individual, que cabe a cada mulher apenas configurar como achar melhor.
CQ – Como era a maternidade antes do século 18, quando surgiu o conceito de infância?
ML – Antes do século 18, as crianças pouco conviviam com as famílias. Na Europa Ocidental, as mulheres nobres e burguesas, principalmente, enviavam seus bebês, assim que eles nasciam, para amas de leite. Quando essas crianças retornavam ao lar original, muitas vezes eram enviadas a internatos e as meninas ficavam aos cuidados das empregadas da família. A mulher desempenhava outras atividades e não tinha como a principal delas se dedicar ao cuidado com os filhos.
CQ – Você poderia trazer exemplos de prisões sociais com suas origens?
ML – Um dos principais momentos na construção histórica da maternidade é este momento de transição no século 18, que a autora Elisabeth Badinter identifica como de surgimento da romantização do amor materno. Naquele momento, havia um índice de mortalidade infantil altíssimo: muitos bebês morriam no deslocamento para as casas das amas de leite, que ficavam em zonas rurais; além disso, essas mulheres eram miseráveis, tinham que se dedicar ao trabalho na lavoura e deixavam as crianças sozinhas; também alimentavam os bebês de forma pouco higiênica, o que contribuiu para esse grande número de mortalidade infantil. Assim, nesse período, acontece quase um “infanticídio disfarçado”, como diz Badinter – a título de exemplo, na França, entre os séculos 17 e 18, mais de 25% das crianças até um ano de idade morriam; nos asilos de Paris, que recebiam crianças abandonadas, 84% delas morriam até completarem um ano de idade. O Estado passa, portanto, a se preocupar com questões populacionais pela primeira vez. Nesse contexto, começa, entre estudiosos e escritores, a criação de um conteúdo que estimula a mulher a se dedicar prioritariamente à maternidade, que afirma que o amor da mãe pelo filho é instintivo e que ser mãe é a maior fonte de prazer e realização da vida da mulher.
Nos Estados Unidos, mais ou menos nessa época, com a Revolução Industrial, as mulheres trabalhavam tanto quanto os homens, e com algum nível de autonomia financeira passam a questionar o matrimônio. Como colocam a instituição do casamento em risco, também ali começam a ser disseminadas ideias de que a mulher deve ficar em casa, confinada à esfera doméstica, como o “anjo do lar”, esse ser delicado e amoroso que se dedica principalmente à criação dos filhos – enquanto o homem habita a esfera pública, trabalha e realiza sua ação no mundo. Enfim, esses são momentos-chave na criação de uma maternidade ideal e romantizada, em que tudo é lindo e perfeito, e que se espera uma série de comportamentos específicos por parte da mãe, ideias que vemos circular até hoje e que ainda nos oprimem.
CQ – Quais as diferenças das mudanças sociais em relação à maternidade entre mulheres brancas e negras?
ML – É bem importante ter um olhar interseccional e analisar o contexto de opressão das mulheres negras. Por exemplo, uma das pautas centrais do feminismo dos anos 60 e 70 era inserir as mulheres no mercado de trabalho – no entanto, trata-se de uma pauta de mulheres brancas e privilegiadas, pois as mulheres negras sempre tiveram de trabalhar e ocuparam empregos informais.
Com relação à ideia de que as mulheres eram confinadas ao lar, a autora Angela Davis pontua algo bem interessante: para as mulheres negras escravizadas nos Estados Unidos, o lar tinha uma importância que ela chama de “exagerada”, por ser o único ambiente que a pessoa se sentia “verdadeiramente humana”. O trabalho doméstico também não recaía da mesma maneira sobre as mulheres negras naquele momento, pois não eram consideradas meras donas de casa. Davis aponta, ainda, que havia um caráter mais igualitário nas relações, já que homens e mulheres escravizados também sofriam uma opressão similar.
CQ – O que é maternidade científica?
ML – Maternidade científica é um conceito definido por alguns teóricos, e que contou muito com a imprensa feminina para se sustentar. Em momentos como o pós-Segunda Guerra Mundial, em que era preciso manter as mulheres em casa, a imprensa feminina da época edifica uma espécie de mística em torno da mãe: a autora Betty Friedan fala que a mãe podia ser responsável por tudo, por todos os problemas que uma criança ou um adulto podiam ter. A imprensa solidifica os valores que foram sendo construídos para a maternidade, e reproduz o discurso de médicos, psicólogos e especialistas que vão dizer a essa mãe o que fazer. Espera-se que ela se torne uma especialista na infância, a seguir essas orientações, vem daí a ideia de “maternidade científica”.
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