“A única maneira de ajudar de maneira consistente as crianças no uso da tecnologia é através da participação efetiva dos pais.”
Não é novidade para ninguém: as crianças estão usando mais celulares, tablets, computadores e TVs. De acordo com dados do relatório “A tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?”, da Unesco, publicado em 2023, uma pesquisa entre pais de crianças de 3 a 8 anos na Austrália, China, Itália, Suécia e nos Estados Unidos revelou que a exposição dos pequenos às telas aumentou em 50 minutos durante a pandemia. E isso tanto para o lazer quanto para a educação, por conta das aulas remotas naquele período.
Muitas famílias instituíram como lei em casa o tempo de uso indicado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e pela Academia Americana de Pediatria (AAP): até 1 hora por dia para crianças de 2 a 5 anos e até 2 horas por dia para crianças de 6 a 10 anos. E, embora seja importante ter este controle, só ter noção do tempo não basta.
É o que alerta o psiquiatra Daniel Spritzer, especialista em psiquiatria da infância e adolescência, coordenador do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (GEAT) e membro da diretoria da International Society for the Study of Behavioral Addictions (ISSBA).
Segundo ele, existem outras métricas muito importantes quando estamos falando do uso de telas pelas crianças, como o conteúdo ao qual elas têm acesso e como isso afeta especificamente cada indivíduo.
“Um tempo ‘X’ ou uma atividade ‘Y’ na internet pode ajudar uma criança, mas atrapalhar outra, dependendo do perfil dela. Isso sem falar em reforçadores que ficam na fronteira ética, como por exemplo, a questão dos likes, a reprodução automática de vídeos no YouTube e os vídeos curtos nas redes sociais”, diz ele, co-autor do livro Crianças bem conectadas – como o uso consciente da tecnologia pode se tornar um aliado da família e na educação.
“Isso gera uma gratificação que não conseguimos reproduzir em outras situações, principalmente no âmbito escolar e de relacionamento. Nem tudo pode ser tão rápido ou divertido assim e essa é uma das razões que levam as pessoas a se preocuparem com as consequências do uso das tecnologias”, enfatiza.
E antes que os pais defendam ou demonizem a tecnologia, o psiquiatra conta que o cerne da questão é estarmos atentos às crianças que estamos criando. Para além do tempo de tela, temos que observar se estamos estabelecendo prioridades corretamente na vida dos nossos filhos, onde o digital também estará presente, mas posicionado após o estudo, a atividade física, o convívio familiar, as amizades, a leitura e o sono.
A seguir, o psiquiatra, que também integra o grupo de trabalho da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o uso problemático de jogos digitais, conversou com o Clube Quindim sobre como o uso frequente de recursos tecnológicos afeta o desenvolvimento da criança e como a família pode ajudá-la a ter um consumo mais saudável de telas. Vale a leitura!
confira a entrevista completa sobre o uso de telas
O relatório da Unesco destaca impactos negativos do uso da tecnologia na educação e observamos o governo de São Paulo recuar na proposta de substituir os livros didáticos pelo material digital. Na sua experiência, qual é o impacto dessa superexposição das crianças às telas, seja na educação ou no lazer?
O uso das tecnologias digitais faz parte da infância no mundo. Sabemos hoje que mais de 90% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos têm acesso à internet, em sua grande maioria, diariamente. Então, estamos falando de uma geração que nasceu e cresceu em contato frequente com essas tecnologias. Quando falamos de uma superexposição que pode gerar danos, é importante diferenciar o que é uso problemático de outras questões que não necessariamente são um comportamento de dependência, mas que podem atrapalhar o desenvolvimento das crianças de alguma maneira.
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Mas como saber quando já passou de um limite saudável?
Quando falamos de uso problemático na linha das dependências, estamos falando de um comportamento que tem que ser intenso e, principalmente, sem controle. Que assume prioridade em relação a outras atividades essenciais e causa prejuízo. Mas isso é algo que tende a acontecer muito mais na adolescência do que na infância.
Nas crianças menores, os pais ainda têm mais recursos, proximidade e capacidade de ajudar os filhos a controlar melhor esse uso. É preciso também entender se o contato excessivo com qualquer recurso tecnológico está ocupando o espaço de outras atividades fundamentais para o desenvolvimento. E acho que é aí que entra a preocupação dos pais em poder estimular a leitura, o aprendizado e a saúde dos filhos.
E não é uma tarefa fácil, não é mesmo? Dá para minimizar os danos que surjam de uma possível superexposição?
Eu acho que isso passa também por uma ideia de como os pais vão estar atentos ao desenvolvimento dos filhos para além da tecnologia. Por exemplo, nessa questão do tempo de tela, a gente pensa: “vamos definir que é duas horas por dia” e depois disso vem o resto. O que temos que fazer é inverter essa relação e elencar prioridades. Primeiro vem o sono, a atividade física, a educação, a convivência com a família e com os amigos. Depois que tudo isso está planejado, fica mais fácil pensar qual é o papel da tecnologia, seja para educação ou entretenimento dessa criança.
Seja nos momentos de lazer ou na escola, essa presença constante de telas e plataformas digitais na rotina da criança pode potencializar um vício em telas?
A grande questão é que ficamos muito restritos em discutir somente sobre o tempo de uso. O que acontece é que, para criar uma orientação geral, como da Academia Americana de Pediatria, da OMS ou da SBP, que são órgãos extremamente sérios e preocupados com o desenvolvimento das crianças, precisamos ter evidências científicas. E é muito difícil ter qualquer outra métrica em relação ao uso das tecnologias pelas crianças que não sejam as horas. Isso fez com que se passasse a falar muito sobre o tempo de tela, mas deixando de lado outros aspectos que são muito importantes, talvez até mais do que as horas.
Quais outros aspectos deveríamos estar atentos?
Certamente existem outros parâmetros que vão muito além do tempo de tela, como a questão do conteúdo, o que está sendo assistido, jogado ou visto em redes sociais. E mais: como isso vai afetar cada criança individualmente. Um tempo ‘X’ ou uma atividade ‘Y’ na internet pode ajudar uma criança, mas atrapalhar outra, dependendo do perfil dela. Isso sem falar em reforçadores que ficam na fronteira ética: por exemplo, a questão dos likes, a reprodução automática de vídeos no YouTube e os vídeos curtos nas redes sociais.
Muito se discute sobre o quanto isso pode ser um estímulo que dificulta para a criança (e até para o adulto) conseguir parar de ver vídeos seguidos e nessa velocidade. Isso gera uma gratificação que não conseguimos reproduzir em outras situações. Principalmente, escolares e de relacionamento. Nem tudo pode ser tão rápido ou divertido assim. E isso é uma das ideias que levam as pessoas a ficarem preocupadas com as consequências do uso das tecnologias, considerando os desfechos escolares.
Em sua atuação no grupo de trabalho da OMS, o que você observa como ponto-chave em comum quando falamos em dependência de tecnologia?
Tem algumas características que podem ser destacadas. Por exemplo, isso tende a acontecer mais na adolescência e idade adulta jovem do que na infância. Meninos geralmente têm mais risco de desenvolver o uso problemático de jogos digitais, enquanto as meninas têm mais risco de desenvolver o uso problemático de redes sociais.
E, ao mesmo tempo, pode ocorrer a presença de outras questões emocionais, como depressão, ansiedade, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Hoje, todo mundo sabe que os programas são desenvolvidos para serem cada vez mais atraentes, envolventes e para manter a pessoa jogando ou rolando pra baixo na rede social vendo o conteúdo por mais tempo.
É feito para ser viciante e se a criança não tiver um adulto responsável observando, tende a ser mais difícil não ceder a estes impulsos de recompensa, não? A dependência é mais frequente em famílias onde as conexões são mais distantes?
É muito comum, por exemplo, ver pais em um restaurante e crianças com tablet ou celular. Talvez isso não seja o grande problema em si, porque as pessoas não jantam fora todos os dias. Ver isso em um restaurante não me preocupa, porque é pontual.
O problema é quando o celular vira uma companhia na hora das refeições dentro de casa. E, em vez das famílias tornarem este momento interessante, elas terceirizam para o celular essa função. Ou quando a criança não consegue se acalmar e a família, angustiada, acha que a solução é: “pega o tablet, vai jogar um pouco”. Esse uso, que acaba tendo como objetivo substituir o vínculo ou o desenvolvimento de uma habilidade, é um hábito que pode, no futuro, conferir mais risco.
Veja também: Brincadeiras fora das telas: preservar tempo e espaço para as brincadeiras é fundamental.
Diante desse cenário, você acha que já é possível ver os reflexos que o uso de telas têm no desenvolvimento das crianças? A SBP aponta reflexos como ansiedade, dificuldade de relacionamento, transtornos de sono…
São questões muito importantes, mas não diria que todas são causadas só pelas telas. São fenômenos complexos e há uma série de fatores envolvidos: culturais, econômicos e familiares. Sobre o sono, observamos crianças dormindo cada vez menos, numa tentativa de fazer cada vez mais coisas. Quanto à ansiedade e depressão, as crianças estão desde cedo lidando com a questão da comparação, inerente ao uso de redes sociais, ao mesmo tempo que passam menos tempo com as famílias.
E ainda aumenta a dificuldade de se concentrar, uma vez que a nossa capacidade de atenção é limitada e finita. Além disso, há o risco do uso excessivo de tecnologia, influenciado pela pandemia. Isso fez com que as pessoas usassem mais todos os tipos de mídias, principalmente adolescentes e aqueles que já estavam com outros problemas emocionais pré-existentes, o que aumenta o risco de desenvolver um uso problemático.
Em seu livro, você menciona que a linguagem digital é natural para a geração atual de crianças e faz parte do seu processo de aprendizado desde a alfabetização. Você acredita que existe uma lacuna geracional que leva os pais a demonizar a tecnologia, em vez de tirar proveito dela de forma benéfica?
Por um lado, esse ‘gap’ geracional sempre existiu. Neste momento, o foco está mais relacionado ao uso da tecnologia digital, mas os pais sempre estiveram perdidos em relação a como criar os filhos. Nossos pais ou avós também não tinham manual. O problema é que agora talvez tenhamos ficado mais interessados em seguir tutoriais para tudo e não existe nenhum que seja efetivo para criar os filhos. E espero que nunca tenhamos, porque não existirá um que atenda todas as famílias em seus contextos diversos. Os filhos vão mudando, crescendo e a gente vai tentando buscar outras maneiras de se relacionar com eles. Não é muito diferente do que estamos fazendo com a tecnologia.
Mas o digital assusta alguns pais que ainda não sabem lidar…
Os pais não precisam ser experts em tecnologia para conversar com os filhos sobre isso. As crianças não estão preocupadas que os pais saibam tudo para explicar para eles. Se os adultos demonstram interesse genuíno em entender a vida online dos filhos, eles explicarão com prazer. Isso fica muito prejudicado quando a gente parte de uma visão muito negativa ou muito alarmista das novas tecnologias. A ideia do nosso livro é tentar ajudar os pais a se conectarem melhor com seus filhos a partir de uma visão menos dicotômica entre o bom e o mal.
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A resposta para os medos dos pais é, então, estarem mais presentes na vida dos filhos?
É cada vez mais evidente que a presença parental é fundamental. O principal dispositivo que crianças e adolescentes usam para acessar a internet é o celular, onde é muito mais complicado monitorar. Isso adiciona uma dose extra de dificuldade. A única maneira de ajudar de maneira consistente é através da participação efetiva dos pais. No entanto, a maioria trabalha cada vez mais, tem menos tempo livre e chega em casa exausta.
É uma rotina árdua, mas ao mesmo tempo não tem como a gente abrir mão disso, pois as crianças começam a usar a internet desde muito jovens. Por isso, é preciso que essa conversa sobre o uso da tecnologia seja frequente nas famílias. Não podemos esperar até a puberdade para começar a dialogar, precisamos falar logo quando eles começam a ter contato com essas ferramentas.
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E esse contato acontece cada vez mais cedo, não, Daniel?
Existem ainda outros pais que ficam muito preocupados em ensinar as crianças a usar as tecnologias o mais cedo possível, acreditando que isso poderia ajudar a ter algum diferencial em termos de educação no futuro. E isso, na verdade, não é o que observamos. Por mais que se tenha essa pressão, não há evidências que apontem um benefício maior com a exposição precoce das crianças. Nada funciona melhor para o desenvolvimento saudável do que o tempo de convívio em família com mais qualidade e atenção.
Você acredita que vamos conseguir resolver estas problemáticas em busca de um uso mais saudável da tecnologia?
Se ao mesmo tempo que um contato muito maior com a tecnologia pode trazer alguns riscos, também tem o outro lado da história: talvez as crianças ou mesmo as famílias que estão tendo que conviver com estes desafios encontrem um equilíbrio mais saudável. Ou até mesmo a própria tecnologia possa também proporcionar o conhecimento de como lidar com essas problemáticas ao longo do tempo. E, se alguém no planeta descobrir como fazer isso, no dia seguinte todo mundo já estará sabendo. Então isso é muito diferente de como era 30 anos atrás.