Há alguns tabus quando falamos sobre infância, e a sexualidade certamente é um deles. Os medos associados a isso são muitos: de que a criança entre em contato com a ideia de sexo muito cedo, que acesse conteúdos pornográficos e, principalmente, que esteja vulnerável a algum tipo de violência sexual ou inicie precocemente sua vivência sexual. Por outro lado, vivemos em uma sociedade que parece sexualizar e adultizar a criança o tempo todo. Isso por meio do conteúdo da televisão ou de canções que se popularizam, de alguns tipos de roupas feitos para crianças com base na moda adulta, em hábitos estéticos estimulados para meninas, entre outros costumes culturais. Como lidar com tudo isso? A equipe do Clube Quindim conversou com a pedagoga e educadora sexual Caroline Arcari sobre o assunto. Confira:
Afinal, o que é sexualidade e como ela aparece na infância?
De acordo com a especialista, “a sexualidade é uma energia que faz a gente buscar bem-estar. Ao contrário do que as pessoas pensam, sexualidade não está ligada à vida sexual, à iniciação sexual, que é uma condição erótica adulta”. Essa busca pelo bem-estar está presente desde que a criança é um bebê, e vai se manifestar de formas diferentes em cada faixa etária. Na infância, há uma busca por entender o corpo, os movimentos do corpo, os sentimentos e as emoções, sejam eles prazerosos ou de dor. E tudo isso faz parte do desenvolvimento saudável da sexualidade na infância.
Caroline diz, ainda, que é importante que as famílias busquem informações para que consigam lidar com o desenvolvimento psicossexual na infância, compreendendo os fenômenos comuns em cada faixa etária. Saber conduzir esses momentos com naturalidade é fundamental para que a criança entenda que todas as partes do corpo devem ser respeitadas, que algumas são íntimas e devem ser cuidadas.
Além disso, alguns fenômenos da sexualidade nessa faixa etária são fisiológicos, e não têm relação com o entendimento adulto. Basta citar, como exemplo, que mesmo os bebês meninos têm ereções e que, entre os 3 e 6 anos, é comum que a criança toque seus próprios genitais. São práticas comuns e que devem ser respeitadas pelas famílias, não vistas como inapropriadas ou perigosas.
O que é erotização precoce?
“Vivemos, em nossa sociedade, uma adultização precoce das meninas e uma pressão para que os meninos exerçam sua masculinidade, que envolve, por exemplo, o início da vida sexual precocemente. Costumamos incentivar os meninos a serem namoradores, ao mesmo tempo que as referências das nossas meninas são muito erotizadas. Tem a ver com nosso sistema econômico também. Meninas adultizadas consomem mais. Isso pede uma reflexão sobre nosso sistema econômico e como podemos agir frente a esse incentivo ao consumo”, explica a especialista.
Seja por falta de acompanhamento, seja por incentivo adulto, o contato das crianças com esses conteúdos inadequados para a sua idade é que configuram a erotização precoce. Quando faltam referências para as crianças, elas reproduzem imagens que acabam sendo prejudiciais para o seu desenvolvimento. Para driblar isso, Caroline diz ser importante desenvolver ações que prolonguem a infância, como o incentivo à brincadeira, especialmente a brincadeira entre pares que não envolvam brinquedos. Afinal, vivenciar cada etapa da vida com tranquilidade é vital para um bom desenvolvimento emocional e global.
O que é educação sexual e por que ela é importante?
Caroline diz: “Educação sexual formal e planejada, seja na escola ou em casa, é importante porque crianças e adolescentes têm direito à informação. Quando passamos informações incorretas e fantasiosas prejudicamos o desenvolvimento global desses sujeitos — informação adequada à faixa etária, com a linguagem adequada, é claro. Também é uma forma de proteger contra a violência sexual. Crianças e jovens precisam de informações básicas para entender o que é consentimento, o que é toque abusivo, onde pode ou não ser tocada, quem são as pessoas autorizadas a ajudar com higiene e saúde etc. É preciso de uma base, e essa base é a educação sexual. Sentimentos, emoções, conhecimento de anatomia, autoimagem e autoestima, respeito, responsabilidade nos afetos também são tópicos importantes a serem discutidos, e a tudo isso chamamos de educação sexual”.
É importante, ainda segundo a especialista, superar o mito de que a educação sexual pode erotizar ou incentivar a iniciação sexual precoce de crianças e adolescentes. Inclusive, a Organização Mundial da Saúde (OMS) analisou mais de mil relatórios sobre os efeitos da educação sexual no comportamento dos jovens e constatou que quanto mais informação de qualidade sobre sexualidade, mais tarde os adolescentes iniciam a vida sexual. Além disso, ao contrário do que notícias falsas afirmam, educação sexual não tem nada a ver com ensinar crianças a fazer sexo, mas, como afirmamos, de falar sobre nosso corpo, nossas emoções e de como nos proteger e nos preparar para relações de forma saudável e prazerosa.
Quando devemos nos preocupar com a educação sexual?
A especialista esclarece que, ainda tendo em mente o que é comum para cada faixa etária, quando a criança apresenta movimentos ou referências mais erotizadas, os pais devem estar atentos. “Pode ser um sinal de que a criança viu algo ou que fizeram algo a ela”. Nesse caso, é importante conversar com a criança e investigar o que pode haver por trás dessas ações.
Claro que a condução de todo esse processo deve ser muito cuidadosa: “Temos que ter cuidado para não repreender de forma negativa brincadeiras típicas de algumas fases da infância. Dos 4 aos 9 anos, por exemplo, a criança pode testar papéis do mundo. Pode brincar de ser professora, de ser caminhoneira, astronauta, e também de exercer papéis na família, de ser pai, mãe, de estar grávida. Temos que ter cuidado para não ver isso como erotização precoce, porque a criança está simplesmente brincando”, explica Caroline.
Por outro lado, a especialista diz que é importante não reforçar certos comportamentos: “Crianças têm amigos. Namoro, beijo na boca, carinhos são algo típico de quando crescemos, da adolescência e vida adulta, quando temos maturidade para escolher e nosso corpo está mais desenvolvido. Quando a criança manifesta sentimentos de gostar de alguém, é importante que o adulto valide e respeite, mas que diga que, nessa idade, há outras formas de expressar: abraçando, por exemplo. Evite diminuir e ridicularizar. Mas, desde que a brincadeira seja lúdica e esteja adequada para a faixa etária, não devemos repreender”.
Para ajudar a guiar famílias e educadores nessas conversas, Caroline compartilha a tabela a seguir:
Faixa etária: até 4 anos
Conceitos gerais
– Meninos e meninas são diferentes
– Nomes corretos dos órgãos genitais
– Bebês vêm da barriga das mães
– Responder perguntas básicas sobre o corpo e funcionamento dele
– Explicar sobre privacidade. Por exemplo: por que cobrimos as partes íntimas, não tocar em partes íntimas dos colegas
Conceitos de proteção
– A diferença entre os toques reconfortantes, agradáveis e bem-vindos e toques que são intrusivos, desconfortáveis ou dolorosos
– Seu corpo pertence a você
– Todo mundo tem direito de dizer ‘não’ ao ser tocado, mesmo que o toque seja de um adulto
– Nenhuma criança ou um adulto tem o direito de tocar as suas partes privadas
– Diga ‘não’ quando adultos pedem que você faça coisas erradas, como tocar partes privadas ou guardar segredos.
– Existe diferença entre uma surpresa (que é algo que será revelado em breve) e um segredo (que é algo que você nunca deveria contar)
– Para quem pedir ajuda caso seja tocado nas partes privadas
Faixa etária: de 4 a 6 anos
Conceitos gerais
– Os corpos de meninos e meninas mudam quando crescem
– Explicações simples de como os bebês se desenvolvem na barriga da mãe e sobre o processo de nascimento
– Regras sobre limites pessoais (tais como manter as partes privadas cobertas, não tocar em partes privadas de crianças)
– Respostas simples a todas as perguntas sobre o corpo e funções corporais;
– Tocar suas próprias partes íntimas pode ser agradável, mas é algo feito em local privado.
Conceitos de proteção
– Abuso sexual é quando alguém toca em suas partes ou pede que você toque em suas partes privadas;
– É abuso sexual, mesmo que seja por alguém que você conhece
– O abuso sexual nunca é culpa da criança
– Se um estranho tenta levá-lo com ele ou ela, correr e contar para os pais, professor, vizinho, policial ou outro adulto
Faixa etária: de 7 a 12 anos
Conceitos gerais
– O que esperar e como lidar com as mudanças da puberdade
– Noções básicas de reprodução, gravidez e parto
– Riscos de atividade sexual (gravidez, doenças transmitidas)
– Noções básicas de contracepção
– A masturbação é comum e não está associada a problemas a longo prazo, mas deve ser feito em local privado
Conceitos de proteção
– O abuso sexual pode ou não envolver o toque
– Como manter a segurança e limites pessoais quando conversar ou conhecer pessoas on-line
– Como reconhecer e evitar situações sociais de risco
– Regras de encontros
*Quadro elaborado pela Child Sexual Abuse Committee of the National Child Traumatic Stress Network em parceria com a National Center on Sexual Behavior of Youth (2013).
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Texto maravilhoso, sabemos da dificuldade que é trabalharmos com esse tema, as informações nele apresentadas aparecem de forma simples e claras. Recomendo aos pais, familiares, educadores e a todos que convivem com elas, pois o tema é extremamente necessário para proteção de nossas crianças indefesas. Parabéns!!