É difícil encontrar um pai ou uma mãe atentos ao desenvolvimento de seus filhos que não estejam cientes das problemáticas relacionadas às telas. Essa não é uma discussão nova e, especialmente após a pandemia, período em que as crianças tiveram aulas online e o tempo de uso de tablets e celulares aumentou devido ao isolamento social, a maioria das famílias compreendeu a necessidade de repensar a rotina, gerenciar o conteúdo acessado e estabelecer um limite de horas mais saudável para cada faixa etária.
É de fato necessário estar alerta: segundo dados da pesquisa Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) Kids Online Brasil 2022, 96% das crianças de 9 a 17 anos acessaram a internet todos os dias ou quase todos os dias para ver vídeos, conversar e jogar. Além disso, 80% delas também afirmaram realizar pesquisas online para trabalhos escolares.
Os pais começaram a compreender que a presença do digital na vida das crianças é uma realidade irreversível que não pode ser ignorada. A questão é como lidar com ela. Seja no lazer, com joguinhos e vídeos, seja em aulas híbridas com conteúdos em diversas plataformas – além da entrada da inteligência artificial generativa (já falamos disso aqui) –, o olhar atento dos pais precisa ser parte deste caminhar dos filhos.
E essa não é uma tarefa fácil. Certamente há benefícios em estarmos inseridos em um mundo conectado, mas é também esperado que isso evoque questões para os pais: “será que o uso excessivo de telas afetará o desenvolvimento do meu filho?”, “será que ele não vai mais se interessar por livros se ficar só no celular?”, “será que, no futuro, ele pode se viciar?”. São muitas dúvidas para poucas respostas conclusivas.
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Existe escola sem livros?
Em meio a tantas mudanças de paradigma, decisões abruptas podem cair muito mal neste cenário de incertezas. Por isso, surpreendeu muitos pais a notícia de que o governo do estado de São Paulo decidiu não aderir ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e eliminar o material impresso para estudantes do ensino fundamental II (6º ao 9º ano) e do ensino médio. De acordo com a decisão, a partir de 2024, os alunos teriam acesso apenas a conteúdos 100% digitais, apresentados em slides nas salas de aula.
Como era de se esperar, a iniciativa gerou polêmica e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, recuou: inicialmente, afirmou que os estudantes poderiam, se preferissem, imprimir o material didático. Posteriormente, a Secretaria de Educação acatou uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo e reintegrou o material didático regular aprovado pelo Ministério da Educação. A Secretaria alegou que a reversão ocorreu antes da ordem judicial, mas reconheceu que mais esclarecimentos precisavam ser fornecidos antes que qualquer mudança fosse implementada.
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A questão é que uma alteração significativa na educação como essa não pode ser feita apressadamente, sem o respaldo de estudos, sem consulta pública e sem uma estratégia pedagógica bem definida. Esse é justamente um ponto importante levantado pelo relatório “A tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?”, publicado pela Unesco em 2023.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, mudanças abruptas como essa exigem a consideração de diversos aspectos para serem sustentáveis a longo prazo. Fora isso também devem ser levados em conta os altos custos associados à compra de dispositivos eletrônicos (como tablets e notebooks), a sua manutenção, a capacitação dos professores e a garantia de uma conexão de internet de qualidade. A lista é extensa, e mais questões certamente surgiriam com o uso no dia a dia.
A Unesco também chama a atenção para outras motivações que podem estar por trás de implementações aceleradas como estas. “Boa parte das evidências é produzida por aqueles que estão tentando vendê-las”, alerta a organização, que ainda faz uma provocação: “será que as sociedades estão fazendo as perguntas certas sobre a educação antes de recorrer à tecnologia como uma solução?”.
O objetivo do relatório de monitoramento global da educação não é desestimular iniciativas de ensino mais atualizadas, mas sim chamar a atenção para a necessidade de cumprir o que eles consideram ser o maior benefício da tecnologia aplicada ao ensino: que ela seja “apropriada, igualitária, escalonável e sustentável”.
Ou seja, que possa ser uma ferramenta democrática para atender os interesses de todos os estudantes, não apenas de uma parcela privilegiada com acesso a equipamentos e internet de qualidade. A tecnologia pode, segundo o órgão da ONU, oferecer uma salvação educacional para muitos, mas também pode criar uma barreira adicional à igualdade de oportunidades educacionais para outros.
“A tecnologia evolui muito mais rapidamente do que conseguimos mensurar seu impacto. E talvez a educação seja uma das áreas em que é fundamental sabermos o que estamos fazendo pelo bem das crianças“, observa Daniel Spritzer, especialista em psiquiatria da infância e adolescência, coordenador do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (GEAT) e membro da diretoria da International Society for the Study of Behavioral Addictions (ISSBA).
Segundo Daniel, é necessário ter muita ponderação em momentos como este. “Não podemos ficar parados no tempo, deixando de utilizar recursos que podem ser benéficos, mas também não podemos ser pressionados por modismos ou imposições econômicas para incorporar apressadamente recursos que ainda não foram estudados e para os quais não temos evidências que realmente contribuam para melhorar a educação das crianças“, afirma ele, que também participa do grupo de trabalho da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre uso problemático de jogos digitais.
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Por que o digital não deu certo nos outros países?
E note que o governo de São Paulo não foi pioneiro ao tentar substituir o material didático físico pelo digital para crianças. Iniciativas semelhantes já ocorreram no Peru, na China, nos Estados Unidos e na Suécia, e os resultados foram preocupantes. De acordo com a Unesco, um estudo realizado em 14 países mostrou que a simples presença de um aparelho celular era suficiente para distrair os estudantes e afetar negativamente o aprendizado.
Na China, o Ministério da Educação chegou a proibir os alunos de levarem smartphones para a escola para garantir que se concentrem nos estudos. “No Peru, quando mais de 1 milhão de laptops foram distribuídos sem serem incorporados à pedagogia, a aprendizagem não melhorou. Nos Estados Unidos, uma análise de mais de 2 milhões de estudantes indicou que as lacunas de aprendizagem aumentaram quando a instrução estava sendo feita de forma exclusivamente remota”, destaca o relatório da Unesco.
Talvez o exemplo mais emblemático seja o da Suécia, que após 15 anos de experiência, decidiu recuar na digitalização nas escolas, pois compreendeu uma defasagem significativa: os alunos perderam o hábito da leitura. Isso é muito grave, pois implica também a perda da capacidade de interpretação de texto, do desenvolvimento do pensamento analítico, da regulação do foco e da habilidade de analisar uma narrativa completa.
O país viu sua nota no Estudo Internacional de Progresso em Leitura (PIRLS), exame internacional que avalia o desempenho em leitura de estudantes de 9 a 10 anos de idade, despencar em 2021. Diante da crise, o país estabeleceu um programa para a reintrodução dos livros didáticos impressos novamente no ambiente escolar.
A leitura está em risco!
Como você pode perceber, não se trata apenas de optar pelo material didático físico ou digital. São várias implicações que precisam ser levadas em consideração, quando aplicadas a milhões de jovens em formação, já que mais tempo de telas também pode impactar outras frentes de aprendizado.
Aqui vamos focar na questão da leitura. Se a escola é, para muitas crianças, o primeiro contato que elas têm com os livros, interromper esse processo de familiarização e interesse pode prejudicar a formação desse possível leitor. A compreensão de uma narrativa completa, o foco aplicado na leitura e o desenvolvimento subsequente das habilidades de escrita e narrativa da criança podem se perder sem o exercício da leitura de um livro.
Sem mencionar que a experiência de ler um material físico difere da leitura em telas. Além dos prejuízos evidentes à visão, a leitura em papel acontece em um ritmo que favorece o processamento do que foi lido. Folhear as páginas também ajuda a criança a localizar informações e revisitar conteúdos sempre que necessário.
E, veja bem, o desafio aqui é grande: não é fácil competir com o apelo rápido e envolvente de um vídeo ou mesmo um “textão” nas redes sociais, repleto de memes. “Na comparação, estímulos intensos e constantes vindos de uma variedade infinita de conteúdos muito gratificantes podem reduzir o interesse das crianças por atividades mais tranquilas e num ritmo diferente, como é o caso da leitura”, observa o psiquiatra Daniel.
Essa compreensão fragmentada, comum em quem consome muitos conteúdos digitais, pode desestimular ainda mais o hábito de pegar um livro, que realmente demanda um ritmo de absorção diferente. A longo prazo, também se perde a formação de habilidades importantes que a literatura pode proporcionar: a interpretação de textos mais complexos e, consequentemente, a reflexão aprofundada e o desenvolvimento de um pensamento mais analítico.
Além disso, pode resultar em indivíduos com menor capacidade de foco e concentração, muitas vezes com questões de ansiedade, depressão e problemas de sono, conforme também aponta o Manual de Orientação “#MenosTelas #MaisSaúde”, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
O caminho do meio
Com tantos “poréns”, quais seriam, então, os benefícios das tecnologias digitais na educação? Apesar de as opiniões serem diversas, a Unesco aponta aspectos positivos, como:
- Criação de ambientes de aprendizagem mais envolventes;
- Maior engajamento dos estudantes nos conteúdos;
- Capacidade de enriquecer e simular situações mais complexas em sala de aula, além de conexões que o formato impresso não permite;
- Acesso ao conhecimento com menos barreiras físicas, seja por meio da digitalização de acervos de bibliotecas ao redor do mundo ou através de aulas de educação a distância, por exemplo.
A tecnologia pode aparecer de diversas formas na educação, como o próprio meio (os equipamentos em si), as ferramentas utilizadas nas aulas, os conteúdos que auxiliam na formação de habilidades tecnológicas, a melhoria dos sistemas de gestão escolar, além de proporcionar um contexto social e cultural para a troca entre alunos e professores.
“Uma definição ampliada do direito à educação poderia incluir o apoio efetivo da tecnologia para que todos os estudantes alcancem seu potencial, independentemente de contexto ou circunstâncias”, afirma o documento, ressaltando, por fim, que o foco deve estar nos resultados da aprendizagem, e não na digitalização em si.
O caminho do meio, portanto, seria o uso concomitante da tecnologia e do material impresso, sem que uma experiência substitua completamente a outra. E essa abordagem deve ser vista como algo complementar a uma educação centrada na interação humana, onde o professor também recebe suporte do sistema para saber onde e como aplicar cada funcionalidade.
Dialogar mais, demonizar menos
Não estamos, como sociedade, em uma trajetória simples, não é mesmo? Os desafios nas escolas são complexos e se estendem aos lares. Assim como não podemos nadar contra a maré, uma vez que precisamos ser amparo de nossos filhos nessa caminhada tecnológica, também não possuímos referências anteriores, já que esse processo escolar não existiu na nossa época. É natural se sentir perdido, entende? Mas se você chegou até este ponto do texto, é sinal de que a sementinha da resposta já está plantada aí dentro. Há um esforço em entender o mundo e, afinal, estamos todos aprendendo enquanto vivemos.
“A ideia fundamental é não demonizar a tecnologia, porque ela é, na maioria das vezes, benéfica em várias áreas da vida. Nos assustamos com algumas novidades, mas isso faz parte da história da humanidade. Hoje, parece que estamos atribuindo à tecnologia a culpa por problemas que já existiam há mais tempo”, observa o psiquiatra Daniel.
Segundo ele, que também é coautor do livro “Crianças Bem Conectadas – Como o Uso Consciente da Tecnologia Pode se Tornar um Aliado da Família e na Educação”, nossos filhos não esperam que sejamos especialistas em tecnologia nem que possamos explicar tudo para eles. “Se os pais demonstram um interesse genuíno em entender a vida online dos filhos, eles explicarão com prazer. Esse é o ponto chave e isso é seriamente comprometido quando partimos de uma perspectiva muito negativa ou alarmista, demonizando as novas tecnologias,” afirma ele e acrescenta: “A ideia é ajudar os pais a se conectarem melhor com seus filhos a partir de uma perspectiva menos dicotômica entre o bem e o mal.”
Seja nas escolas ou fora delas, a tecnologia digital não deve ser vista como um projeto de curto prazo. É necessário aprender como utilizá-la de maneira sustentável ao longo de toda a vida. Por isso, o momento é também de análise para as famílias. Não existe ainda um veredicto sobre os reflexos da digitalização proeminente na vida das crianças de hoje, mas sempre haverá espaço para reflexão.
É hora de dialogar mais, demonizar menos. Lançar mais perguntas, mas também escutar com atenção as novas respostas. O caminho envolve, como sempre, coexistência, conciliação e aprendizado. Com um livro nas mãos, mas também com um olho no mundo digital. A vida exige adaptação, atenção e uma mente aberta, além de pensamento crítico para encontrar o equilíbrio que ajudará a orientar as crianças em suas jornadas.
(Se você quiser aprofundar ainda mais esse diálogo, leia aqui trechos da nossa conversa com Daniel Spritzer, que também é professor da disciplina de Dependência de Tecnologia do Programa de Residência em Psiquiatria do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), em Porto Alegre).