Em uma família, avô e bisavô não se falam, mas a criança dessa família vai se mobilizar para reunir os dois. Essa é a história por trás de O menino de calça curta, obra de Flavio de Souza com ilustrações de Rafael Sica, que faz parte da seleção do Clube Quindim de dezembro. Trata-se de uma narrativa que nos apresenta algo frequente: as barreiras que se erguem dentro das famílias por falta de diálogo, especialmente entre gerações diferentes, e o que é não dito nas histórias familiares.
Essas histórias geram incômodos porque, por trás delas, há a crença de que as famílias devem ser ambientes harmoniosos. No entanto, esse convívio guarda também o encontro de personalidades e visões de mundo diferentes, que nem sempre podem ser compartilhadas ou aceitas por todos. Ademais, ainda vemos, em muitas famílias, a falta de diálogo e aquilo que não é dito e que gera tensão dentro do lar.
A importância de falar
Para a psicanálise, o ato de falar funciona na direção de um sentido de cura. Pois, ao dizer seus traumas e experiências, o paciente vai dando significado ao que viveu e compreendendo mais sobre si e sobre como fatores externos moldaram sua vivência. É por meio desse processo que se pode curar manifestações do corpo e condições que eram incompreendidas historicamente, como a histeria.
Já para a antropologia, a fala tem a função de testemunho de práticas de uma cultura. Afinal, por meio dela, pode-se registrar a maneira como determinado povo vive e os símbolos que utiliza para compreender o mundo. Contudo, não é só a narrativa contada que importa, é também aquela que é escondida ou silenciada. Conforme a antropóloga Esther Jean Langdon diz: “Podemos examinar narrativas em qualquer sociedade para ver o que as pessoas selecionam como sendo importante para reconstruir suas histórias e expressar seus valores. Podemos entender os conflitos comuns entre os elementos do grupo e quem são aqueles considerados como ‘errados’, como os culpados de causar injustiça aos outros”.
Escutar também é importante
Nesse processo, entretanto, não só o ato de falar é importante, como também o ato de ouvir. A artista multidisciplinar e pesquisadora Grada Kilomba aponta como, na comunicação em meio à sociedade, muitas vezes fatores como o racismo impedem que uma pessoa negra seja verdadeiramente escutada:
“Falar torna-se, então, praticamente impossível. Não é que nós não tenhamos falado, o fato é que nossas vozes têm sido constantemente silenciadas através de um sistema racista”, disse, citando frases-clichês de repressão da voz de pessoas negras e mulheres, como “Eu acho que você está exagerando…” ou “Eu acho que você é demasiado sensível…”
Grada Kilomba
Da mesma maneira, outros fatores cruzam aquilo que se pode falar ou como se escuta o que se diz. Alguns desses elementos vêm das desigualdades – de gênero, etárias, raciais, entre classes sociais diferentes. Outros ainda são consequências de algumas ideias construídas na nossa sociedade. Por exemplo: o mito de que os homens não podem expressar seus sentimentos e emoções. Com isso, muitos deles construíram muros ao redor de si, sem trocar suas angústias mesmo em âmbitos familiares.
A dificuldade do diálogo no nosso tempo
O contexto em que vivemos hoje, com polarização de opiniões, uma descrença na educação, na produção de conhecimento formal e na intelectualidade, mais a experiência de nos comunicarmos tanto por meio das redes sociais, parece ter acentuado a diferença entre nós. É frequente observarmos uma dificuldade para realmente trocarmos opiniões, escutarmos a visão do outro e desenvolvermos empatia. É o que tem sido chamado de bolhas de opinião, o fenômeno que faz com que as pessoas falem e ouçam somente aqueles que pensam parecido com elas.
Dentro de um âmbito familiar isso tende a se acentuar. Afinal, em um mesmo lar, há pessoas de gerações e pontos de vista diferentes obrigadas a conviver. Às vezes, a falta de diálogo acaba por gerar mal-entendidos que cruzam anos, como é o caso da história do livro O menino de calça curta. É fundamental, nesse caso, desenvolver a compreensão, trabalhar para estabelecer pontes, um convívio que pode ser rico e de muito aprendizado para todos.
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