Ainda que os pequenos na faixa dos dois anos levem toda a fama pela fase das birras com os chamados terrible twos, crianças de todas as idades, assim como os adolescentes, também podem ter muita dificuldade em se autorregular e retornar a um estado de equilíbrio em momentos difíceis.

Sabemos que o dia a dia não é fácil e que, muitas vezes, só o que queremos é que eles colaborem. Mas existem maneiras melhores de conseguir essa cooperação do que com gritos e ordens. Vem com a gente entender mais sobre o assunto e conhecer algumas estratégias para ajudar a sua criança a se autorregular.

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Autorregulação e o desenvolvimento do cérebro da criança

Ana Cecília Prado é psicóloga, com especialização em Neurociência da Educação, Desenvolvimento Infantil e Neuropsicologia. Mãe de duas meninas, tem 18 anos de experiência no atendimento a crianças e adolescentes, e desde 2013 vem direcionando seu olhar e seus estudos para o estresse em crianças. No Instagram, conduz o perfil @crescer_devagar, onde fala sobre o desenvolvimento infantil e as questões relacionadas à parentalidade.

Para a Revista do Clube Quindim, Cecília explica que o cérebro da criança se desenvolve com base em uma combinação de fatores que incluem a programação genética e os estímulos, tanto do ambiente quanto das pessoas com quem a criança se relaciona, além da maneira com que se dão essas relações.

Segundo a psicóloga, nosso cérebro é programado para mapear ameaças o tempo todo. É um mecanismo que se mantém ativo 24 horas por dia, sete dias por semana, mesmo durante o sono.

Quando um adulto ouve um barulho alto, consegue usar sua vivência e experiência para contextualizar esse barulho. Pode ser um transformador que explodiu, uma porta que bateu com o vento ou um prato que caiu e quebrou. Com esse contexto, o adulto pratica a chamada autorregulação racionalizada, ou seja, pode respirar para se recuperar do susto, sair correndo em busca de abrigo ou lutar para se defender.

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As crianças, sobretudo as menores de seis anos, ainda não têm essa capacidade. Imagine, então, um pequeno que está bastante concentrado construindo uma torre de blocos quando de repente ela cai. A resposta emocional da criança é a mesma que ela teria se estivesse sob uma forte ameaça, como a presença de um animal selvagem capaz de tirar sua vida, por exemplo.

A criança é incapaz de aplicar contexto à situação. Sendo assim, o choro e os gritos não são frescura nem exagero, mas sim uma resposta emocional extremamente intensa, que acontece dessa maneira porque ela ainda não consegue se autorregular. “Por isso, uma criança contrariada fica tão forte”, diz Cecília, “seu corpo está inundado por substâncias, como a adrenalina e o cortisol, que a deixam preparada para lutar ou fugir. De alguma maneira, ela precisa dar conta daquele estado emocional em que está, e que constitui uma ameaça para ela”, explica a especialista.

Veja também: Pensando antes de falar: 7 frases que não devemos dizer aos nossos filhos.

Além das substâncias que deixam o organismo nesse estado máximo de alerta, temos dentro do nosso cérebro uma estrutura chamada tálamo, que é composta por vários compartimentos. Dentre eles, há uma parte destinada a processar a dor emocional, e outra reservada para processar a dor física. Assim, sentimos a dor de ralar o joelho de um jeito, e a tristeza de uma rejeição, de outro.

Para a criança, não há essa separação. Além da descarga de substâncias, a tristeza emocional também dói fisicamente. O desconforto é generalizado, e é justamente por isso que a presença de um adulto se torna tão importante. É por meio desse adulto que a criança vai conseguir, aos poucos, recobrar o seu estado de equilíbrio.

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O papel da ressonância afetiva na regulação emocional

Como explica Cecília, as emoções existem, basicamente, para nos proteger. Entre outras coisas, foi a nossa capacidade de sentir medo e raiva que nos possibilitou escapar de perigos e lutar pela nossa sobrevivência ao longo da evolução da espécie humana, desde os tempos dos homens das cavernas. Assim, é importante ressaltar que todas as emoções são legítimas e têm o seu valor.

O que acontece é que o nosso cérebro é todo construído de maneira a permitir que haja uma conexão com outros seres humanos por conta dos neurônios-espelho e dos processos empáticos. Então, se estamos próximos de uma pessoa com raiva e que está reclamando de tudo, rapidamente tendemos a manifestar essas mesmas emoções. Essa é a chamada ressonância afetiva.

Se por um lado pode ser mais fácil manter um certo distanciamento emocional de pessoas desconhecidas, como um estranho reclamando da demora na fila do mercado, a ligação é quase imediata quando quem está se queixando sem parar é nosso filho.

E é justamente aí que “o bicho pega” para os cuidadores: nós precisamos encontrar maneiras de fortalecer nosso próprio equilíbrio para sermos capazes de acolher a criança durante um momento de desregulação. Do contrário, além de piorar a situação para a criança, ainda corremos o risco de nos desregularmos também.

“Uma criança que cresce em uma casa onde pode se expressar emocionalmente sem ouvir que sentir raiva é feio e sentir medo é besteira, onde os pais deixam o ambiente seguro e praticam corregulação, vai crescer de uma maneira totalmente diferente de uma criança que chora e apanha ou fica de castigo por causa disso”, diz Cecília.

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“Essa criança vai aprender a bloquear as coisas, e não a lidar com elas. Vai aprender apenas a sobreviver. A parte emocional continua toda ali, mas está sendo suprimida. E isso com certeza vai reverberar na vida adulta de alguma maneira”, completa.

Veja também: Inteligência emocional em crianças: como ajudar o seu filho a desenvolvê-la com afeto.

Para conseguir corregular é preciso, primeiro, mudar nossa perspectiva

Um dos pontos-chave para compreender os momentos de birra, ou de desorganização emocional da criança, é enxergar o mundo pelos olhos dela. Imersa em um mundo cheio de regras e acordos desconhecidos, com um cérebro ainda em desenvolvimento que não consegue compreender plenamente o que acontece, a criança mistura o mundo real e imaginário de maneira que, para ela, durante um bom tempo é tudo a mesma coisa.

Então, suponha que na hora da refeição a criança imagina que você vai trazer suco no copinho rosa, mas na verdade você trouxe no azul. A expectativa ruiu, e ela não tem estratégias para lidar com a frustração. O copo de outra cor, o bloquinho que cai, a promessa de sorvete que não se concretiza, tudo têm o mesmo peso que o ataque de uma cobra venenosa ou de um animal feroz.

“Em termos evolutivos, nosso cérebro ainda está muito perto do que era no tempo dos homens das cavernas. Então, se antes a gente fugia de animais e de pessoas de outras tribos que queriam invadir nosso território, agora é o bloquinho e o copo de cor diferente que ameaçam a nossa sobrevivência”, explica Cecília.

Pode ser muito difícil para nós, adultos, entendermos como pode uma criança que já tem tanta autonomia para várias tarefas, que muitas vezes já está aprendendo a ler e escrever, que corre, pula e dá cambalhota é a mesma que chora porque a couve-flor que estava no prato do almoço encostou no caldo de feijão.

Nós não conseguimos mais lembrar desses sentimentos porque, na adolescência, nosso cérebro se reorganiza novamente. Mas experimente fazer um exercício: procure lembrar daquela vez em que estava vendo um episódio da sua série favorita, ou navegando em alguma rede social, e foi interrompido bruscamente por uma queda de energia ou por alguém te chamando para fazer algo que você não queria. Deu raiva ou não deu?

Estratégias para ajudar sua criança a se autorregular

Ainda que o mecanismo de autorregulação comece a se desenvolver apenas por volta dos 5 anos de idade, em média, é possível tentar algumas estratégias para ajudar sua criança a passar por esses momentos de desorganização emocional de uma maneira mais saudável.

Quem lida com crianças no dia a dia sabe como pode ser tentador buscar uma dica ou receita infalível para lidar com as birras, mas já podemos adiantar que não existe uma fórmula pronta. O que existem são estratégias que você pode experimentar com a sua criança. E, assim como tantas outras coisas na criação de filhos, é preciso tentar torcendo por um acerto, e se comprometer a não desistir quando acontecerem os erros.

Cecília Prado nos diz que, ao contrário do que muitos imaginam, a birra não é só coisa de criança, mas sim algo inerente ao ser humano. Um adulto que xinga no trânsito e que bate na mesa quando contrariado está birrando, mas de alguma maneira isso é considerado mais aceitável socialmente do que uma criança de dois anos que se joga no chão aos prantos.

“A birra nada mais é do que a extrapolação, no comportamento, de uma emoção que é muito intensa”, explica. Mas como podemos nos conectar com nossos filhos para ajudá-los a superar essa desorganização emocional?

Entenda que você é a engrenagem principal da corregulação

Antes de pensar em ajudar a criança, é preciso que o adulto esteja centrado, que observe a si mesmo e consiga se perceber. Se você está cansado, com fome, irritado por causa do trabalho, há grandes chances de descontar isso no seu filho.

Sabemos que muitas vezes o cotidiano nos engole, e que é impossível equilibrar todos os pratos. Mas, na medida do possível, e de acordo com a idade do seu filho, estabeleça um diálogo franco com a criança e explique como está se sentindo. Por exemplo: “mamãe está muito apertada para ir ao banheiro agora, mas, assim que eu voltar, vou pegar você no colo”. Ou: “deixa só eu terminar de jantar que já vou brincar com você”. Mais um exemplo: “eu fiquei triste com a sua atitude, mas isso não muda o meu amor por você”.

Quanto mais sincero você for com relação aos seus próprios sentimentos e emoções, mais espaço e intimidade a criança vai ter para fazer o mesmo, com naturalidade e segurança.

Acolha as emoções do seu filho, sejam elas quais forem

Em vez de afastar ou ignorar os sentimentos tidos como ruins, como raiva, medo, frustração e ciúmes, faça o contrário e abrace-os com vontade. Converse com a sua criança para compreender verdadeiramente o que ela está sentindo e as origens desse sentimento. Escute sem fazer juízo de valor, e se pergunte o que você pode fazer para que se sinta melhor.

Esteja disposto a dar ao seu filho o que ele precisa, do jeito que precisa (e não como você quer)

“Enquanto algumas crianças precisam de colo para se reorganizar emocionalmente, outras não querem ser tocadas, porque o toque se torna mais uma coisa para processar além de tudo o que já está acontecendo”, explica Cecília Prado.

Então, se uma criança precisa de aconchego e você dá espaço, ela pode se sentir negligenciada. Da mesma maneira, se ela precisa ficar sozinha para se acalmar e você insiste na presença, pode acabar sentindo que não é ouvida e respeitada.

Com as crianças maiores é possível estabelecer um diálogo sobre isso e respeitar suas escolhas. Com os pequenos, na dúvida é melhor oferecer colo, pois esse é nosso instinto mais primitivo.

Há crianças que precisam de toque, outras que necessitam do afastamento, umas pedem silêncio, outras querem correr e gritar para “gastar” toda a emoção que trouxe esse momento de desequilíbrio. Não há fórmula pronta, é preciso observar e conhecer seu filho para entender o que vai funcionar melhor com ele, em cada situação.

Cecília explica que precisamos, sobretudo, voltar a verdadeiramente enxergar nossos filhos como quando eles eram bebês e precisávamos interpretar os sinais para entender se estavam com fome, com sono, com dor ou outra coisa. É esse “conhecimento de causa” que vai nos indicar o melhor caminho para ajudá-los a desenvolver a autorregulação.

“As crianças vão crescendo e a gente vai se distanciando, vai entregando para elas essa história de se regular e de resolver as coisas sozinhas, mas não é assim. Não precisa ser assim. Se a gente continuar conectado, e entendendo um ao outro, aumentam muito as chances de a gente saber o que fazer e como agir”, afirma.

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“Quantas vezes nós colocamos as demandas da casa, do trabalho e da vida em primeiro lugar, e com isso passamos a não dar tanto crédito para o que o filho está sentindo, suas necessidades e desejos? Depois, não são raros os casos em que nos queixamos que não há conexão, que a criança não escuta, não colabora… Mas quem coloca as barreiras somos nós”, completa Cecília.

A fadiga por compaixão e a importância de cuidar de si mesmo

Uma das principais estratégias para bem corregular seu filho é cuidar de si mesmo. Não é só a criança que precisa do “potinho da calma”, nós também precisamos. A chamada fadiga por compaixão muitas vezes coloca cuidadores primários nesse lugar, especialmente as mães (e, mais ainda, as mães solo).

Como somos cobradas, muitas vezes por nós mesmas e quase sempre pela sociedade, a estarmos sempre atentas, dispostas, receptivas e acolhedoras o tempo todo, isso gera um estado crônico de estresse e fadiga, em que a pessoa vai minguando. Se a raiva ou o choro da criança deixa o adulto com raiva ou nervoso, há algo nesse adulto que se conecta com essas emoções. Muitas vezes, ele precisa chorar também.

Para ajudar nosso filho a se autorregular e recobrar um estado de calma e equilíbrio, precisamos nos lembrar que existem etapas no desenvolvimento infantil, e que dentro desse processo há coisas que a criança vai conseguir fazer e outras que ainda não.

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“Não é pessoal, não é para nos atingir, para nos provocar, nada disso. O adulto tende a achar que é consigo, mas não é, a criança existe por si só, ela não precisa atacar ninguém. Pelo contrário, é o ser humano mais leal que existe. A criança é capaz de se destruir para preservar quem ela ama, ela deixa de querer o que os pais não podem dar emocionalmente”, diz Cecília.

Para a psicóloga (e para nós também), a criança é só amor, e somos nós, adultos, que precisamos voltar a nos reconectar com esse fluxo de amor, que a gente perde quando cresce. Precisamos observar nossas falas, e procurar entender que a criança é outro ser humano, é um indivíduo, e não uma extensão de nós mesmos.

“Se a gente entender isso desde o começo, vamos nos colocar em um lugar de mais humildade e de cuidado. A gente não é dono da criança. A gente é guia. E, pra ser guia, a gente precisa estar enxergando bem o caminho”, conclui Cecília.

Estante Quindim

Conheça 3 livros infantis para falar sobre sentimentos com as crianças:

a raiva
A Raiva, de Blandina Franco e José Carlos Lollo
Quando vejo você (autora Yael Frankel, editora Gato Leitor)
Quando vejo você, de Yael Frankel
Por que choramos?
Por que choramos?, de Fran Pintadera e Ana Sender