Neste artigo, o pesquisador Marco Haurélio traz a história do conto popular brasileiro ao século 20. Confira também a primeira parte do artigo para entender toda a trajetória desse gênero literário em nosso país.

A força da tradição

No campo da pesquisa e divulgação da tradição oral, a partir da década de 1950, sobressaíram-se o padre Aluísio de Almeida, pseudônimo de Luís Castanho de Almeida (1904-1981), com 50 Contos de São Paulo (1947), 142 Histórias Brasileiras (1951) e Contos do Povo Brasileiro, e Waldemar Iglésias Fernandez (?-1998), 82 Estórias Populares Colhidas em Piracicaba (1967), Oswaldo Elias Xidieh (1915-2001), Narrativas Pias Populares (1967), além do precursor Amadeu Amaral (1875-1929), com Tradições Populares, livro publicado postumamente, que traz um alentado estudo sobre Pedro Malasartes.

Ainda em São Paulo, ressalta-se Ruth Guimarães (1920-2014), que reuniu alguns contos populares em seu erudito estudo Os Filhos do Medo (1950), sobre a presenças de entidades malfazejas no folclore vale-paraibano. Ruth escreveu ainda uma coletânea de histórias infantojuvenis, Lendas e Fábulas do Brasil, mas, nesta obra, é perceptível a reelaboração dos contos, talvez recolhidos por ela ou reescritos a partir das coletâneas de Aluísio de Almeida e João da Silva Campos.

Conto popular no Brasil: Mulher ao ar livre sorrindo.
Ruth Guimarães. Crédito: Terra/Arquivo pessoal

Nesta lista não entra Monteiro Lobato (1882-1948), com as Estórias de Tia Nastácia, quase todas copiadas de Sílvio Romero, mantendo-se inclusive os títulos, mesmo de contos incomuns como Doutor Botelho, A Fonte das Três Comadres, A Rainha que Saiu do Mar etc.

Outra obra que raspa o tacho de Sílvio Romero, embora as atribua a uma narradora de carne e osso, e não uma personagem fictícia, é Histórias da Velha Totônia, do consagrado escritor paraibano José Lins do Rego (1901-1957). Embora alongadas e floreadas, percebe-se, de cara, que O Macaco Mágico é um aproveitamento do Doutor Botelho (inclusive, é assim nomeado na história); A Cobra Que Era uma Princesa (Dona Labismina), O Príncipe Pequeno (O Homem Pequeno em Romero, com o nome da heroína mudado de Guimara para Guimarra) e O Sargento Verde, que mantém o título original, são prova de que Velha Totônia, como se diz por aí, entrou no livro “como Pilatos no Credo”.

Existiu, no entanto, uma narradora que não goza da mesma fama da inventada Tia Nastácia ou da reinventada Totônia.

Veja também: O conto popular no Brasil: influências estrangeiras e os primeiros registros brasileiros.

A extraordinária Luzia Teresa

 Luzia Teresa dos Santos nasceu e morreu pobre e, não fosse o feliz acaso de ser “descoberta” pelos pesquisadores do Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular, da Universidade Federal da Paraíba, sob coordenação de Altimar de Alencar Pimentel (1936-2008), jamais saberíamos de sua existência. Há discrepâncias sobre a data de seu nascimento. Na carteira de identidade, consta 18 de março de 1911, mas ela, em depoimento a Myrian Gurgel, afirma ter nascido em 1909.

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Tendo de trabalhar desde os oito anos, assumindo, depois da morte da mãe, a responsabilidade de ajudar seu pai a criar 15 filhos, não teve propriamente uma infância. Ainda assim, durante os trabalhos coletivos, como por ocasião das debulhas de feijão e das farinhadas, na zona rural de Guarabira, no brejo paraibano, ouvia, enlevada, as histórias de trancoso, os contos velhos de origem variada.

A morte do pai durante a revolução de 1930 foi um duro baque para Luzia, pois, na mesma ocasião, sua irmã Antônia havia fugido de casa com um rapaz de Campina Grande. Casou-se, aos 25 anos, com Luiz, seu “primeiro e único namorado”, viúvo e pai de quatro filhos, e mudou-se para a capital paraibana. Foi com ele que aprendeu a maior parte das histórias que viriam a compor o seu vasto repertório.

O único filho de Luzia, ainda jovem, viajou para São Paulo, a terra do vai-não-torna, e dele não se teve mais notícia. Trabalhou muitos anos como empregada doméstica e, com o apurado, ajudou o marido a construir uma casa modesta. O terreno não pertencia a eles e o proprietário exigiu a desocupação, indenizando o casal. Com o dinheiro, construíram uma casa modesta em Bayeux. A mesma casa na qual ela acolhera um rapaz que, por ocasião da doença, atiraria fora todos os seus pertences.

Altimar Pimentel, descrevendo-a, dá-nos uma ideia da grande contadora de histórias que foi Luzia Teresa:

“Impressiona em Luzia Teresa a expressividade do rosto, dos braços magros e longos, das mãos que se erguiam ou que ela utilizava em gesticulações tão precisas. A expressão corporal compunha com as variações vocais, as inflexões apropriadas os momentos mágicos e cativantes em que narrava. Os gestos desenhavam personagens e situações, evocavam imagens, delineavam seres e coisas. A velhinha calada, acanhada, tímida, transmudava-se narrando estórias de príncipes, princesas, fadas; vivia cada personagem e colhia exemplos locais para melhor visualização da narrativa.” (Estórias de Luzia Teresa, vol. 1, p. 399. Brasília, Thesaurus, 1995.)

Instada pela professora Myrian Gurgel, que integrava o NUPPO, a dizer, em entrevista, qual era o seu conto popular favorito, Luzia afirmou ser O príncipe encantado num pombinho. E reiterou que o príncipe se desencanta, mas não sofre. Quem sofre é a princesa, verdadeira protagonista da história que ela, a pedido de Altimar Pimentel, teve de repetir duas vezes. Esse conto não aparece entre os arrolados por Altimar nos três volumes lançados pela Thesaurus nem entre os contos inéditos, do quarto e quinto volumes, não lançados, mas sumarizados no segundo volume da coleção.

Conto popular no Brasil: Mulher sentada em cadeira com a mão espalmada à frente, fazendo gesto.
Luzia Teresa. Crédito: Sementeira.net

A última história de Luzia Teresa, registrada por Myrian e Altimar, foi A menina do cabelo de ouro, narrada no hospital Padre Zé, no dia 26 de janeiro de 1983. Durante o período de internação, que se estendeu até 31 de maio de 1983, ela entreteve os enfermos com o seu dom maravilhoso. A mais conhecida coletânea de contos populares, Os contos infantis e domésticos dos Irmãos Grimm, trazia, na sétima e última edição em vida dos autores, de 1957, 200 histórias, entre contos e lendas. De Luzia Teresa, sozinha, foram registrados 242 contos populares, a maior parte pertencente ao rol dos contos maravilhosos, sendo a informante, sem dúvida, a maior das maravilhas.

O conto popular na contemporaneidade

Reconheçamos, enfim, Luzia Teresa! Reconheçamos ainda a contribuição da saudosa Doralice Alcoforado (1937-2007), autora de Belas e Feras Baianas, recolha acompanhada de um estudo sobre a presença do tema do “noivo animal” no imaginário baiano. Importante destacar a coleção Contos Populares Brasileiros que, infelizmente, só teve quatro volumes, com contos recolhidos na Paraíba (Osvaldo Trigueiro e Altimar Pimentel), Pernambuco (Roberto Benjamim), Ceará (Francisco Assis de Souza Lima) e Bahia (Doralice Alcoforado e Maria del Rosário Suarez Albán), embora pretendesse abarcar todos os estados brasileiros.

Veja também: Entrevista com Ricardo Azevedo: a importância de valorizar a cultura popular.

Conto popular no Brasil: Mulher de chapéu e bolsa sorrindo discretamente.
Doralice Alcoforado. Crédito: Cordel Atemporal

Isso mostra a importância de recolhas regionais, como a feita em 1961, pelo Major Calvet Fagundes (1912-2000) no Rio Grande do Sul, Estórias da Figueira Marcada, trazendo, no título, o nome do local da recolha.

Altimar Pimentel, filho da primeira romancista da literatura de cordel brasileira, Maria das Neves Batista Pimentel (1913-1994), e neto do cordelista pioneiro Francisco das Chagas Batista, é o responsável pela maior quantidade de obras publicadas no Brasil. Além dos três volumes de Luzia Teresa, temos Estórias do Diabo, Estórias de Cabedelo, Contos Populares de Brasília, entre outros. Edil Costa, professora da Universidade do Estado da Bahia, além de colaborar com Doralice Alcoforado em Vozes do Ouro, coletou, entre 1984 e 1995, histórias do ciclo da Cinderela, reunindo tipos e subtipos, tema de sua tese, publicada em livro com o título Cinderela nos entrelaces da tradição.

Outra obra relevante é Calidoscópio, a Saga de Pedro Malasartes, de Ruth Guimarães, lançada em 2006, em edição independente, e relançada este ano, pela Madamu. Trata-se de um alentado estudo, o maior até então feito no Brasil, e talvez no mundo, sobre o famoso pícaro, abarcando todas as suas facetas: cômica, heroica, mítica, com notas eruditas em diálogo aberto com tradições folclóricas e literárias do mundo inteiro. No campo da pesquisa, a contribuição de Braulio do Nascimento (1924-2016) é gigantesca. Dois de seus livros, Estudos sobre o Conto Popular (2005) e Catálogo do Conto Popular Brasileiro (2009) são referências obrigatórias sobre o tema.

 Já Minhas Histórias de Trancoso (2017) reúne 42 contos, de temática variada, recontados pela cearense de Acopiara Djanira Feitosa, professora aposentada e cordelista, em edição independente, preparada pelos filhos da autora, Nabucodonosor e Nabupolasar Feitosa. Os destaques são A História do Verdelim e A História do Reino da Água Azul, ambos já vertidos em cordel pela autora. Um pouco antes, em 2014, organizada por Giba Pedroza e Henry Durante, saiu a coletânea Assim me Contaram, Assim vos Contei, com histórias paulistas do saudoso Geraldo Alves da Silveira, o Geraldo Tartaruga.

No que dependeu de mim, contribuí com várias publicações, a partir do sertão baiano onde nasci e passei boa parte de minha vida, mas também de outros estados. Os primeiros livros, Contos Folclóricos Brasileiros (2010) e Contos e Fábulas do Brasil (2011), ainda traziam contos ouvidos na infância, narrados por minha avó paterna, Luzia Josefina de Farias.

Seguiram-se O Príncipe Teiú e Outros Contos Brasileiros (2012), Vozes da Tradição (2017, em parceria com Lucélia Borges), Contos e Lendas da Terra do Sol (parceria com Wilson Marques, 2019), Contos Encantados do Brasil (2022) e No Tempo dos Encantos (inédito, parceria com Rogério Soares).  Todos os contos estão classificados de acordo com o Catálogo Internacional do Conto Popular, o Sistema ATU, e parte deles figura no Catálogo do Conto Tradicional Português (com versões análogas dos países lusófonos), de Isabel David Cardigos e Paulo Jorge Correia, publicado em 2015.

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O mercado editorial brasileiro, com certa relutância, mas também com notáveis exceções, vem abrindo espaços a textos coligidos da tradição oral (contos, lendas, adivinhas e a poesia tradicional). É preciso enaltecer, ainda, os autores que, mesmo não sendo folcloristas, bebem da mesma fonte e divulgam o trabalho de nossos irmãos e irmãs. Há muitos, mas o nome de Ricardo Azevedo, também estudioso das tradições populares, dá a melhor ideia do conjunto. Um salve para ele!

E um salve para José Alexandrino de Souza, que me forneceu mais de 50 histórias, grande parte já publicada, grande mestre da tradição oral de Serra do Ramalho, Bahia!  Em nome dele, saúdo os mestres e mestras, os vivos e os mortos, semeadores de sonhos desde que o mundo é mundo.