Talvez você tenha visto mil vezes, ou quem sabe nunca assistiu, do começo ao fim, a animação da Disney sobre Pinóquio, que sem dúvidas é a versão mais conhecida desse conto infantil. Mas arriscamos dizer que muitas coisas presentes na narrativa fazem ou fizeram parte da sua vida, ainda que você não tenha se dado conta disso. Quer ver só?
Se alguma vez alguém disse que se você contasse uma mentira seu nariz iria crescer, é por causa do Pinóquio. E se você já ouviu, também, que precisava estudar muito porque criança que não estuda vira burro… adivinhe? Sim, é por causa do Pinóquio.
Neste artigo, vamos falar sobre a versão original do conto infantil que vem atravessando séculos e segue encantando crianças e adultos de todas as idades, e de algumas outras versões, inclusive a que levou o Oscar de melhor animação na premiação em 2023.
As origens da história de Pinóquio na sociedade italiana no século XIX
Diferentemente do que acontece com alguns outros clássicos infantis, cuja origem não é muito clara e o que temos, na verdade, são várias evidências apontando caminhos possíveis ou prováveis, o primeiro registro da história de Pinóquio é bem claro. Trata-se de um conto infantil escrito por Carlo Collodi, entre 1881 e 1883, para um jornal infantil.
Collodi, que na verdade se chamava Carlo Lorenzini, nasceu em Florença, na Itália, em 1826. Filho de um cozinheiro que trabalhava para uma família aristocrática, Collodi foi voluntário do exército durante as guerras da independência italiana entre 1848 e 1860, e depois passou a publicar um semanário satírico chamado Il Lampione, que se propunha a “iluminar a quem permanece nas trevas”.
Em 1881, e ao longo de dois anos, o autor publicou capítulos da série “História de uma Marionete” no chamado Jornal para as Crianças. Quando esses capítulos foram compilados em uma única publicação, surgiu o livro As Aventuras de Pinóquio.
Como já se pode imaginar, a história originalmente contada por Collodi é bem diferente daquela que encontramos na versão da Disney. E olha que estamos falando daquele que foi apenas o segundo longa-metragem de animação do estúdio. Lançado em 1940, logo após o sucesso estrondoso conquistado por A Branca de Neve e os Sete Anões, em 1937, o filme era o retrato de uma época em que nem se pensava em discutir muito do que hoje entendemos como absurdo, errado ou, no mínimo, questionável.
A história original de Pinóquio: o conto de Carlo Collodi que ganhou o mundo
Uma reportagem da BBC sobre a história original de Pinóquio mostra como o texto de Collodi refletia muito apropriadamente as dificuldades enfrentadas pela Itália no século XIX. Vinte anos depois da reunificação do país, a pobreza, os inúmeros problemas sociais, a desesperança e a falta de perspectiva davam o tom, e não havia como fugir disso também na literatura. Os contos são sombrios, duros e violentos.
Na história original, Gepeto não era um relojoeiro amável, bondoso e despreocupado com a vida, mas sim um carpinteiro pobre, que passava por muitas dificuldades e, de acordo com seus vizinhos, se comportava de maneira bastante cruel com as crianças.
Pinóquio também não era exatamente o garotinho desengonçado e apatetado que vemos na versão da Disney. Logo no começo da história, quando o Grilo Falante começa a lhe dar conselhos, Pinóquio se irrita e arremessa em sua direção um martelo de madeira que mata o bichinho na hora. Ele até chega a aparecer em espírito para aconselhar Pinóquio em algumas outras ocasiões, mas o menino continua ignorando o que a consciência em forma de inseto tenta lhe dizer.
Já a Fada Azul, que na versão da Disney é a responsável por conceder ao boneco de madeira a possibilidade de se tornar um menino de verdade, em determinado momento chega a fingir-se de morta e aterroriza Pinóquio, fazendo-o acreditar que ela morreu por sua culpa.
O conto de Collodi traz também outros aspectos mais sombrios, como o momento em que um Pinóquio distraído pela exaustão descansa seus pés de madeira molhada sobre um fogareiro e os acaba transformando em cinza e pó. Segundo os estudiosos, a intenção do autor era encerrar as aventuras da marionete com o capítulo em que a Raposa e o Gato enforcam Pinóquio em um carvalho para roubar suas moedas de ouro. Os leitores, no entanto, não ficaram nada satisfeitos com isso e escreveram várias cartas para o jornal pedindo que a história continuasse, o que eventualmente acabou acontecendo.
A versão da Disney em 1940
A versão mais popular de Pinóquio traz Gepeto como um relojoeiro solitário que sonha em ter um filho. Um dia, ele constrói o boneco de madeira e pede à estrela azul mais brilhante do céu que o transforme em um menino de verdade. Logo depois, o bonequinho recebe a visita da Fada Azul que lhe dá vida, ainda que ele continue sendo um fantoche.
A fada diz a Pinóquio que se ele for corajoso, sincero e altruísta poderá, enfim, se tornar um menino de verdade. Gepeto mal pode acreditar que seu sonho se tornou realidade e irradia felicidade quando, no dia seguinte, envia seu pequeno garotinho para a escola.
Os desafios de Pinóquio começam logo depois: ele encontra João Honesto e Gideão, a Raposa e o Gato, que o convencem a se juntar a um show de marionetes. Como ele pode dançar e cantar sem que alguém precise controlar suas cordas, os dois malandros logo percebem que poderão ganhar muito dinheiro às custas do menino.
O Grilo Falante, sempre ao lado de Pinóquio, tenta mostrar o caminho e alerta para os perigos de se juntar ao show de Stromboli, que comanda as marionetes. Mas Pinóquio não quer lhe dar ouvidos, então foge da escola para participar do show e, no final, acaba preso em uma gaiola.
A Fada Azul aparece e questiona Pinóquio sobre o motivo de não estar estudando. Mesmo com as advertências do Grilo Falante para não mentir, o menino de madeira diz tudo menos a verdade. Seu nariz fica enorme, mas mesmo assim a fada se compadece e o tira da gaiola. Ela, no entanto, faz um alerta: se não for bom e obediente, e continuar se metendo em confusão, terá que se virar sozinho, pois ela não virá a seu socorro novamente.
A Ilha dos prazeres
João Honesto e Gideão estão recolhendo meninos desobedientes para mandar a uma ilha onde nada é proibido para crianças. No meio do caminho, os dois encontram Pinóquio que estava indo para a escola e, mais uma vez, conseguem convencer o menino de que a vida é mais do que trabalhar e estudar, e que na ilha ele poderá descansar e se divertir como nunca.
E lá vai Pinóquio de novo pelo caminho que sabe que é errado. Dessa vez, ele vai encontrar um mundo onde não há nenhuma autoridade nem qualquer tipo de limite. Os meninos fumam, bebem, brigam e quebram tudo o que há na ilha sem qualquer tipo de supervisão, orientação ou limite.
Aquilo que a princípio poderia parecer o paraíso para crianças bagunceiras rapidamente se transforma em pesadelo quando os garotos percebem que não podem deixar a ilha, pois estão amaldiçoados e condenados a se transformarem em burros, indo trabalhar carregando peso e carga para o dono do circo.
A cena da transformação de Pinóquio em burrinho é uma das mais impressionantes para crianças (e adultos também, vamos admitir). Quando ganha orelhas e rabo de burro, o menino se desespera e pula no mar com o Grilo Falante, em uma tentativa frenética de escapar da maldição.
Ao voltar para casa, Pinóquio descobre que Gepeto foi à sua procura na ilha, deixando para trás um lar vazio e silencioso. Engolido por uma enorme baleia cachalote chamada Monstro enquanto tentava resgatar seu filho, Gepeto agora vive triste e solitário dentro de sua barriga.
Pinóquio vai atrás do pai e protagoniza algumas das cenas mais bonitas e assustadoras da animação quando é engolido pela baleia e busca resgatar seu pai. Os dois, juntos, bolam um plano de fazer uma fogueira dentro do estômago da baleia, fazendo ela espirrar com a fumaça e jogar os dois para bem longe.
O plano dá certo, mas ao perceber o que aconteceu a baleia furiosa passa a perseguir Pinóquio, Gepeto, o gatinho Fígaro e a peixinha Cleo implacavelmente. Depois de muita luta e desespero, quase todos se salvam ao chegar à costa. Pinóquio está desacordado e parece ter morrido afogado.
A compaixão da Fada Azul
Gepeto e o Grilo Falante ficam arrasados com a perda de Pinóquio e choram copiosamente ao lado de seu corpo inerte. Neste momento, mais uma vez aparece a Fada Azul, e percebe que mesmo com tantos erros e equívocos o menino cativou o amor verdadeiro daqueles à sua volta, tendo sido leal e corajoso, e lutado com todas as suas forças para proteger e ajudar seu pai, reparando os erros que cometeu.
Assim, com um passe de mágica, a Fada Azul faz as orelhas e a cauda de burro que Pinóquio ainda trazia da Ilha dos Prazeres desaparecerem e, enfim, o transforma em um garoto de verdade, reconhecendo seu coração como sendo puro e merecedor.
A versão de Matteo Garrone de 2019
Lançado nos cinemas em 2019, o filme estrelado por Federico Ielapi e Roberto Benigni traz consigo alguns elementos mais próximos do conto original de Collodi. Aqui, o Gepeto interpretado por Benigni é um carpinteiro que assiste a um festival de marionetes e decide construir seu próprio boneco.
Quando percebe que sua criação surpreendentemente tem vida, Gepeto passa a tratá-lo como um filho, mas Pinóquio foge em direção à cidade e em busca de aventuras. O Grilo Falante, que é colega de quarto de Gepeto, tem o mesmo fim que o inseto no conto original: leva uma martelada na cabeça quando seus conselhos são tidos como chatos e inconvenientes.
O live action da Disney com Tom Hanks em 2022
Assim como outros longas de animação dos estúdios Disney, como Aladdin, O Rei Leão e, mais recentemente, A Pequena Sereia, a história de Pinóquio contada pela Disney também ganhou uma versão repaginada em live-action e trouxe o ator Tom Hanks no papel de Gepeto.
Apesar de a história ser a mesma contada pela animação de 1940, e de os críticos a terem avaliado como tecnicamente perfeita, nem mesmo o peso do nome de Tom Hanks conseguiu garantir o sucesso que era esperado.
A imagem do boneco Pinóquio no live-action foi comparada a um produto de merchandising da animação original, e dentre várias outras críticas algumas disseram até mesmo que o filme simplesmente não tem coração.
Pinóquio de Guillermo del Toro
Vencedor do Oscar de Melhor Animação em 2023, a versão de Guillermo Del Toro para Pinóquio levou o prêmio, mas não o coração do público. Com exceção daqueles que já eram fãs ardorosos do diretor, a grande audiência não chegou a se comover com a versão produzida pela Netflix.
A história se passa na Itália da Segunda Guerra Mundial, e além do enredo do conto original tem também outros grandes elementos, como o fascimo, o luto e a solidão. As características visuais e as narrativas das histórias contadas por Del Toro estão todas lá, e tecnicamente não se pode dizer um “a” sobre o filme, especialmente com todo o encantamento que animações em stop motion costumam provocar.
É uma obra que vale a pena ser vista, claro, especialmente se você é fã do personagem. Algumas cenas parecem pinturas de tão belas, e há diversos elementos do roteiro que parecem novos e inexplorados quando consideramos o conto original.
A humanidade de um boneco de madeira
Um dos aspectos que torna Pinóquio um personagem tão fascinante até hoje é a capacidade que temos de nos reconhecer nele. Um pequeno boneco de madeira que deseja ser um menino de verdade e para isso precisa crescer, amadurecer, se transformar, compreender seus erros e repará-los.
Além do próprio Pinóquio, os outros personagens do conto original também se parecem bastante conosco, pessoas que conhecemos e com quem convivemos no dia a dia. No geral, todos nós somos capazes de fazer coisas boas e ruins, de sermos generosos e egoístas, covardes e corajosos.
Faça com a gente um pequeno exercício: quantas vezes, assim como Pinóquio, você percebeu que havia tomado o caminho errado e, ainda assim, persistiu nele, dando passo após passo?
A jornada de Pinóquio possivelmente nos encanta porque, assim como nós mesmos, ele também é feito de sombra e de luz. Um boneco de madeira ambíguo, demasiadamente humano.