Se você é mãe, pai ou cuidador de uma menina, provavelmente já chamou ou ouviu alguém chamá-la de princesa. Esse, que parece ser um elogio tão comum e inocente, acaba por colocar uma carga bastante pesada sobre a criança sem que a gente sequer se dê conta, já que desde muito cedo incentiva uma associação equivocada e perigosa entre o valor da menina (para si mesma, sua família e amigos, e para a sociedade) e suas características físicas e comportamentais.
Se a princípio você acha que dizer isso é forçar a barra, vem com a gente refletir um pouco mais a respeito do que faz meninas serem consideradas princesas e os riscos que isso pode trazer para elas, ainda na infância e também na vida adulta.
O que faz uma menina ser considerada uma princesa
Como você já pode imaginar, as princesas usadas como referência aqui são mesmo as da Disney, especialmente as clássicas. Branca de Neve, Bela Adormecida, Cinderela e Ariel costumam figurar no topo da lista das princesas mais adoradas por meninas.
O que elas têm em comum? São delicadas, falam quase sussurrando, seus cabelos estão sempre impecáveis, bem como suas roupas. Essas princesas dependem sempre de uma figura masculina para resgatá-las e defendê-las, seja de uma bruxa, dos perigos da floresta ou das consequências de atos nocivos praticados por elas mesmas, que frequentemente são retratadas como pessoas não muito espertas, para dizer o mínimo.
Uma princesinha, portanto, se comporta muito bem, não fala demais, está sempre bonita e bem cuidada, é obediente e coloca os desejos e vontades de outras pessoas sempre antes das suas próprias.
Além disso, especificamente sobre o que elas representam em termos de estereótipos físicos, temos mulheres magras, de pele branca e cabelo liso, muitas vezes com olhos claros. Elas não comem, não transpiram, não se sujam. Assim, estamos dizendo implicitamente que qualquer coisa diferente desse modelo não tem espaço, não é belo, não tem valor e, consequentemente, não é digno de amor. Afinal, que príncipe escolheria uma princesa que corre, pula, se suja, vive aventuras e, sobretudo, pensa por si mesma e não precisa dele para resolver seus problemas?
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Os perigos dos estereótipos para crianças
Aqui no Quindim já conversamos algumas vezes sobre questões de gênero. Assim, você talvez já esteja mais atento a como os estereótipos estão fortemente presentes no dia a dia de todos nós, atenção essa que é o primeiro e mais importante passo para lutar por uma transformação profunda da sociedade.
Quando estabelecemos que meninas são princesas, automaticamente estamos colocando nossas pequenas em uma posição vulnerável, frágil, dependente e passiva, sem qualquer iniciativa, de alguém que depende de uma figura masculina para resgatá-las e dizer o que fazer com suas próprias vidas. Essa figura salvadora, você provavelmente já adivinhou quem é: os meninos, os príncipes encantados.
“o que nós faremos agora?“
Recentemente, viralizou um vídeo de 2015 da atriz americana Reese Witherspoon na premiação Glamour Women of the Year (Mulheres do Ano, da Revista Glamour) em que ela fala sobre a pergunta mais detestável da indústria do entretenimento e que, ainda assim, está presente em praticamente todos os roteiros de filmes, séries e peças, especialmente aqueles sem mulheres envolvidas na produção. A frase em questão é: “o que nós faremos agora?”.
A atriz fala intensamente sobre o seguinte contexto: o fatídico momento, presente em quase todas as histórias, sejam elas de terror, aventura, suspense ou romance, em que uma mulher, supostamente sem a menor ideia do que fazer diante de um problema, se vira para o homem, faz essa pergunta e aguarda avidamente pelas instruções que só ele é capaz de dar.
Assim como Reese diz no vídeo, nós sabemos, obviamente, que na vida real não é assim que funciona. Mulheres têm capacidades inúmeras, e somos perfeitamente capazes de resolvermos nós mesmas nossos próprios problemas, além de liderar pessoas de todos os tipos na resolução de desafios e crises.
A questão é que esse tipo de representação, normalmente construído sobre estereótipos de mulheres bonitas e burras (outra associação ilógica), princesinhas lindas, inocentes e inaptas, reforça a ideia de que não somos capazes de desempenhar qualquer papel. Que não temos competência para ocupar todos os espaços, inclusive aqueles majoritária e historicamente preenchidos por homens.
Esse é um dos maiores riscos de chamarmos nossas meninas de princesas, pois desde muito cedo elas podem acreditar que precisam de figuras masculinas para resolver suas questões e que não tem condições de fazer isso por si mesmas, comprometendo seriamente sua autoestima e autoconfiança, crenças estas que podem levar anos até serem desconstruídas.
O outro lado da moeda, que atinge os meninos e também é extremamente pesado, reforça traços de masculinidade que sabemos serem tóxicos e eventualmente acabam voltando para atingir novamente as mulheres. Afinal, um príncipe encantado deve ser sempre bravo e corajoso, agressivo até.
Ele jamais sente medo ou tristeza, e a emoção dominante costuma ser a raiva. Um príncipe foi feito para viver uma vida de aventuras, batalhas e conquistas, enquanto a frágil princesa toma conta do castelo e das crianças – permanecendo linda e disponível, para quando o príncipe voltar.
Príncipes e princesas da vida real
Esses estereótipos estão entranhados na sociedade e em nós mesmos, e é preciso estarmos muito atentos para não reproduzi-los, ao mesmo tempo em que lutamos ativamente contra eles. Não estamos dizendo, com isso, que sua menina não possa usar vestidos rodados cor-de-rosa, ter cabelos longos e ser delicada, mas sim que ela precisa conhecer e compreender outras maneiras de existir no mundo como igualmente válidas, dignas de respeito e amor. Durante a infância, muitas vezes, isso será mediado por você.
Dessa maneira, conseguimos diminuir as chances de ela se sentir inadequada, indesejada e não pertencente caso não se encaixe nesses padrões de beleza e comportamento. Além disso, ajudamos a evitar que ela os busque a qualquer custo na vida adulta, justamente por compreender que ter uma ou mais características que compõem esses estereótipos não representa, nem de longe, os principais motivos para que ela seja amada, querida e tenha valor como ser humano (sobretudo, para si mesma).
Então, além de abandonar de vez os termos “coisa de menina” e “coisa de menino”, você pode adotar algumas atitudes importantes para fortalecer a autoestima e a autoconfiança das suas crianças, especialmente das meninas, evitando que se transformem em princesas da vida real.
1 – Criança tem que se sujar
As aprendizagens e as descobertas na infância são intensas, então é natural que uma criança se suje, fique suada, com roupas e cabelos bagunçados. Para que isso aconteça da maneira mais natural possível, escolher roupas adequadas para cada atividade é um bom começo, pensando sempre na liberdade de movimentos da criança em cada situação.
Um vestido longo, com saia rodada e volumosa, pode ficar sujo e até se rasgar durante a brincadeira no parquinho, além de atrapalhar bastante corridas, saltos e escaladas. Então, ajude sua filha a compreender que há ocasião para todo tipo de roupa, mas não deixe que ela se limite por conta do que está vestindo.
Para evitar broncas e estresse desnecessários, procure pensar no seguinte: se pode ser resolvido com água e sabão, não vale a pena se estressar nem fazer a criança se sentir mal por se sujar, correr, brincar e ficar descabelada.
2 – O importante é o indivíduo, não o gênero
Meninas são criadas, sistematicamente, para serem mães e donas de casa, pessoas sempre gentis, altruístas e generosas. Os meninos, por outro lado, são educados para serem agressivos, aventureiros, desbravadores, conquistadores (de coisas e pessoas). Além de pesos desnecessários na infância, esses estereótipos podem gerar conflitos muito intensos na vida adulta.
Então, foque na sua criança, na personalidade dela, enxergue-a como o ser humano único que é, e ajude-a a descobrir o que gosta de fazer, em que coisas é boa, e em quais outras precisa melhorar. Não restrinja atividades e experiências em função do gênero.
Para colocar isso em prática, ofereça brinquedos de todo tipo a ambos: bolas, carrinhos, blocos de montar, panelinhas, bonecas e utensílios domésticos podem ser brinquedos para crianças de todos os gêneros. Permita que as meninas experimentem aulas de judô, jiu jitsu e futebol, e não só balé e ginástica artística. Os meninos, por sua vez, podem fazer aulas de artes e culinária também. Por que não?
Toda criança precisa desenvolver hábitos e habilidades que irão ajudá-las a se conhecer, a compreender do que são feitas, a se desenvolver como ser humano e, finalmente, a contribuir para uma sociedade mais justa e com equidade para todos.
3 – Essa tal felicidade
O conceito de felicidade é amplo e mutável. O que faz um indivíduo feliz e realizado hoje pode ser muito diferente do que é importante para o mesmo indivíduo daqui a cinco anos e ainda mais diferente para outra pessoa. Se isso se aplica a irmãos, criados na mesma casa e da mesma maneira, imagine para pessoas que nem se conhecem? Então, tome muito cuidado para não mostrar para os seus filhos que só existe uma noção de felicidade e realização pessoal, seja ela qual for.
Enquanto algumas mulheres desejam muito ser mães, outras não querem filhos. Da mesma maneira, muitos homens adorariam ficar em casa cuidando das crianças enquanto suas esposas trabalham fora. Algumas pessoas sonham com uma casa cheia de filhos e cães correndo no quintal, outras querem viajar o mundo sozinhas. Todos os sonhos são válidos e devem ser respeitados.
Da mesma maneira, tome cuidado ao associar a felicidade a algo feito por outra pessoa, pois para a criança pode significar que só seremos felizes quando o outro fizer ou disser isso ou aquilo. A felicidade é subjetiva, mas deve ser buscada primeiro em nós mesmos, nas nossas ações. Como ajudar seu filho a descobrir o que o faz feliz?
Veja também: Ditadura da felicidade: o que há por trás desse mal do nosso tempo.
4 – Afeto, amor e atenção são mais importantes do que presentes
Quem cuida de uma criança sabe que uma das maiores alegrias da vida é conseguir realizar um desejo do pequeno: pode ser aquele jogo que a criança vinha pedindo, um sorvete depois da escola, ou um passeio com o melhor amigo. Nos sentimos plenos e realizados, e é maravilhoso ver o sorriso estampado no rosto do pequeno.
Mas, como em tudo na vida, é preciso buscar o equilíbrio. Não é porque seu filho pediu que você vai atender imediatamente, deixando que ele faça tudo o que quer. Fazer todas as vontades da criança pode levá-la a crescer achando que o mundo inteiro irá agir da mesma maneira, o que sabemos bem que não é verdade.
A frustração de não conseguir alguma coisa, a dedicação necessária para conquistar algo que se deseja e o entendimento que esperar faz parte da vida são professores importantes na infância. Em vez de fazer tudo o que seu filho quer, no exato momento em que ele pede, ensine-o a não desistir quando algo não der certo na primeira vez, a tentar de novo, a se esforçar para aprimorar alguma habilidade e – finalmente – a celebrar sua própria maneira de ser.
5 – Elogiar, sim, mas com consciência
Veja só se isso já aconteceu por aí: sua filha está brincando no tanque de areia do parquinho quando chega uma outra criança e pega a pazinha com que ela mexia na terra. O adulto que acompanha a outra criança não só não orienta o pequeno a pedir emprestado antes de pegar como ainda diz para a sua filha: “nossa, que linda, dividindo o brinquedo!”. Que situação, não é?
Sabemos que, dependendo da idade, pode ser difícil fazer que crianças entendam a importância de pedir um brinquedo emprestado para alguém, em vez de simplesmente tomar da mão de outra criança. Mas ser difícil não é motivo para não fazer, certo? Então, nesse caso, como o outro adulto não falou nada, você mesmo pode dizer para a criança que chegou que isso não está certo. Mas não pare por aí, vá além: pergunte para a sua filha se ela quer emprestar o brinquedo naquela hora.
É claro que é fundamental aprender a compartilhar, e o momento ideal para começar a aprender mais sobre isso é mesmo na infância. Mas sua criança tem direito de não querer ceder o brinquedo naquele momento, pois os sentimentos e emoções dela importam. Agora, imagine só os danos de, ainda por cima, sua filha associar a beleza, ser linda, ao fato de deixar seus sentimentos, desejos e necessidades de lado para agradar outra pessoa? Compreende os perigos disso?
Esse exemplo parece exagerado quando tirado de contexto, mas se pensarmos que esse tipo de coisa acontece o tempo todo, em todo lugar, fica mais fácil entender a importância de mudar. Os elogios não devem ser associados às características físicas da criança – nem para o bem, nem para o mal.
Chamar a criança de linda porque cedeu o brinquedo contra a vontade é tão ruim quanto chamá-la de feia porque não quis dividir. Então, que tal usar os elogios de acordo com a situação? Veja alguns exemplos:
- Em vez de dizer “Que linda, você dividiu o brinquedo!” diga “Filha, é importante aprender a dividir e você foi muito generosa ao emprestar para o amigo. Isso foi incrível!”.
- Em vez de dizer “Nossa, que linda! Terminou o dever de casa e arrumou tudo!”, prefira dizer “Eu percebi que você organizou tudo depois de terminar seu dever de casa. Isso ajuda a manter seu quarto em ordem e é um exemplo para todos nós!”.
- Não diga que a criança é feia porque está gritando. Em vez disso, prefira dizer algo como “Eu sei que você está com fome e cansada. O almoço já está quase pronto, e você pode vir para o meu colo enquanto isso, se quiser.”.
- Não chame uma criança de feia porque ela bateu no amiguinho. Nunca diga “Nossa, como você é feia, bateu no fulano, ninguém vai querer brincar com você!”. Prefira dizer “Não devemos bater no amigo porque machuca. Vamos pedir desculpas e não fazer isso novamente, tudo bem?”.
É muito importante que os elogios estejam diretamente relacionados aos comportamentos e atitudes da criança, e não ao seu aspecto físico. Além disso, procure elogiar o esforço, a dedicação, o comprometimento, em vez de dizer palavras absolutas como “inteligente”, “talentoso”, “genial”. Isso pode fazer com que a criança se sinta incapaz caso, no futuro, não obtenha o resultado que gostaria logo nas primeiras tentativas.
Veja também: Palavras de afirmação: o poder de reforçar aquilo que é bom.
A Disney está mudando – mude você também
As novas princesas da Disney vêm apresentando características e comportamentos diferentes do que estávamos acostumados a ver. Merida, a princesa Valente, tem volumosos cabelos cacheados, é uma excelente cavaleira e arqueira. Mulan vestiu a armadura do pai e partiu para a guerra, Tiana é dona do próprio restaurante, e Anna, irmã de Elsa, dorme de boca aberta e até ronca. Sem falar na Moana, que desafia tudo e todos que teimam a dizer que ela não vai dar conta. Adivinhe só: ela dá, sim.
Essas princesas, mais parecidas com meninas e mulheres da vida real, são reflexo, também, de uma sociedade em transformação. Estamos abrindo, à custa de muita luta, novos espaços e oportunidades para pessoas diversas ocuparem todas as posições da sociedade.
Aqui no Quindim o livro “O sapo que não queria ser príncipe” foi enviado recentemente aos assinantes. A obra de José Rezende Júnior, com ilustrações em colagem de Catarina Bessell, fala de um sapo que está mais do que satisfeito com sua vida de sapo e não quer nem saber de ser príncipe. Pelo meio do caminho ele encontra uma menina que não quer nem pensar em se casar, que dirá com um príncipe encantado, muito menos ainda para se tornar princesa.
Histórias como essas nos ajudam a enxergar o que sempre esteve aqui: as pessoas são diferentes, querem coisas diferentes, se expressam de maneiras diferentes, e esse é um direito que deve ser assegurado a todas as crianças. Imagine quanto sofrimento não podemos poupar aos nossos filhos se eles perceberem, desde cedo, que existem muitas maneiras de existir no mundo, e que todas elas são válidas. Ainda mais, que eles não precisam se podar e punir para vestir uma versão que só existe na nossa cabeça.
O que conquistamos ainda é pouco diante do que queremos, e há um longo caminho a ser percorrido. Mas, acredite: o mundo, por si só, vai fazer de tudo para colocar nossas filhas, nossas crianças, em caixinhas pequenas demais para comportar a grandeza delas. Que esse processo, então, não comece por nós. Justamente o contrário: que sejamos os primeiros a encerrá-lo.