Vamos começar este artigo pedindo que você faça um exercício de imaginação conosco. A cena é a seguinte: uma família com pai, mãe e duas crianças, com 1 e 5 anos de idade, combina de fazer uma viagem de avião logo na primeira semana das férias escolares. O destino é um lugar de praia, que costuma ser muito frequentado por famílias nesse período do ano.
Nessa família, todos elogiam o pai porque ele participa bastante da organização das coisas. Ele é um “paizão”, pois pesquisou as melhores opções de voo e hospedagem nos intervalos do trabalho ao longo do dia e à noite, depois de chegar em casa, mesmo cansado. À mãe, que também trabalha fora, coube organizar as malas das crianças.
As opções de voo e hotel que o pai encontrou foram enviadas para a mãe dar uma olhadinha, o que ela fez enquanto dava de mamar para o filho mais novo. Uma das coisas que percebeu é que havia um voo direto para o destino que custaria um pequeno valor a mais no custo total da viagem, o que parecia valer mais a pena do que as quatro horas de conexão da primeira opção. Afinal, quatro horas em um aeroporto parecia tempo demais com um bebê e uma criança pequena.
Já os links dos hotéis enviados pelo pai para a mãe escolher pareciam todos ótimos: tinham boa localização e bom preço. A mãe leu as avaliações de outras famílias enquanto ajudava o filho mais velho a fazer os trabalhinhos da escola, e acabou indicando um que tinha um parquinho coberto, caso pegassem algum dia de chuva, e uma pequena cozinha no quarto, com frigobar e microondas, que certamente quebraria um bom galho com as refeições dos pequenos.
Com tudo resolvido, o pai fez as reservas e os dois dividiram o pagamento. Agora era só arrumar as malas! Como o destino era um lugar de praia, a mãe começou separando pelo menos três roupas de banho (porque poderia não dar tempo de secar entre um dia e outro, e roupa úmida é um perigo para dar fungo), chapéu, protetor solar, toalhas, boias e brinquedinhos próprios para usar na areia.
Depois, colocou shorts, camisetas, calças e casacos (porque o tempo sempre pode virar), chinelos e tênis. Na bolsa dos remédios, além do protetor, colocou repelente, antitérmico (e o termômetro, claro), analgésico, antialérgico, comprimidos para enjoo e para dor de barriga. Incluiu uma pomadinha para picadas de mosquito, soro fisiológico para lavar o nariz, e kit de primeiros socorros, que também não pode faltar.
Organizou uma pequena mochila com brinquedinhos, adesivos, giz de cera e papel para manter as crianças ocupadas durante o voo, preparou vários lanchinhos para os dois e, por fim, pegou os bichinhos de pelúcia favoritos de cada um, sem os quais eles não conseguem dormir de maneira alguma.
Separou os documentos, os comprovantes das vacinas e fez uma lista de contatos de emergência para deixar na portaria do prédio. No dia da viagem, acordou um pouco mais cedo para jogar fora o que estava na geladeira e poderia estragar durante o período da viagem, regar as plantas, tirar o lixo e guardar a roupa que estava no varal. Assim, a sensação de caos da volta da viagem seria um pouco menor.
Foram para o aeroporto e, extraordinariamente, tudo correu bem! Conseguiram pegar o voo na hora e as crianças curtiram a viagem. Quando chegaram ao destino, tanto o pai quanto os pequenos estavam cheios de energia, prontos para brincar e explorar o lugar desconhecido. E a mãe? Bem, as férias acabavam de começar, mas a mãe já estava exausta.
O cansaço materno e a carga mental
Toda essa história que contamos é uma maneira de evidenciar a chamada carga mental: um trabalho invisível, quase que integralmente realizado pelas mães, que consiste no planejamento, previsão de necessidades e antecipação de problemas envolvendo tanto a casa quanto as crianças.
A ilustradora francesa Emma Clit fez uma série de quadrinhos sobre carga mental em 2017, chamada “Você poderia ter me pedido”. Os quadrinhos, que viralizaram no começo da pandemia da Covid-19, facilitam a compreensão do que é carga mental e podem ser lidos aqui, em uma versão traduzida para o português pelo grupo Bandeira Negra.
Vamos retornar à nossa história? No combinado da família, o planejamento do voo e da hospedagem eram tarefas do pai. Mas você percebeu como foi a mãe que identificou a possibilidade de fazer um voo direto, e pensou na conveniência de um parquinho coberto e de uma pequena cozinha no quarto?
Pode não parecer, mas ao enviar as opções para a mãe avaliar, a responsabilidade de pensar nos diferentes cenários e planejar todo o possível para lidar com eles passou a ser dela. Ou seja, o que era para ser uma divisão de tarefas acabou se tornando mais um peso para a mulher carregar.
A carga mental do planejamento, do exercício de prever o imprevisível e desenvolver planos B, C e D caso as coisas não saiam como desejado cansa, e muito. Assim como estar constantemente atenta para suprir as necessidades físicas das crianças (como alimentação, sono e higiene), emocionais e afetivas, como possibilitar que façam desenhos no avião tendo consigo os bichinhos de pelúcia que fazem que se sintam seguros, por exemplo.
Como no caso da família viajando de férias, fica claro que a carga mental das situações que fogem à rotina pode ser ainda mais pesada, visto que não sabemos tudo o que pode acontecer. Mas, mesmo no dia a dia, via de regra são as mulheres que ficam responsáveis por fazer a lista do mercado e planejar o almoço, mesmo que o pai vá fazer as compras e cozinhe.
Outros exemplos de situações são o agendamento das consultas e exames médicos e os eventos que envolvem a escola, como os aniversários dos amiguinhos, o presente da professora, o material reciclado para uma tarefa específica e a fantasia para a apresentação de fim de ano. E esses são apenas alguns casos, cada família tem seus próprios desafios.
Não é só pedir ajuda
É extremamente comum ouvir de homens que basta que a mulher peça ajuda para não ficar tão sobrecarregada. Mas a questão vai muito além disso. Lembra do almoço? Se é preciso pensar no que será feito, conferir a despensa para fazer a lista e dizer o que precisa ser trazido do mercado, a maior parte do trabalho já foi feita. E, nesse exemplo, caso o homem prepare a comida, certamente ele receberá os elogios, porque todo o trabalho de planejamento que foi feito pela mulher permanecerá invisível.
Esse problema tem raízes profundas. Uma das origens está nas diferenças na criação de meninas e meninos, como no tipo de brincadeira considerada “adequada” para cada um, bem como na desigualdade abissal de tempo entre as licenças-maternidade e paternidade.
Veja também: A importância da licença-paternidade para a igualdade de gênero.
Muitos homens ainda se colocam na posição de ajudantes e ficam aguardando comandos ou pedidos (insistentes) para fazer o que precisa ser feito, seja guardar a roupa que está no varal ou recolher os brinquedos com as crianças. Quantas vezes a criança foi atrás da mãe no banheiro para pedir um copo de água, mesmo quando o pai estava sentado bem ao lado dela na sala?
É verdade que a mudança não é fácil para os homens também, pois é preciso estar aberto para promover a desconstrução desse tipo de comportamento, que vem sendo encorajado e sedimentado pela sociedade desde sempre. Mas, conforme esse tema vem sendo trazido à tona, começamos a perceber pequenas mudanças na rotina das famílias.
A sobrecarga materna e a saúde mental feminina
A divisão de tarefas ainda é muito desigual, e a sociedade continua não só encarando como ajuda o papel desempenhado pelos pais, mas prestando homenagens e supervalorizando quando fazem o mínimo com base no pressuposto de que toda a responsabilidade das demandas da casa e das crianças é da mulher.
O resultado, portanto, não poderia ser diferente: mulheres exaustas, deprimidas, com ansiedade, dificuldade para dormir e sem energia para aproveitar os momentos de lazer sozinhas ou ao lado do companheiro e dos filhos. Os relacionamentos, naturalmente, também são afetados por brigas e desentendimentos.
Como quase tudo na vida, a solução passa prioritariamente pelo diálogo. Reconhecer a sobrecarga é o primeiro passo para transformar a realidade. Em alguns casos, poderá ser necessário que a mulher busque ajuda profissional, como acompanhamento médico e psicológico, para conseguir regular o sono e a alimentação, sem os quais dificilmente conseguirá melhorar nos outros aspectos.
O diálogo com o companheiro também é imprescindível para dar início a uma divisão de tarefas real. Se o homem será responsável por cuidar das roupas da família, ele não precisa que a mulher diga que o cesto está cheio para dar início ao processo de separar as peças, colocá-las na máquina de lavar, estendê-las no varal e recolher tudo depois que estiverem secas.
Mudanças possíveis para reduzir a sobrecarga materna
No que diz respeito aos filhos, uma mudança aparentemente simples é incluir o pai nos grupos da escola onde são tratados assuntos diversos, como aniversários dos coleguinhas, os rateios de presentes para as professoras e por aí vai. Mas essa participação, é claro, deve ser ativa. Não basta estar no grupo e não ler e responder as mensagens.
Veja também: Paternidade ativa: o que falta para os pais se envolverem mais?
A atribuição de setores da casa a cada um pode ajudar a fazer que os homens passem a se responsabilizar integralmente por determinadas atividades. Então, se for acordado entre o casal que é o pai que ficará a cargo das faxinas e da manutenção da limpeza, isso significa cuidar de todo o processo para que a atividade seja executada. Não quer dizer que a mulher não possa colaborar nesse quesito, mas sim que a responsabilidade não será mais exclusivamente dela.
A tarefa das mulheres nessa mudança não é menos desafiadora ou importante: fomos tão acostumadas a dar conta de tudo com resignação que é difícil abrir mão de um lugar de controle e deixar as coisas acontecerem. Então, se o pai ficou responsável por cuidar da fantasia da festa de fim de ano das crianças e deixou isso para a última hora, é algo que ele precisará resolver.
Quando envolve as crianças é doloroso, muitas vezes, deixar o barco correr sabendo que os pequenos poderão ser prejudicados. Mas faz parte do processo de levar os homens a assumirem a responsabilidade pelas coisas que fazem – e pelas que não fazem, também.
A culpa que costuma estar associada a essas mudanças é muito grande e frequentemente desencoraja as mulheres. O sentimento de que somos mães ruins, ausentes e egoístas é, por vezes, avassalador. Sendo assim, é natural que a mudança leve tempo, mas é necessário persistir – e resistir.
Por isso, quando for sair de casa para fazer alguma coisa por si mesma, deixando as crianças e as tarefas a cargo do pai, lembre-se de que você não é uma mãe ruim. Você é uma pessoa como todas as outras e precisa cuidar de si, inclusive para que consiga exercer sua função como mãe de maneira saudável.