Nessa importante obra do realismo crítico da literatura juvenil, lançada em 1989, a escritora Geni Guimarães, nos conta em primeira pessoa, as vivências de sua infância, adolescência e juventude no seio de sua afetuosa família. Viveu e cresceu num recanto rural desse imenso Brasil. Era uma criança curiosa, adorava desvendar os porquês das coisas e contava com seus pais na intensa e desbravadora jornada de amadurecimento de vida.
Geni é uma menina negra. Quando pequena, por mais que tentasse, não entendia porque a sua cor não desbotava como a das outras crianças. Com a chegada de seu irmão mais novo Zezinho, fechou-se em seu próprio mundo, sentia que ninguém a notava, não era a prioridade na família, pois já era "mocinha" e podia esperar...
Todos achavam que ela estava doente e providenciavam chás para curá-la. A verdade era que Geni sofria por saudade dos detalhes perdidos: o colo, a comida na boca, os olhares carinhosos e a atenção dos adultos. Não tardou, ela logo se deu conta de toda a importância que tinha para a sua família.
Já maior, iniciou os estudos. Orgulho de seus pais, cabelo trançado, roupa limpa, alpargata nova, material separado, tudo tinha que ser perfeito. Quando questionou seus pais o porquê de todo esse cuidado, já que sua amiga Janete ia toda bagunçada, ouviu a resposta: - A Janete é branca!.
- Pelo amor de Deus, não vai esquecer o nariz escorrendo. Lava os olhos antes de sair.
- Se a gente for de qualquer jeito, a professora faz o quê? - Perguntei.
- Põe de castigo em cima de dois grãos de milho. - Respondeu-me ela.
- Mas a Janete do seu Cardoso vai de ramela no olho e até muco no nariz e...
- Mas a Janete é branca. - Respondeu minha mãe antes que eu completasse a frase.
Única negra na sala de aula, sentiu desde pequena o peso de todos os julgamentos que sua cor de pele e condição social suscitavam, chegando ao ponto de sufocá-la, como no dia de comemoração da libertação dos escravos. Notou que a história de um povo corajoso e forte que ouvia de Vó Rosária contrastava com o que ouvia de sua professora branca, um povo fraco e digno de pena. Naquele dia sentiu mal e tentou “apagar” a sua cor com a mistura de tijolo moído que sua mãe ariava as panelas.
Com a força e apoio da família, que lutava para combater opiniões e expectativas contrárias, decidiu seguir estudos. Queria ver e sentir o orgulho de seu pai da mesma forma quando ele viu a notícia falando de Pelé. Ia virar professora!
A história de Geni Guimarães nos permite mergulhar nos enfrentamentos e na superação perante a vida, por ser mulher e negra. Uma autobiografia instigante, crítica, que se faz extremamente relevante e atual. Um texto que abre reflexões sobre uma sociedade enraizada em distintas formas de racismos e que insiste em mascará-los, dada a importância da representatividade e da solidariedade entre mulheres.