Toda pessoa que cuida de crianças já passou por “perrengues” na vida. Especialmente nas cidades grandes, não encontramos com facilidade espaços próprios para trocar fraldas e amamentar, por exemplo, e há muitas calçadas onde transitar com o carrinho de bebê pode ser mais desafiador do que encarar uma trilha.
Os espaços públicos, de maneira geral, não são pensados para mulheres e crianças. Ainda não participamos com a força necessária dos debates que nos colocam no centro das decisões, ao mesmo tempo em que muita gente ainda acha que para um local ser considerado inclusivo basta ter área kids. Passa por isso, também, mas nem de longe se resume a esse aspecto.
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A mobilidade urbana e o acesso aos espaços públicos de lazer
É comum pensarmos em mobilidade urbana somente quando o assunto está relacionado ao deslocamento em função do trabalho, mas ela também precisa ser considerada quando nos movemos por conta de relações pessoais e para acesso ao lazer.
Segundo Munah Malek, socióloga, mestre em História, pesquisadora, escritora e consultora especializada em políticas de gênero, raça e direito à cidade, estudos como o Urban95, da Fundação Bernard Van Leer, mostram que o mais saudável seria que todos nós tivéssemos acesso a um espaço de lazer localizado a, no máximo, 800 metros de nossas casas, mas isso claramente não acontece.
“Há muitos anos as cidades são planejadas para proporcionar uma melhor circulação de carros, e não de pessoas. Se associarmos isso ao fato de que a imensa maioria dos cuidadores primários das crianças são mulheres, e que o acesso ao lazer está restrito às zonas ricas das cidades, estamos falando de mães e crianças que ficam encarceradas dentro do espaço doméstico”, afirma Munah.
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Mulheres e crianças e o transporte público
Um estudo sobre os padrões de deslocamento em São Paulo atesta aquilo que podemos ver diariamente em todas as cidades: enquanto homens se deslocam de casa para o trabalho com eventuais idas ao mercado, majoritariamente de carro, as mulheres vão e voltam do trabalho, levam e buscam crianças nas escolas, e são acompanhadas por elas em idas ao mercado, farmácia, consultas médicas e muito mais, a pé ou por meio do transporte público.
Quando pensamos sobre mães de crianças atípicas, por exemplo, devemos considerar que em sua maioria essa é uma parcela da população que necessita se deslocar por diversos bairros da cidade para garantir que seus filhos tenham acesso a diferentes tipos de terapias, que podem significar muito para o desenvolvimento das crianças.
Com isso, se não pensarmos em bilhetes integrados, gratuidade ou acesso ilimitado ao transporte público, o valor gasto somente nesse deslocamento pode comprometer uma fatia considerável do orçamento da família. E, caso a mãe tenha mais de um filho e não tenha com quem deixá-lo, o que também é muito comum, o gasto aumenta mais ainda, visto que terá de levá-lo consigo.
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Questões básicas de saúde e bem-estar pelo olhar de mulheres e crianças
Você já reparou como é difícil acessar um ônibus com uma criança pequena ou de colo? Para começar, os degraus são enormes. Se seu filho for maior de seis ou sete anos, provavelmente vai receber olhares tortos se estiver sentado num banco e algum adulto estiver de pé, ainda que sua criança também tenha pagado passagem.
Caso o ônibus esteja lotado e vocês não consigam lugar para sentar, será preciso torcer para encontrar um espacinho em uma das barras verticais para segurar, já que as outras ficam bem lá em cima e são inacessíveis para a maior parte dos usuários – que, inclusive, são as mulheres e, portanto, têm em média 1,62 m de altura.
Muitos de nós não estamos habituados a fazer esse tipo de reflexão sobre os espaços públicos que frequentamos, mas para verdadeiramente transformar cidades em locais mais inclusivos para mães e crianças é preciso olhar o todo. Como ainda estamos lutando por questões básicas de acesso à saúde, educação, segurança e lazer, frequentemente naturalizamos o que não deveria jamais ser normalizado.
“Você acessa espaços se tem renda. Não adianta ter área kids num bar onde você não consegue chegar porque mora longe e onde não tem dinheiro para pagar a conta”, ressalta Munah.
Nas regiões periféricas do país, por exemplo, onde notadamente residem pessoas com pouco ou nenhum acesso à renda, temos os chamados desertos verdes que, segundo Munah, são áreas onde as pessoas não conseguem ter acesso à comida de verdade, com frutas, verduras e legumes frescos.
Para a pesquisadora, se não houver equiparação dos salários entre homens e mulheres e políticas de transferência de renda não há como mudar. Muitas pessoas não conseguem sequer pagar as passagens de ônibus ou trem, que dirá acessar e ocupar espaços de lazer.
“Pensar o direito às cidades, para as crianças e para as pessoas cuidadoras, é pensar estratégias de segurança alimentar, de mobilidade urbana, de transferência de renda e de espaços públicos que sejam mais convidativos. As jornadas laborais também precisam ser repensadas, porque é impossível acessar espaços públicos de lazer com crianças se você sai de casa às cinco da manhã e volta às oito da noite”, reforça.
Acessibilidade e inclusão no dia a dia
Como a maioria dos cuidados com crianças recai sobre as mães e outras mulheres em geral, como avós, tias, professoras e babás (que frequentemente deixam seus próprios filhos aos cuidados de outras mulheres para exercer essa atividade como profissão), quando falamos em excluir uma criança de alguns espaços públicos, fica implícita também a exclusão da mãe.
Passar por um bar no domingo na hora do almoço e ver muito mais homens do que mulheres naquele ambiente pode até parecer algo comum e natural, mas não é. Essa é uma ideia construída, assim como o entendimento de que é natural que as mulheres permaneçam boa parte do tempo em casa, preparando as refeições, cuidando das crianças e dando conta dos afazeres domésticos.
Parece absurdo, mas ainda é preciso defender ativamente o direito das mulheres ao lazer e ao descanso. Somos todos criados para ver beleza na exaustão da mãe que dá conta de tudo sozinha e que sofre para não deixar nada faltar aos filhos, e também para atirar pedras na mulher que se organiza para sair com as amigas enquanto as crianças ficam com o pai.
Comentários como “seu marido não liga de você sair sozinha?” ou “o pai vai ficar de babá hoje para você curtir?” reforçam essas questões que muitas mulheres, inclusive, reproduzem sem perceber. Por isso, é de fato fundamental pensarmos em questões como banheiros masculinos e femininos que tenham trocador, restaurantes e bares com cadeirinha e área kids, e calçadas amplas e planas para transitar com carrinhos.
Mas, indo além, as calçadas devem ser acessíveis também para pessoas que usam cadeiras de rodas. As portas devem ser largas para permitir a passagem de carrinhos, mas também o trânsito de pessoas obesas. Os shows de música e as peças de teatro devem incluir todo tipo de manifestação cultural, não apenas da elite branca do país.
Precisamos, todos nós, pensar e repensar as cidades e os espaços públicos, o acesso à cultura, ao lazer e à alimentação em uma perspectiva de gênero e raça, pois isso impacta diretamente no nosso modo de ver as coisas como indivíduos e, sobretudo, como sociedade.
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Os impactos e o alcance do movimento Childfree
Ainda que o movimento childfree tenha surgido com a proposta de defender o direito de mulheres que desejam viver uma vida sem filhos, com o passar do tempo ele foi se transformando.
Hoje, o que vemos é uma naturalização da rejeição à presença de crianças em diversos espaços públicos. Com exceção dos locais onde há risco evidente para a integridade das crianças, como casas de apostas e clubes noturnos, por exemplo, não faltam restaurantes, hotéis e pousadas onde a presença dos pequenos não só não é bem-vinda como também é proibida.
Sinais onde se lê “não aceitamos crianças” ou “menores de idade apenas a partir dos 16 anos” se tornaram comuns mas, ainda assim, são inconstitucionais. Basta fazer a correspondência com qualquer outro grupo de pessoas para compreender o absurdo.
Todos nós precisamos, com urgência, refletir e agir em prol de mudanças para transformar essa sociedade em que as opiniões, necessidades, desejos e sonhos de mulheres e crianças não são ouvidos nem considerados.
“Garantir cidades que são confortáveis para mães e para suas crianças é garantir cidades que são boas para todo mundo. Se você tem espaços de sentar e de brincar, obviamente isso vai beneficiar todas as pessoas. Pessoas idosas, homens, mulheres, crianças, jovens, todas essas pessoas serão beneficiadas por esses espaços onde a diversidade seja abraçada, onde a pluralidade seja abraçada”, conclui Munah.
Estante Quindim
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