A seleção brasileira de futebol feminino deixou a Copa do Mundo Feminina, que vai até o fim de agosto, mas era uma das favoritas para o título. Quem vê a atuação das jogadoras em campo não imagina que, entre os anos de 1941 e 1983, mulheres e meninas brasileiras eram proibidas de jogar futebol. Por mais de 40 anos, um decreto-lei assinado pelo então presidente Getúlio Vargas, vetou a prática de qualquer esporte “violento” às mulheres, com a justificativa de que eles seriam incompatíveis com as condições biológicas femininas. Por trás da proibição, o machismo estava — e ainda está — presente, dentro e fora de campo.

Meninas pré-adolescentes treinando em coletivo.
Meninas treinando em time categoria sub-11. Crédito: Danilo Verpa/Folhapress.

Bem antes da lei, no entanto, já havia mulheres jogando futebol no país. E não apenas jogando: narrando as partidas, mesmo que de forma ficcional, ou escrevendo sobre o tema, como cronistas e jornalistas, explica a historiadora Aira Bonfim, autora do livro Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos e subúrbios, uma história social (1915-1941), lançado no mês passado.  

“Tenho utilizado a história como um lugar para desqualificar alguns sensos comuns das relações esportivas, principalmente das relações de gênero, que afetam mulheres adultas, mais principalmente a iniciação esportiva, que se dá com crianças”, afirma. “Quando a gente dá um passo para atrás e olha para o histórico de formação das modalidades esportivas em geral no país, para além do futebol, encontramos um contexto de mais de 100 anos onde as meninas nunca foram convidadas a fazer parte desse circuito“.

Mas elas estavam lá. O futebol, que foi importado do Reino Unido, já chegou ao Brasil como uma atividade de homens para homens. No entanto, mulheres e meninas encontraram brechas para estarem presentes: elas participavam das chamadas “festas esportivas”, cuja principal atração era um torneio masculino, disputado por homens, mas que englobavam outras atividades, como bailes, festas e até apresentações circenses. Eram nesses ambientes que se viam principalmente as meninas e adolescentes interessadas em jogar futebol.

“Elas desciam das arquibancadas, que já era um lugar muito ocupado pelas mulheres, e iam para o campo, jogar e brincar. A gente tem essas evidências muito marcadas já no início do século 20”, pontua Aira, que também foi coordenadora e coautora da publicação infantojuvenil Histórias da Copa América Feminina, lançado no ano passado.

Pacaembu lotado

Foto aérea antiga do estádio do Pacaembu, em São Paulo.
Antiga foto do Pacaembu, estádio que tradicionalmente já recebeu grandes públicos. Crédito: Gazeta Esportiva.

Uma das primeiras fotos dessa época que conhecemos nos dias de hoje data de 1915. Nela, sócias da equipe do Vila Isabel, no Rio de Janeiro, um dos principais clubes da época, aparecem disputando uma partida no campo do zoológico, em São Cristóvão. Também há registros similares no Rio Grande do Norte — um deles é a capa do livro de Aira —, datados de 1920.

No Rio, ainda na década de 1930, já era realizado um circuito de futebol feminino com mais de 15 equipes, a maioria delas oriundas do subúrbio carioca. Como o esporte começava a se tornar popular, as jogadoras apareciam nos principais jornais da época, em fotos ou dando entrevistas — alguns deles publicavam até descrições técnicas dos jogos

Eram jovens mulheres e adolescentes que ganhavam dinheiro com o esporte, e algumas equipes tinham até patrocínio. As jogadoras da época eram famosas a ponto de receberem inúmeros convites para jogar fora do Rio de Janeiro. Em um dos episódios mais emblemáticos, jogadoras da equipe do Flamengo foram até a cidade de São Paulo participar de um amistoso contra o clube, arrastando 80 mil pessoas que lotaram o estádio do Pacaembu, recém-inaugurado.  

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O livro também revela histórias sobre mulheres incríveis como a primeira-dama e jogadora Jandira Café; de Cleo de Galsan, irmã da escritora e desenhista Pagu, a primeira cronista esportiva do Brasil; além de depoimentos das jogadoras Jeanne Brule e Adiragram e a passagem da feminista francesa Alice Milliat pelo Brasil, entre outros exemplos.

“Todas essas histórias mostram que já existia o interesse, há mais de cem anos, por parte das mulheres de vivenciarem o futebol”, conta a historiadora. “Elas eram protagonistas no principal esporte da época“.

Papel da escola

Em 1941, no entanto, o decreto de Vargas freou esse movimento em ascensão e passou a impedir o envolvimento das brasileiras com o esporte. E não apenas com o futebol: a legislação vetava a participação das mulheres nos jogos e a presença delas nos estádios, mas também proibia o ensino nas escolas de qualquer esporte tratado como “violento” na época — ou seja esportes de contato físico, como o polo aquático, ou que exigiam força, como todos os tipos de luta. 

“Por isso, quando olhamos para a geração que nasceu na década de 1980, como a minha, entendemos porque era mais comum e normal, entre aspas, que as meninas fossem jogar vôlei e outros esportes”, explica Aira. “O futebol passou a ser de alguma forma exclusivo a homens e meninos. Só eles poderiam sonhar com uma profissionalização. Olhando através da história vemos como isso foi construído, e só agora temos oportunidade de reparar essas desigualdades esportivas. Ou seja, fazer do futebol uma grande metáfora sobre igualdade, onde as meninas e os meninos podem enfim ter o direito de experimentar a atividade física que quiserem“.

A historiadora também fala sobre o papel dos educadores nessa reparação.

“É responsabilidade da escola estar atenta e pensar a iniciação esportiva de forma muito mais democrática, e por que não, como uma grande ferramenta para reparar essas desigualdades que também são de gênero mas não só. Perdemos muito tempo com uma educação física que naturalizou e não questionou essas imposições. Hoje, temos condições de fazer essa reparação desde o início. De apresentar o futebol como uma grande ferramenta de liberdade, onde as crianças podem ser muito mais plenas”.

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EXPOSIÇÃO “Rainha de Copas”: A CONQUISTA DO FUTEBOL FEMININO

Só com o fim da lei, os primeiros campeonatos femininos começaram a acontecer, em 1983. Nessa época, o futebol masculino brasileiro já tinha ganhado três títulos nas Copas do Mundo, em 1958, 1962 e 1970.

E apenas três anos depois do fim da proibição nascia a “Rainha do futebol”, a melhor jogadora da história brasileira: Marta Vieira da Silva, que viveu sua sexta e última Copa do Mundo, aos 37 anos. Eleita pela Fifa a melhor jogadora do mundo por seis vezes, cinco delas consecutivas, Marta é hoje a maior artilheira da seleção brasileira — masculina e feminina.

Foto de mulher com a camisa da seleção brasileira comemorando.
Marta: a maior artilheira da história da seleção brasileira. Crédito: Brasil Escola.

Ela e suas companheiras da seleção atual, e das anteriores, como Formiga, Cristiane e Sisi, são também personagens da exposição “Rainhas de Copas”, em cartaz no Museu do Futebol, em São Paulo.  A mostra temporária, que vai até o dia 27 de agosto, destaca as conquistas das jogadoras brasileiras, começando com a participação pioneira do Brasil no Torneio Experimental da China em 1988 — um protótipo do que viria a ser o primeiro Campeonato Mundial oficial da Fifa, em 1991. A exposição, da qual Aira é também co-curadora, ainda dedica um espaço para mostrar a luta das jogadoras pela igualdade.

“Hoje, graças à representação que o futebol feminino ganhou na sociedade, através dos campeonatos nacionais e da seleção brasileira, podemos ligar a televisão ou a internet e nos reconhecer nessas jogadoras”.