Nem bem os bebês nascem, a caderneta de vacinação já passa a fazer parte da vida. Ali, mês a mês, sob orientação dos pediatras e postos de saúde, os pais controlam as vacinas num esforço individual – de proteger o seu bebê – mas também em um pacto social de afastar coletivamente doenças para as quais já existe proteção. Ir ao postinho na data certa ou nas campanhas fez que muitas enfermidades pudessem ser controladas e quase varridas do nosso cotidiano. No entanto, o cenário, que costumava ser positivo, não é mais o mesmo. Preocupando-se com esse cenário atual, o Clube Quindim trouxe essa pontual discussão à tona.
Em julho, os EUA emitiram um alerta para novos casos de poliomielite e, no Reino Unido, o poliovírus – o causador da doença – também voltou a circular nos esgotos de Londres. Casos em Israel e no Malawi também foram registrados no começo do ano. No Brasil, onde a doença foi registrada pela última vez em 1989, ainda não há confirmação, mas especialistas apontam que o panorama é propício para o retorno desta temida doença e de tantas outras que apavoraram os nossos pais e avós no passado. O motivo você já deve imaginar: a queda da cobertura vacinal.
E, veja bem, isso não é recente. Apesar de associada ao período após a pandemia, a baixa adesão vacinal vem desde 2015. Segundo dados do DataSUS, as principais vacinas do calendário infantil do Ministério da Saúde estão abaixo do esperado. “Com a vacina, a gente consegue diminuir a circulação dos vírus e bactérias e com isso, ter as doenças apenas em casos específicos. Cobertura vacinal baixa é sinônimo de risco de retorno de enfermidades que a gente hoje já pode prevenir”, elucida a pediatra Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Veja também: Vacinas do bebê: como manter o calendário de vacinação em dia ajuda a deixá-lo mais saudável.
Queda mundial e perigo nacional
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) divulgaram, em julho, a maior queda nas taxas de vacinação em 30 anos. E já avisaram: as consequências serão medidas em vidas perdidas. Apenas para se ter uma ideia do estrago, no Brasil, a cobertura contra pólio, por exemplo, despencou de 84,19%, em 2019, para 70%, em 2021.
“O futuro é sombrio. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), o Brasil é um país com alto risco de reintrodução da poliomielite, caso a gente não consiga reverter essa baixa cobertura. E, infelizmente, a campanha de vacinação que foi feita em agosto não conseguiu atingir a meta mesmo com prorrogação”, comenta Francisco Ivanildo de Oliveira Junior, gerente médico e Infectologista do Sabará Hospital Infantil.
Os dados da vacinação de meningococo C são ainda mais assustadores: de 98,19% de cobertura, em 2015, para 47,34%, em 2022. Não é à toa que estamos vendo mais casos de meningite nos noticiários do Brasil todo. Só em São Paulo, 30.000 pessoas precisaram ser imunizadas contra a doença em outubro, depois de surtos serem notificados pela Secretaria de Saúde.
Cadê a cobertura vacinal que estava aqui?
Triste pensar que, se antes o Brasil era visto como um exemplo de vacinação por conta do Programa Nacional de Imunizações, criado em 1973 e reconhecido mundo afora, agora vivemos uma realidade diferente. “Se não recuperarmos as altas coberturas, o que significa pelo menos 95% do público-alvo de cada vacina imunizado, o retrocesso será enorme. Sem dúvida nenhuma trará um malefício muito grande para população, inclusive com a sobrecarga da estrutura de saúde no país”, crê a vice-presidente da SBIm.
Mas, afinal, o que mudou para estarmos diante de dias tão nebulosos? A resposta é complexa: trata-se de uma combinação de fatores que envolvem a pandemia, a crise econômica, alta circulação de fake news, fortalecimento dos movimentos antivacina, desvalorização da importância da imunização por líderes e um processo que culmina na chamada hesitação vacinal.
Calma, nós vamos explicar tudo.
1 – Pandemia não é a única culpada, mas agravou
No auge da pandemia de Covid-19, quando tínhamos receio até de ir ao mercado, pensar em entrar em um posto de saúde lotado com as crianças chegava a dar desespero, não é mesmo? Por isso, não é surpresa que muitas cadernetas tenham ficado desatualizadas durante este período.
“A pandemia foi um agravante, já que as pessoas foram orientadas a ficarem em casa, havia superlotação dos hospitais e uma grande preocupação de contaminação. Tudo isso contribuiu para piorar um problema que já vinha acontecendo desde 2015”, aponta o infectologista Francisco, que completa: “E, sem dúvida, toda a desconfiança a respeito da vacina da Covid-19 também contribuiu para diminuir a adesão aos outros imunizantes”.
O Unicef apontou justamente que esta “ressaca pandêmica”, ou seja, o resultado dos lockdowns e da baixa procura pelas vacinas já era esperado para este momento atual, mas que a Covid-19 não deve ser usada como desculpa para sempre. É hora de correr atrás do atraso e atualizar a caderneta.
2 – Crise econômica e mais famílias vulneráveis
Outro ponto levantado pelos médicos e corroborado pela OPAS é que, com a pandemia, o mundo viu crescer a crise econômica, que resultou em um aumento de vulnerabilidade para muitas famílias.
O efeito cascata disso influencia na saúde das crianças, já que as taxas crescentes de desnutrição, combinadas com as vacinas perdidas, podem gerar uma baixa proteção e, consequentemente, mais casos de doenças graves. “Muitas vezes a pessoa não retorna ao posto para atualizar a caderneta do filho, porque não teve dinheiro para voltar até lá”, lembra a infectologista Euzanete Maria Coser, membro do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e do departamento de infectologia da Sociedade Espírito Santense de Pediatria (Soespe). E até mesmo quem não dependia do sistema público de saúde e imunizava os filhos na rede particular, com a redução do poder aquisitivo, também parou de ofertar a vacina paga, contribuindo para uma menor cobertura no geral.
3 – Orientação clara e postos disponíveis ajudam!
E, sim, sabemos que não é fácil estar com tudo em dia. No total, são 17 vacinas disponibilizadas no PNI e é preciso estar atento às indicações de quando oferecer cada uma das doses às crianças. O desconhecimento sobre os imunizantes também foi um dos fatores apontados pelos especialistas como um ponto de afastamento do público com as vacinas.
Algumas medidas para facilitar o acesso seria incentivar a vacinação sempre que possível, explicar de maneira clara a sua importância, desburocratizar os sistemas de saúde e aproveitar todas as idas aos postos para atualizar a carteirinha, além de fortalecer e aumentar as campanhas do Ministério da Saúde e das sociedades médicas.
“A vida é corrida, a pessoa tem medo de perder o emprego, então se ela chega lá e não tem doses em estoque, o posto está fechado, lotado ou ainda não é a data exata, ela deixa para fazer outro dia e acaba não voltando. Você perde a oportunidade de vacinar quem já estava ali, entende?”, explica a infectologista pediátrica da SBP, que ainda sugere estender o atendimento dos postos para auxiliar mães e pais que trabalham em horário comercial.
4 – A questão das fake news
Eis que, diante do caos da pandemia e da crise econômica, ainda é preciso lidar com uma inundação de notícias falsas que só contribuem para aumentar ainda mais a confusão diante das vacinas. São as tão comentadas fake news.
Uma pesquisa da Ipsos, batizada de “Fake news, filter bubbles, post-truth and trust”, mostrou que, dos 27 países analisados, os brasileiros são os que mais tendem a acreditar em notícias falsas. É grave. Afinal, se elas já causam conflitos no âmbito político, como estamos observando nas eleições, quando voltadas para a área da saúde, criam desinformação perigosa e irresponsável, que pode colocar a vida de muitas famílias em risco.
Outro estudo, “As Fake News estão nos deixando doentes?”, da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) em parceria com a Avaaz, analisou o papel que as informações incorretas possuem na redução das taxas de cobertura vacinal no Brasil. E, preste atenção, o resultado é bem preocupante: como grande parte das pessoas hoje se informa através de conteúdos digitais e postagens – 48% relataram ter as redes sociais e o WhatsApp como as principais fontes de informação sobre vacinas –, as fake news compartilhadas indiscriminadamente geram um ruído intenso e que, às vezes, perdura por anos. Fica difícil separar o que é verdadeiro do que é falso e isso afeta a percepção que as pessoas têm em relação à segurança das vacinas.
“O que a população precisa é de informação de verdade, para que possa, quando impactada por uma fake news, entender que aquilo não é verídico. O número de postagens positivas precisa ser maior do que as negativas”, acredita a pediatra Isabella e Euzanete concorda: “Temos que gritar mais alto do que as fake news”.
O estudo ainda revela que 13% dos entrevistados (acima de 16 anos) não se vacinaram ou não vacinaram uma criança sob seus cuidados. E isso não é pouco: corresponde a mais de 21 milhões de brasileiros. Os principais motivos apontados são:
- falta de planejamento ou esquecimento;
- “não achei que a vacina fosse necessária”;
- falta de informação;
- medo de efeitos colaterais graves.
5 – O fortalecimento dos movimentos antivacina
De mãos dadas com as fake news, está o movimento antivacina. Antes da pandemia, ele não ecoava tão forte no Brasil, exatamente porque, por aqui, a população respondia bem aos chamados de vacinação. No entanto, com a grande circulação de informações falsas – e com um gatilho forte por conta da rejeição à vacina de Covid-19 em si –, começou a se delinear um movimento antivacina nacional mais organizado, com compartilhamento de artigos traduzidos de sites de fora, principalmente dos Estados Unidos. Só para você entender a dimensão do problema, alguns vídeos contendo informações falsas analisados na pesquisa da SBim somam mais de 9 milhões de visualizações no Youtube!
Lá fora, o movimento antivacina sempre existiu, mas ganhou força com algumas fake news altamente compartilhadas. É o caso da publicação de um artigo, em 1998, pelo cirurgião Andrew Wakefield na renomada revista científica The Lancet. Nele, o médico insinuava que o autismo teria relação com a vacina da tríplice viral, que protege contra sarampo, rubéola e caxumba. “Vários cientistas buscaram encontrar esta relação, mas nenhum deles conseguiu. Foi feita uma investigação que demonstrou detalhadamente que o artigo era fraudulento e foi retirado da revista”, explica Isabella, a vice-presidente da SBIm. O médico teve sua licença cassada, muitos estudos posteriores refutaram veementemente o artigo de Wakefield e investigações mostraram que ele tinha interesses pessoais e financeiros na divulgação de sua pesquisa.
O problema é que esta fake news, apesar de antiga, continua aparecendo de tempos em tempos e, já fez ressoar surtos de sarampo pela Europa. “Como foi provado que não era nada daquilo, o ideal seria tirar isso de circulação, não compartilhar, mas, com as redes sociais, uma pessoa manda pra frente sem nem procurar saber a fonte, de quando é, o que aconteceu depois… A gente tem que estimular que as pessoas tenham uma análise crítica sobre o que elas recebem”, diz a infectopediatra Euzanete.
6 – O medo das reações ainda preocupa os pais
Uma parte significativa das fake news amplificam justamente o medo das reações das vacinas ou de uma possível sobrecarga do sistema imunológico do bebê. “Acho que este, inclusive, é um dos mitos mais antigos. É preciso entender que o bebê nasce apenas com os anticorpos maternos, então, à medida que ele começa a se expor a toda essa gama de patógenos, seja vírus, bactérias e fungos, ele começa a produzir seus próprios anticorpos, tanto naturalmente, vivendo, como através da vacina. E claro que a vacinação é sempre melhor, porque ela protege sem adoecer”, explica a pediatra Isabella.
Claro que nenhuma vacina é isenta de efeito colateral, mas as reações não costumam ser graves ou fugir do esperado (geralmente, febre, dor local, mal-estar), exceto em casos raros ou de crianças com comorbidades. E estas podem e devem procurar os CRIES (Centros de Referência de Imunobiológicos Especiais) para um melhor direcionamento de suas doses.
“Os estudos que embasam a liberação dos imunizantes e o acompanhamento continuado deles nos garantem a sua segurança e mostram que continua valendo a pena vacinar, porque o risco do adoecimento é muito maior do que o do efeito colateral”, defende Francisco.
7 – “Esta doença não existe mais”: o que é a percepção de risco?
Aqui, entra um fator irônico, já que, exatamente por conta do sucesso das vacinas, muitas enfermidades deixaram de circular e as pessoas esqueceram de sua gravidade. “Existe a percepção errônea de que essas doenças foram erradicadas. Isso se aplica, por exemplo, a pólio, sem casos no Brasil desde 1989, então, ao longo do tempo, foi se criando no imaginário que não tem necessidade de vacinar”, explica o infectologista do Sabará. “Mas é uma doença que continua em outros continentes e, enquanto ela existir, é preciso manter a vacinação. Quando cai a cobertura, existe o risco do retorno e é isso que está acontecendo agora”, alerta.
E, mais uma vez, a questão resvala na circulação de fake news. “Segundo o Ministério da Saúde, a cada dois dias morre uma criança menor de cinco anos de Covid-19. Mas uma das estratégias dos grupos que são contra a vacinação desta faixa etária é destruir a percepção de risco, tentar mostrar que a Covid não é perigosa para essas crianças e isso não é verdade!”, avisa a vice-presidente da SBIm. “Ninguém teria um custo alto para desenvolver uma vacina que não fosse realmente importante, contra uma doença que realmente impacte na saúde da população”, completa Isabella. A médica, no entanto, acredita que esta situação pode ser revertida quando as pessoas voltam a ter a percepção do risco que estão correndo, como está sendo agora com os surtos de meningite e com a febre amarela em 2017. Segundo ela, quando os casos e mortes aparecem nos jornais, formaram-se filas nos postos. “Quando a população brasileira enxerga o perigo, ela procura a vacinação. Mas poliomielite e sarampo são doenças esquecidas. A família não vê como risco imediato e, portanto, na dúvida se vai ou não causar evento adverso, prefere não fazer ou adiar e é isso que leva às baixas coberturas vacinais no Brasil”, conclui a pediatra.
8 – Entenda o que é a tal hesitação vacinal
Diante de tantas notícias falsas circulando, líderes políticos que só aumentam a desinformação e a falsa percepção de que as doenças deixaram de existir, não é de se espantar que muitos pais fiquem em dúvida na hora de vacinar os filhos. Isso não quer dizer necessariamente que estas famílias sejam contra a imunização ou façam parte do movimento antivacina, mas significa que esses ruídos estão muito altos e causando conflito na hora da tomada de decisão.
Esta sensação de dúvida é chamada de hesitação vacinal e é estudada pela OMS desde 2012, através do Grupo Consultivo Estratégico de Peritos em Imunização (SAGE-WG, na sigla em inglês). “Os hesitantes não são aquelas pessoas que não querem se vacinar. Pessoas que não querem de maneira nenhuma sempre existiram, estima-se que sejam cerca de 4% da população brasileira. Já a hesitação vacinal é quando a pessoa fica em dúvida, atrasa, fica preocupada e por vários motivos deixa de imunizar”, indica Isabella.
A decisão fica ainda mais nebulosa quando os pais procuram um médico e ele desaconselha. “Infelizmente, existe uma orientação inadequada de alguns profissionais e isso tem um impacto importante na decisão. Se uma família está hesitante e a opinião do médico de confiança é contra a vacinação, a probabilidade dessa criança se imunizar é mínima”, diz Francisco, que alerta: “Opiniões partidárias ideológicas acabaram contaminando a discussão mais séria, científica, que é a questão da efetividade e da segurança da vacinação”, diz ele. E é sempre importante lembrar: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante, desde 1990, a obrigatoriedade da vacinação infantil nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias, ok?
Mas o que o futuro nos reserva?
No fim das contas, não tem mistério: sem vacina as doenças voltarão a circular e farão vítimas. Isso gera um enorme retrocesso na saúde pública de um país e um desenho incerto pro futuro dos nossos filhos. Mas o que é possível fazer para melhorar esse cenário?
Segundo a OMS existem três pilares fundamentais para o sucesso da imunização, batizados de 3 “Cs”: confiança na vacina e na motivação por trás do sistema de saúde ao recomendá-la; conveniência (ter a vacina disponível sempre); e complacência, ou seja, a percepção do risco, que citamos acima.
“Acredito que o modo de combater o retrocesso passa por educação, ensinando os benefícios das vacinas; por conscientização, mostrando a realidade das doenças; e por campanhas, não só para população mas também voltadas aos profissionais da saúde”, opina o infectologista do Sabará. Euzanete concorda e completa: “Muitas vezes um paciente não faz a vacinação, porque ele não foi orientado. Quando o médico prescreve a adesão é maior”.
Outro ponto de melhoria, indicado na pesquisa sobre fake news, é uma maior responsabilização das plataformas de mídias sociais para barrar conteúdos falaciosos e apoiar ferramentas de verificação de notícias, sugerindo fontes confiáveis para sanar as dúvidas, como o site da Sociedade Brasileira de Imunização.
Já aos governos e órgãos públicos, seria preciso rever as estratégias de comunicação para ampliar a disseminação de informações verídicas e fortalecer as campanhas com orientações claras. E, claro, cabe a nós, pais e mães, sempre checar as notícias que recebemos, nos informar apenas através de mídia confiável e ficarmos atentos para que a discussão não seja pautada pelo partidarismo político, mas pela ciência.
A queda da taxa de vacinação é reflexo do tempo em que estamos vivendo e deve ser encarada como um chamado de alerta máximo para mudarmos o futuro, enquanto ainda podemos. Vacinar não é uma decisão pessoal, é um processo coletivo e deve ser feito pensando no bem de toda a população.