A Pesquisa Retratos da Leitura de 2024, realizada pelo Instituto Pró-Livro (IPL) e com levantamento feito pelo Instituto Ipec – Inteligência em Pesquisa e Consultoria, ouviu 5.504 brasileiros a partir dos cinco anos de idade em 209 municípios e mostrou que tivemos uma redução de 6,7 milhões de leitores no Brasil nos últimos quatro anos. A mudança tornou majoritário no país o grupo de pessoas que não leram nem parte de um livro (de qualquer gênero, impresso ou digital) nos três meses anteriores ao questionário – dados que são desoladores, porém, não tão surpreendentes.

“Depois de anos de um governo que era contra as manifestações artísticas, ausência de programas de livro e leitura, atrasos nas entregas, uma pandemia que aumentou a miséria geral, [tudo isso] somado ao fato de que as novas gerações estão viciadas em celular, não era de se esperar outra coisa”, comenta Henrique Rodrigues, doutor em Letras pela PUC-Rio, escritor, gestor de projetos, além de idealizador e curador de prêmios literários.

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Um conjunto de fatores prejudiciais

De fato, é preciso considerar diversas camadas ao olhar para o cenário atual. Como aponta Henrique, os entraves econômicos agravados pela pandemia de Covid-19, os atrasos nas compras dos planos governamentais, a falta de políticas públicas e a reiterada desvalorização cultural formam uma série de fatores que, juntos, levam aos baixos números com os quais nos deparamos atualmente.

Eles são atravessados ainda, é claro, pelo intenso uso de smartphones e da cultura digital onipresente, o que diminui o interesse pelos livros, além de reduzir com uma velocidade considerável nossa capacidade de atenção, paciência e concentração – habilidades indispensáveis para a leitura.

“Está tudo interligado”, comenta o escritor. “É difícil melhorar os índices. Leva-se anos para melhorar as práticas leitoras em escala e, consequentemente, o setor. Mas para cair é rápido”, acrescenta. Ao observar os gráficos disponibilizados pelo IPL, nota-se que a questão é geral, aparecendo em praticamente todos os recortes – o que indica que o problema não é apenas econômico, mas também cultural.

preocupante: crianças estão lendo menos

Uma dessas questões problemáticas que chama muita atenção é o fato de que, embora não tenha havido redução entre jovens de 11 a 13 anos (possivelmente graças à contabilização dos livros didáticos), houve queda entre as crianças de 5 a 10 anos.

“Confesso que esse dado me assustou muito, porque essa sempre foi uma fase de muita leitura espontânea. É um dado alarmante, pois estamos falando exatamente da alfabetização para a frente. Significa que o interesse pela leitura decresce assim que a pessoa aprende a ler”, alerta Henrique. Além de, por si só, esse dado já ser preocupante, ele aponta ainda para uma questão de longo prazo, como salienta o escritor: “Dificilmente quem lê pouco nessa idade será um adulto leitor”.

Como o incentivo durante a infancia pode ajudar a formar um pais de leitores meio2
foto: Canva

Temos aqui, portanto, uma espécie de círculo vicioso sendo formado, tornando-se um problema passado entre gerações. Crianças aprendem, em grande parte, pelo exemplo dentro de casa, mas se novos leitores não são formados hoje, será muito mais difícil ter adultos com o hábito da leitura incentivando seus filhos no futuro.

“As crianças que mais deixaram de ler (entre 5 e 10 anos) têm como referência os pais. Isso também demonstra que, claramente, os pais estão lendo muito pouco em casa”, considera Henrique. “Uma vez, uma professora me perguntou em uma palestra como fazer a filha ler mais. Perguntei se a filha tentava imitá-la em tudo, e a resposta foi positiva. Mas ao perguntar se ela [a mãe] lia em casa, a resposta foi negativa”, relembra.

O papel das escolas e das políticas públicas

É por essa falta de referência familiar, também, que as políticas públicas são tão importantes. Quantos adultos não se tornaram leitores porque, na infância, tiveram acesso recorrente a uma biblioteca ou contaram com a sorte de ter professores que levavam o poder da literatura para a sala de aula? A questão é que, para além do sucessivo sucateamento da educação pública, com baixos salários para os profissionais da área, pouco investimento em infraestrutura e formação, entre outros problemas, as bibliotecas estão deixando de existir.

“Pelo censo escolar de 2023 [segundo o qual apenas 52,5% das escolas do país têm uma biblioteca ou um espaço de leitura], e conforme tenho visto nas minhas andanças, parece que as salas de leitura estão se tornando espaços obsoletos, sem professores dedicados, com o risco de se tornarem depósitos de material. Muitas escolas já não contam com esse espaço. Infelizmente, ninguém vai fazer uma manifestação em uma comunidade por espaço de leitura dentro e fora da escola, porque ninguém sente falta do que não foi apresentado. É preciso que esses espaços sejam obrigatórios por lei”, destaca Henrique.

Embora um projeto de lei tenha sido criado em 2018 pela deputada Laura Carneiro (PSD-RJ), foi apenas em abril deste ano que, originada por ele, a Lei 14.837 foi sancionada, criando o Sistema Nacional de Bibliotecas Escolares (SNBE). Entre suas principais funções, estão promover a melhoria das bibliotecas já existentes, incentivar a criação de bibliotecas em todas as instituições de ensino do Brasil e estipular acervo mínimo com base no número de alunos de cada escola.

Embora represente um avanço ao considerar a biblioteca escolar um equipamento cultural obrigatório para o processo educativo, o caminho ainda é longo. Além disso, vale destacar que houve um veto em relação à possibilidade de sanções aos sistemas de ensino que não cumprirem as metas.

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O poder transformador da literatura na infância

Em uma entrevista, ao ser questionado se tinha o hábito da leitura, Ariano Suassuna, grande escritor e dramaturgo brasileiro, respondeu que não – não tinha o hábito, mas a paixão. Isso porque, segundo ele conta, logo que foi alfabetizado, começou a ler e se encantou pelos livros.

Talvez o caminho esteja justamente aí, afinal: nesse poder de fascinação da literatura, que abre caminhos para o imaginário tão fértil nos primeiros anos de vida. “Na infância, temos uma pulsão criativa muito bonita e original. Essa veia lúdica me acompanha até hoje, inclusive”, destaca Henrique. Para isso, porém, é preciso oferecer acesso recorrente e diário (na biblioteca da escola e/ou na estante de casa) a obras literárias que não se preocupem apenas com um viés utilitarista, mas com a verdadeira fruição.

ws - por que ler livros de monstros
foto: Canva

“Outro problema da literatura é esperar dela sempre uma lição utilitária, mensurável, castradora, cheia de ‘pedagogices’ chatas”, pondera o autor. Ele faz referência a um movimento frequente do mercado editorial que busca moldar as produções literárias para crianças buscando uma função evidente (como os tantos livros sobre as emoções que tomaram as prateleiras nos últimos anos), deixando a experiência gerada pela ficção em segundo plano.

Paralelamente a essa tendência, observa-se também um aspecto censor que vem na esteira da cultura do cancelamento, tão presente nos tempos atuais. “Em escala e com o tempo, teremos uma produção literária ‘comportada’ e cerceada, pobre em criatividade e liberdade, que são, para mim, os aspectos principais da arte literária”, conclui Henrique.

É por isso que saber escolher os livros apresentados aos pequenos é tão importante – e aí entra o papel fundamental dos professores, da escola e até dos clubes de livros para crianças que contam com curadoria especializada. Quando a literatura faz seu papel ainda nos primeiros anos de vida, apresentando às crianças a possibilidade de ficcionalizar o mundo, boa parte do caminho já está percorrido.

Certamente, a presença forte de políticas públicas e uma transformação considerável na forma como lidamos com o uso de smartphones, sobretudo nos anos de formação escolar, têm papel fundamental na construção de um país leitor. E com as sementes plantadas na primeira infância, germinar fica muito mais fácil.

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