O trabalho suado na terra e as injustiças sociais talvez não pareçam, num primeiro momento, temas para uma história destinada a crianças, mas é com graça e sensibilidade que Itamar Vieira Junior une esses elementos ao universo infantil para criar Chupim, sua estreia na Baião, selo da Todavia dedicado às infâncias. Resultado de um longo trabalho – foram três anos entre o início de sua idealização e o lançamento – a nova narrativa conversa diretamente com Torto Arado, livro de Itamar que se consolidou como um dos pontos de maior expressividade da nossa literatura.

“Eu já tinha escrito histórias para crianças, mas nunca publiquei, embora fosse algo que eu queria há muito tempo. Quando veio o convite [para fazer um livro infantil], primeiro lembrei do que eu tinha guardado, mas já estava muito distante daqueles textos. Então, logo pensei em voltar a um pequeno trecho de Torto Arado e foi assim que retomei a ideia”, recorda Itamar.

Imagem do livro "Chupim", de Itamar Vieira Junior.
Imagem do livro “Chupim“, de Itamar Vieira Junior e Manuela Navas. Crédito: Clube Quindim.

Quem leu o romance de 2019 talvez se lembre da anedota sobre a função das crianças nos arrozais: elas eram responsáveis por espantar os chupins, pássaros considerados pragas preguiçosas e aproveitadoras que comiam o arroz nas plantações.

É esse o mote da narrativa recém-lançada: num belo dia, um garoto chamado Julim acorda e já tem tamanho suficiente para acompanhar os irmãos mais velhos nessa função. Porém, ao chegar à roça e descobrir que as pragas eram, na verdade, passarinhos graciosos, o menino traz uma perspectiva mais colorida para a realidade ali apresentada.

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Os desafios de escrever para as infâncias

O escritor relata que encontrar uma linguagem acessível aos pequenos leitores, mas sem subestimar a capacidade deles de imaginar a história e de participar dela, foi o grande desafio inicial dessa empreitada. Ao mesmo tempo, Itamar considera que a própria bagagem de vida o ajudou nesse processo. “O que eu vou falar é um pouco clichê, mas a verdade é que nós acumulamos tempos, e a criança que fomos está sempre conosco. Esse período de formação foi muito importante e eu precisava voltar a esse mundo de alguma maneira, mas trazendo algo de novo para o horizonte de leituras”, conta.

Foi a partir desse trabalho que o escritor conseguiu trazer a crítica social e a relação com a terra – elementos que dão chão à sua obra de modo geral – para o universo infantil. A narrativa é contada em terceira pessoa, mas é pelos olhos de Julim que podemos enxergar a realidade ali retratada: famílias que precisam se deslocar em busca de terras para dar continuidade à colheita de arroz, garantindo o sustento de todos. Terras, porém, que não são delas – assim como o arroz não é dos chupins, fazendo um paralelo entre os trabalhadores e os pássaros como pragas para alguém.

A semelhança dos nomes Julim e chupim não é à toa, afinal. A aproximação entre animais e trabalhadores fica clara, mas é a partir da compaixão do garoto em relação às aves que a própria situação de exclusão e injustiça daquelas famílias se sobressai. “É uma gente que também é muitas vezes indesejada, que não tem casa, não tem terra. Essa gente é vista como uma gente chupim. Assim como os pássaros partem em revoada, os trabalhadores precisam partir em caminhada procurando outros lugares, porque o mundo ainda é muito desigual e nem todos participam dele como deveriam”, ressalta Itamar.

“O menino tinha aprendido a amar
os passarinhos. Com tanto arroz
nos campos, alguns grãos não
fariam falta. Afinal, eles eram
tão pequeninos…
 
Se os chupins não comerem arroz,
o que vão comer?”

A infância como o tempo da esperança

Embora com uma realidade dura, Itamar não abriu mão de retratar a infância a partir de uma de suas principais representações – a esperança. “Ninguém pode tirar a capacidade que nós temos, que é tão bonita e poderosa, de sonhar. O que seria de nós se não fossem os sonhos, os nossos desejos de um mundo melhor, de mudar a vida das pessoas? Na fase adulta, nós precisamos cultivar isso, mas para as crianças é espontâneo. A capacidade de acreditar e de esperançar durante a infância é inegociável”, reforça.

É assim que, ao observar os chupins voando para outros destinos, Julim descobre uma terra sem donos onde o arroz cresceu graças aos passarinhos, que levaram os grãos em seus bicos. São as aves e a criança que, juntas, encontram uma solução para o problema.

“Talvez eu seja otimista demais, mas acho que essa esperança que nós cultivamos na infância não nos deixa. É ela que nos faz continuar trabalhando, sonhando, criando… que nos ajuda a levantar todos os dias, que ainda faz com que a gente se emocione com a vida, com as histórias, com as pessoas. É ela que nos faz ver o mundo ainda como um lugar bonito e que merece ser cuidado, vivido. Mas não é uma esperança vazia; é o que eu chamo de esperança engajada, ativa”, diz Itamar.

O escritor não fala sobre uma postura de espera, mas sobre ser a transformação de que o mundo precisa. “Cada um dando o que pode de si para que este mundo seja um lugar melhor. Se eu posso reflorestar uma área, cuidar de animais abandonados, educar crianças, escrever… Acho que talvez essa [a esperança engajada] seja a coisa mais preciosa que a gente precisa cultivar”, acrescenta.

Por uma literatura mais rica

Imagem do livro "Chupim", de Itamar Vieira Junior.
Imagem do livro “Chupim“, de Itamar Vieira Junior e Manuela Navas. Crédito: Clube Quindim.

Além de trazer a crítica social – evidente e importante de ser trabalhada com as crianças – Chupim vem também para adensar o espaço da literatura infantil que dá lugar a outras maneiras de estar no mundo, trazendo a relação com a natureza, o conhecimento que vem da experiência e os costumes fora da vida urbana citadina para o universo dos pequenos leitores. Há não muito tempo, “vivíamos sob a égide da história única, subestimando outras formas de saber e de conhecer. Acho que hoje temos outras possibilidades de olhar para a vida”, considera o escritor.

“Sempre digo que há muitas maneiras de ver e viver o mundo, e a literatura nos dá a possibilidade de nos colocarmos no lugar do outro. Descobrir que o mundo é o mesmo, mas que podemos vê-lo de formas distintas e dar explicações diferentes para questões da vida ajuda a alargar nossos horizontes”, diz Itamar, lembrando da importância desse processo na construção de uma sociedade que valoriza a diversidade.

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Texto e imagem: a composição perfeita

Ilustrar um texto tão sensível e dar vida e cor àquela narrativa não se mostrou um projeto simples, mas o encontro com Manuela Navas resultou no casamento perfeito entre palavra e imagem. “Depois que escrevi a história, veio o desafio de ilustrar. Mas o Brasil é um terreno enorme de muita criatividade, cheio de gente fazendo coisas bonitas. Estudando as possibilidades, nos apaixonamos pela arte da Manuela e decidimos convidá-la para pensar conosco”, conta o autor.

A artista natural de Jundiaí (SP) trabalhou com telas a óleo a partir da leitura do texto e de conversas com o escritor, dando vida ao universo ali representado. “As pinturas dela têm profundidade, têm movimento – e essa é uma história que precisa de movimento. As crianças estão agitando os galhos, os pássaros estão voando, o próprio arrozal balança com o vento”, aponta Itamar, que considera esse um encontro muito feliz.

Imagem do livro "Chupim", de Itamar Vieira Junior.
Imagem do livro “Chupim“, de Itamar Vieira Junior e Manuela Navas. Crédito: Clube Quindim.

“São ilustrações para serem apreciadas também pelos adultos”, acrescenta, convidando os leitores crescidos a se unirem aos pequenos nesse passeio pelo universo de Chupim, que traz em suas páginas uma das mais belas e certeiras definições da diferença entre a infância e a vida adulta:

Quem visse trabalhadores e crianças
andando pela estrada, veria gente
grande pensando no amanhã e gente
pequena correndo com seus galhos
sem se preocupar com o depois.

Que “a gente pequena” que mora em nós nunca nos abandone – é isso que Julim parece nos dizer, afinal.

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