Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, o Brasil registrou mais de 74 mil casos de estupro, sendo esse o maior número na história do país. Não bastasse o dado estarrecedor, ele se mostra ainda mais impressionante quando discriminadas as faixas etárias: desse total, 33,2% é referente a crianças de 10 a 13 anos de idade, 17,7% a pequenos entre 5 e 9 anos, e 10,4% a bebês de zero a 4 anos.
É importante reforçar que a violência contra crianças e adolescentes é de caráter essencialmente intrafamiliar, sendo que 72,2% dos casos acontecem dentro de casa, praticados por conhecidos da vítima – parentes, vizinhos, amigos da família, entre outros do círculo próximo.
A situação é preocupante e o aumento de casos nos últimos anos também chama a atenção. Em relação a 2021, por exemplo, a taxa de estupro de vulnerável teve um crescimento de 8,2%. Sabe-se, porém, que a subnotificação é grande e esses números não fazem jus à realidade do país, que é, potencialmente, muito pior.
Informação como instrumento de autodefesa
Recentemente, o Projeto de Lei (1904/2024) que ficou conhecido como “PL antiaborto” levantou discussões importantes em relação ao cenário da violência sexual no Brasil. Com o objetivo de criminalizar a interrupção da gravidez a partir da 22ª semana, o PL – cuja votação na Câmara dos Deputados ainda não aconteceu (até a data de publicação desta matéria) – trouxe à tona uma questão alarmante: parte relevante dos abortos depois de 22 semanas de gestação é realizada em crianças. Isso porque muitas meninas sequer sabem do que são vítimas, não buscam ajuda por medo e falta de informação e, quando a gravidez é descoberta, já está avançada.
Por isso, ter conhecimento, além de um espaço aberto e seguro de diálogo desde a primeira infância é primordial para evitar as chances de abuso sexual. Quando os pequenos sabem nomear as partes íntimas do corpo e entendem, desde que possível, que ninguém deve tocá-las, fica mais fácil reagir e relatar a um adulto de confiança caso alguma situação de risco se apresente.
“É importante trabalhar a informação, pois ela é uma ferramenta estratégica e bastante decisiva na questão da prevenção do abuso sexual de crianças e adolescentes”, destaca Itamar Batista Gonçalves, Superintendente de Advocacy da Childhood Brasil, organização que tem como objetivo a proteção da criança e do adolescente. Pós-graduado em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pela Universidade de São Paulo (USP), Itamar atua na área desde 1986 e coordenou importantes trabalhos e pesquisas relacionados ao assunto.
Educação sexual é primordial
Segundo Itamar, desde que o pequeno é bebê até por volta dos três ou quatro anos, já é importante iniciar esse processo ensinando-o a nomear as partes do corpo, indicando que elas são íntimas e não devem ser tocadas por outros adultos e nem colegas. “Por que isso? Sabemos que, muitas vezes, acontece a violência sexual e a criança sequer sabe denominar onde ela foi tocada”, ressalta.
Uma questão que deve ser destacada aqui é a importância de que as crianças conheçam as denominações corretas dos órgãos genitais. Isso vale não apenas para que confusões sejam evitadas no relato de um possível abuso, por exemplo, mas para que a conversa sobre eles seja familiar e não desperte vergonha, assim como se fala de qualquer outra parte do corpo.
O porta-voz da Childhood Brasil reforça ainda que a educação sexual nada tem a ver com a prática sexual. Embora muitas famílias tenham resistência, por achar que a infância é uma fase de inocência e que, portanto, conceitos como esses não devam ser trabalhados, é fundamental entender que se trata de um trabalho de autodefesa, de autoproteção. Dar as ferramentas necessárias – nesse caso, a informação – é dar à criança as chances de se proteger e de buscar ajuda.
Nesse processo, ensinar sobre consentimento também é primordial. “É importante deixar claro que ela tem o direito de dizer ‘não’ a qualquer tipo de ‘carinho’ – até um aperto na bochecha, por exemplo. Se ela não gosta, é importante que ela saiba dizer ‘não’ a esses toques”, orienta Itamar. Isso significa também respeitar a criança e dar o exemplo, não obrigando-a a beijar e abraçar as pessoas quando ela não quer.
Conversas de acordo com a faixa etária
Entre os cinco e os oito anos, os pequenos já podem ser ensinados sobre segurança pessoal e situações de risco. Aqui, a orientação pode ser mais assertiva, explicando à criança que ninguém pode pedir-lhe para tirar a roupa, que nenhum adulto deve ficar nu na frente dela nem pedir que encoste nele (o mesmo entre crianças), que pessoas mal-intencionadas existem e que, se ela se sentir desconfortável, com vergonha ou com medo, deve se afastar imediatamente e pedir ajuda – seja em relação a quem for.
Já a partir dos oito anos, a conversa sobre reprodução pode aparecer, uma vez que nessa fase a curiosidade sobre como os bebês são gerados tende a surgir. Além disso, a puberdade se inicia, em média, entre 8 e 13 anos em meninas, e entre 9 e 14 anos em meninos, podendo começar ainda antes, quando é considerada precoce. Assim, as mudanças corporais ficam evidentes e o diálogo aberto é essencial não apenas para prevenir abusos, mas também para ajudar o jovem a atravessar essa fase que pode ser muito desafiadora.
Nesse período, entre o fim da infância e o início da pré-adolescência, o papo deve ser direcionado e adaptado à fase em que a criança ou o pré-adolescente se encontra, de maneira acessível e educativa. “Claro que essa conversa deve ser adequada à forma com que a família se comunica. O importante é que, de fato, seja conversado nessa perspectiva da educação sexual e sempre com esse foco de que ela é essencial para prevenir situações de violência”, acrescenta Itamar.
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A família como espaço de diálogo e acolhimento
Além de dar as informações necessárias de acordo com a fase de desenvolvimento e a maturidade da criança, é imprescindível que haja um espaço de conversa aberta e sem medos entre filhos e pais, pequenos e cuidadores. Isso vale não apenas quando se fala em prevenção ao abuso sexual, é claro, mas se mostra de extrema importância nesse caso específico.
Itamar destaca que ter um adulto de referência – alguém em quem a criança confia plenamente e com quem sabe que pode contar – ajuda sensivelmente. “Pode ser a mãe, o pai, uma tia… Mas é importante que ela tenha esse canal para que possa revelar [caso algo de ruim aconteça]”, explica. “Vale reforçar para ela que não haverá julgamento, que o adulto não vai ficar bravo, irritado, e que ela sempre vai ter esse espaço para poder trocar e buscar ajuda”, acrescenta.
E se essa conversa existir em algum momento – a busca por ajuda, a acusação de uma situação desconfortável ou o que quer que seja -, é fundamental que os sentimentos da criança não sejam invalidados. “O adulto tem o papel de acolher de forma a não julgar, mas colocar para a criança que o que ela está sentindo é bastante importante e real, e que ela será ajudada a sair daquela situação. É preciso dizer que a culpa não é dela e que será feito de tudo para que ela seja protegida”, orienta o porta-voz da Childhood Brasil.
Outros recursos importantes na prevenção do abuso infantil
Além de todos os pontos já abordados até aqui, Cristina Cordeiro, diretora-adjunta do Instituto Liberta, organização social que trabalha pelo fim de todas as violências sexuais contra crianças e adolescentes, acrescenta outras informações de grande valia:
- “Quando os cuidadores precisam trocar as fraldas dos bebês e manipular os seus órgãos genitais, devem fazê-lo com privacidade e explicando a necessidade do toque, num diálogo simples, fácil para que compreendam. Desta forma, desde pequenas, as crianças aprendem que têm direito à privacidade e ao respeito.
- Na idade pré-escolar, é possível trabalhar com músicas, desenhos e histórias infantis que apresentem as partes do corpo, incluindo as partes íntimas. É importante explicar quais toques são permitidos no corpo da criança e quem pode tocá-las nas partes íntimas para examinar ou higienizar.
- Da mesma forma, é importante ressaltar que ninguém pode pedir segredo quando tocar o seu corpo, que carinho não fica em segredo para ninguém.
- Muitos casos de estupro de vulnerável são intrafamiliares, o que dificulta ou retarda a denúncia e geralmente só são revelados nas escolas, que precisam estar preparadas para acolher a vítima e buscar a rede de proteção local que fará os encaminhamentos.
- (Caso o abuso aconteça) a partir da revelação feita pela criança, o adulto fica encarregado de levar ao conhecimento do conselho ou à delegacia de polícia, que seguirão os passos legais para garantir os direitos dela. O mais importante é agir de forma a preservar a vítima, não revitimizar e, principalmente, acreditar em seu relato.”
Em caso de suspeita de abuso, afaste a criança do possível agressor imediatamente e procure os canais de ajuda, como o Conselho Tutelar ou o Disque 100, número do Governo Federal que recebe as denúncias de forma anônima e rápida.
Estante Quindim
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