Começo evocando uma cena comum em todos os lares em dia de festa de aniversário ou Natal. Trata-se de quando as crianças abrem ansiosas seus presentes, mas, em poucos minutos, trocam os brinquedos, por vezes sofisticados, por algo que, aos olhos dos adultos, é praticamente lixo: as caixas de papelão. Para elas, aquelas caixas viram casas, castelos, foguetes e esconderijos.
Essa cena tão comum revela algo profundo sobre a infância: o brincar, na verdade, não está no brinquedo, mas no gesto. E quando pensamos em formar leitores, a lição que tiramos dessa simplicidade pode transformar a maneira como mediamos a leitura para as crianças.
Tenho pesquisado as analogias entre os gestos brincar e ler e gostaria de compartilhar aqui algumas reflexões.
Nas últimas décadas, a ideia de que livros podem se transformar em brinquedos ganhou força. Livros de plástico para a hora do banho, livros com botões que emitem sons, texturas que convidam ao toque – todas essas inovações surgem para tentar aproximar a criança do mundo da leitura por meio do brincar. Mas será que é o objeto (o brinquedo) que fascina ou o ato de brincar? Fazendo a conversão: não estaremos muito preocupadas(os) com o livro, quando na verdade o ato de ler deveria ser o centro de nossa atenção?
A resposta pode estar naquele limiar entre a criança e a caixa, onde a imaginação reina soberana. Meu interesse não está no livro como um brinquedo físico, mas no potencial de transformar a leitura em um ato lúdico – uma leitura-brincadeira. O que acontece quando permitimos que as crianças se aproximem dos livros da mesma maneira que se aproximam de uma caixa de papelão, sem regras, sem direções, mas com liberdade para imaginar e criar?
A liberdade É FUNDAMENTAL no brincar e na leitura
Ao falar sobre a relação entre brincar e leitura, sou levada a refletir sobre as ideias de Walter Benjamin. Em seus estudos sobre o brincar e o brinquedo, Benjamin sugere que a essência do brincar está na liberdade de ação da criança. Quanto menos o brinquedo “diz” aos adultos, mais autêntico ele é. Da mesma forma, na leitura-brincadeira, a centralidade deve estar no prazer da criança ao manusear o livro, ao se envolver com a história e ao se apropriar dela. E não no que o adulto pensa ou quer com isso.
Entretanto, como mediadores – sejam pais, educadores ou bibliotecários – muitas vezes interferimos demais. Escolhemos o livro, definimos quando e onde ler, explicamos o que o texto “realmente quer dizer”. Será que, ao agir assim, estamos afastando as crianças da leitura? Ao limitar o acesso e a forma como elas interagem com o livro, criamos barreiras ao prazer de ler.
Benjamin nos alerta sobre o perigo de transformar o livro em objeto de culto, algo que deve ser protegido de rasgos, dobras e marcas de uso. Mas será que a verdadeira leitura não deveria permitir que o livro fosse vivido, tocado e até mesmo transformado? Na leitura-brincadeira, o livro é mais do que páginas para serem passivamente absorvidas; ele se torna um objeto de exploração.
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Ler é brincar outra vez
Há algo de mágico em repetir uma brincadeira favorita. Se brincar de esconde-esconde ou pega-pega nunca cansa, por que ler o mesmo livro diversas vezes seria diferente? A repetição, tanto no brincar quanto na leitura, é uma fonte de prazer e redescoberta. Cada leitura traz algo novo – um detalhe que passou despercebido, uma sensação diferente, uma emoção que não estava lá na primeira vez.
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O mediador da leitura-brincadeira deve, então, entender que o ato de ler não é um fim em si mesmo. A leitura, assim como o brincar, é feita de tentativas, de retornos e de novas interpretações. Por isso, em vez de transformar a leitura em tarefa ou meta a ser atingida, devemos incentivá-la como um convite ao prazer. O livro, tal como a caixa de papelão, deve ser algo que pode ser visitado e revisitado, sempre com a liberdade de explorar novas possibilidades.
Brincando com as histórias
Mas que livros permitem essa liberdade de leitura-brincadeira? A literatura infantil contemporânea está repleta de exemplos de obras que incentivam essa interação lúdica. Penso, por exemplo, em Hora de Sair da Banheira, Shirley! de John Burningham, onde as páginas mostram a vida cotidiana de uma menina e, ao mesmo tempo, seus devaneios fantásticos.
Enquanto a mãe de Shirley está preocupada com as tarefas do dia a dia, a menina embarca em uma aventura imaginária incrível. O que acontece nesse livro é um diálogo entre realidade e fantasia, onde a criança pode ver suas próprias brincadeiras refletidas.
Outro exemplo é A Grande Viagem da Senhorita Prudência, de Charlotte Gastaut. Neste livro, a pequena Prudência está prestes a sair para um compromisso social, e a mãe insiste em apressá-la, soltando gritos do tipo “Vamos! Agora!”. Mas Prudência, ao invés de seguir as ordens, se perde em um mundo de fantasia criado no próprio quarto.
As ilustrações de Gastaut, com suas cores vibrantes e páginas recortadas, capturam o movimento entre o real e o imaginário. As palavras da mãe se dissolvem à medida que Prudência se afasta da realidade e mergulha em suas aventuras. A obra não só coloca a imaginação infantil no centro, como também utiliza o próprio formato do livro – com folhas transparentes e recortes – para estimular o brincar visual.
Finalmente, em Maia e Mia, de Débora Barbieri e Vanessa Prezoto, a trama se desenrola em torno de Maia e sua gata Mia. A narrativa explora a relação entre a menina e a gata em suas brincadeiras e desentendimentos. O que torna este livro especial é que ele vem embalado em uma caixa, literalmente, onde o leitor pode interagir fisicamente com a história desde o momento em que o livro é aberto.
A caixa-capas é um convite ao toque, ao manuseio, e, mais uma vez, nos lembra da velha caixa de papelão que tanto encanta as crianças. Assim como nas outras obras, Maia e Mia reforça a ideia de que brincar e ler são gestos interligados, ambos baseados na exploração e na liberdade de criação.
Esses livros nos mostram que a leitura-brincadeira não começa quando abrimos o livro, mas antes, na escolha do objeto, no desejo de interagir com ele, de habitá-lo. A leitura, então, se torna uma extensão do brincar, uma maneira de explorar o mundo com a imaginação.
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Formando Leitores Livres
A leitura-brincadeira nos desafia a repensar nossa posição como mediadores. Precisamos estar presentes, sim, mas de maneira sutil, como observadores e apoiadores, prontos para entrar na brincadeira quando convidados. A roda de leitura tradicional, onde o adulto segura o livro e as crianças apenas observam, precisa dar lugar a novas formas de mediação, que incluam a escolha livre, o toque, o manuseio e, acima de tudo, o prazer.
A formação de leitores literários não pode ser uma tarefa rígida, feita apenas de avaliações e metas. Deve ser um convite ao prazer da descoberta, da experimentação e da brincadeira. Ao dar liberdade às crianças para que se relacionem com os livros como fazem com as caixas de papelão, abrimos espaço para que elas criem suas próprias histórias, seus próprios mundos e, assim, se tornem leitoras de corpo inteiro.
No final, o que buscamos não é que as crianças aprendam a ler para cumprir uma exigência, mas que descubram, na leitura, um prazer que as acompanhará para o resto da vida. Afinal, quem brinca sempre quer brincar mais uma vez. E quem lê com prazer, sempre quer ler outra vez.
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