Jorge Amado (1912-2001) contava de uma infância tão viva de acontecimentos e personagens, que é quase impossível dizer o quanto havia de imaginação em suas recordações. Coronéis de cacau, jagunços, negociantes, trapaceiros. Entre conversas divertidas ou tiroteios nas roças e nas praças, havia histórias de amor e de morte, a febre de que poucos escapavam, a esperança de dias melhores.
Um dia, muito mais velho, ao escrever sobre aqueles anos batizou a obra com o título O menino grapiúna. Esse adjetivo pouco conhecido foi de início usado para nomear uma ave e, depois, toda a região do sul baiano por onde sobrevoa. De menino grapiúna saído da região grapiúna, ganhou o mundo como escritor grapiúna.
Infância, juventude e os primeiros romances
Mas não foi Ilhéus, onde passou infância, tampouco a vizinha Itabuna, onde nascera, a cidade de sua maior paixão. Decerto a região grapiúna o acompanhava no coração e no pensamento, fazendo nascer muitas de suas narrativas, mas seu grande amor, mesmo, era Salvador, a capital baiana, que conheceu quando seus pais o matricularam no colégio de jesuítas, também ainda no tempo de criança. Conheceu ali um padre inesquecível que, sendo seu professor de língua portuguesa, acreditou em seu talento para a escrita e passou a lhe emprestar livros. Assim se tornou, como dizia, um “devorador de romances”.
O menino grapiúna se tornava o jovem imberbe que conhecia cada vez mais a vida andando de dia e à noite, entrando as madrugadas, pelas ruas de Salvador – os becos, as ladeiras íngremes, o cais, as casas noturnas, os terreiros de candomblé. Tinha pressa de escrever e foi no jornalismo que encontrou seu ponto de partida. Importante contar que, nos anos 1920, logo se passava de criança a adulto – a ideia de adolescência somente décadas depois ficou mais sólida. Então aos 15, não mais que 16, já trabalhava em jornais da capital, primeiro como repórter da área de polícia, depois editorialista.
Não tinha 18 anos completos quando chegou ao Rio para prosseguir nos estudos dos exames preparatórios e poder chegar à faculdade de direito. Levava já na bagagem o começo de seu livro de estreia, O país do carnaval (1931). Deixou uma noiva em Salvador e pensara em se casar com ela, assim tão cedo, seu nome era Mariá.
O noivado se perdeu na troca de cartas, e foi quando se apaixonou por outra moça, Matilde, com quem se casou contra a vontade dos pais dela. Nesses primeiros anos, produziu os romances que, com ternura, chamou anos mais tarde de seus “cadernos de aprendiz”. Vieram Cacau (1933), Suor (1934), Jubiabá (1935), Mar morto (1936), Capitães da areia (1937), esse último sobre a infância na rua, um dos seus livros mais conhecidos pelos adolescentes brasileiros, de tanto que é adotado nos exames de vestibular do país. Nasceu, nessa época em que se dedicou aos livros da fase inicial, a filha Eulalia Dalila, que morreria ainda jovem de uma doença que, na época, tinha pouco tratamento, o lúpus, hoje conhecida e administrada com remédios.
Vida política e exílio
As suas primeiras décadas como escritor foram marcadas por um empenho político muito acentuado. Tinha ingressado na Juventude Comunista, chegou a se candidatar e a vencer as eleições como deputado federal, e depois de ter o mandato cassado, com o partido declarado ilegal, precisou seguir para o exílio em Paris. Já estava casado com sua segunda mulher, Zélia, que primeiro se revelaria exímia fotógrafa, depois também ela escritora de sucesso. O casal teve dois filhos, João Jorge e Paloma. Os anos no exterior transcorrem, primeiro, na França. Depois, na então Tchecoslováquia, com viagens frequentes pelos países da chamada cortina-de-ferro, chegando até a Rússia.
Ao retornar ao Brasil, depois da reabertura política, Jorge Amado, Zélia e os filhos se instalaram de início no Rio, onde viviam já o pai e a mãe, que buscavam um pouco mais da vida urbana depois de uma longa trajetória na lida com o cacau na região grapiúna. Depois da fase dos “cadernos de aprendiz”, considerava ter amadurecido não somente na vida, como também como escritor. Uma fase bastante produtiva Jorge Amado inicia quando retorna a vida na Bahia. O sonho era ter uma casa em Salvador, e assim é que a família passa a viver no número 33 da rua Alagoinhas, no bairro do Rio Vermelho – onde fica, hoje, o belíssimo memorial dedicado ao escritor.
A cada dia mais afastado do partido no final da década de 1950, via-se mais dedicado à literatura, e foi assim que publicou seus romances mais vendidos em todo o mundo, como Gabriela Cravo e Canela (1958), Dona Flor e seus dois maridos (1962), Tereza Batista Cansada de Guerra (1969), Tieta do Agreste (1977). Costumava contar que a volta à Bahia o fez se reconectar com a atmosfera, os personagens, um certo jeito de ser e de viver, a própria linguagem baiana.
Uma vida dedicada à escrita
Quando lhe perguntavam o que era preciso fazer para ser um escritor, ele recomendava que o candidato ao ofício vivesse a vida “ardentemente”. Pensando em sua trajetória, dá para dizer que Jorge Amado viveu “ardentemente” sobretudo a literatura. Acordava antes do sol nascer para poder escrever; mal conseguia esperar para colocar as histórias no papel. Depois de passar a manhã datilografando, com tal entrega que às vezes saía sangue, parava para o almoço e um breve descanso, e então voltava à leitura do que tinha produzido naquele dia. Na manhã seguinte, retomava a criação.
Com drama e graça, força narrativa e comunicação direta com o público leitor, Jorge Amado criou histórias sobre grandes problemas sociais brasileiros – a fome, a má distribuição de terra, a disputa de poder, a violência contra as mulheres. Dedicou a escrever, ainda, sobre as convenções e mesquinharias pequeno-burguesas, mas também sobre as alegrias e reinvenções religiosas populares, com seus rituais sagrados e profanos. Gostava de ser lido por todos, sem distinção de classe. E desde sempre se dedicou a fazer que seus livros circulassem entre leitores de todo os continentes. Como dizia, seu maior prêmio era ter a apreciação de quem o lia. Mesmo hoje, passadas duas décadas de sua morte, ainda é muito conhecido em todo o mundo.
Antes de morrer, Jorge Amado contava mais de quarenta livros publicados em 49 idiomas. Dois foram escritos para o público infantil, tendo seus dois filhos e os seis netos como inspiração.
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Livros de Jorge Amado para os pequenos
O gato malhado e andorinha sinhá – escrito durante o exílio em Paris como presente de aniversário para o filho João Jorge – ficou durante décadas guardado em casa, até que foi publicado, na década de 1970. Na história, um gato de temperamento difícil vive um amor quase impossível com uma andorinha, que está prometida a um rouxinol. Pouco a pouco, ele se torna mais dócil e chega a escrever um soneto. Primeiro, o livro ganhou ilustrações do artista argentino radicado na Bahia Carybé, seu amigo muito próximo. Depois, recebeu adaptações para o teatro e a dança.
A bola e o goleiro – tão inusitado quanto o afeto entre um gato e uma andorinha – é este aqui: o que liga uma bola e um goleiro. Fura-Redes, que detesta quando uma partida termina no zero a zero, acaba apaixonada pelo goleiro Bilô-Bilô. De tão competente, Fura-Redes recebe os mais incríveis apelidos e é cogitada para a Copa do Mundo. De tão atrapalhado, Bilô-Bilô só recebe alcunhas vexatórias e atua num time sem glamour algum. Dois tipos de feição e destinos opostos se encontram, de novo, portanto, nessa história que tem humor e lirismo.
Para testar o efeito da história que estava criando para crianças, Jorge Amado sentava os netos e seus amigos na sala de casa e a leu inteira em voz alta, algumas vezes, para notar a reação.