Quem tem filho sabe: existem perguntas que são difíceis, mas que não podem ficar sem resposta. “O que é droga?” é um bom exemplo disso. Mesmo que possamos explicar de forma didática, é necessário considerar alguns fatores ao formular a resposta, como a idade, maturidade e contexto da criança.
É natural que mesmo pequenos na primeira infância, que nunca tiveram contato com drogas, sintam curiosidade sobre o assunto. Afinal, eles podem ter ouvido falar em notícias de TV, escutado comentários de outras pessoas, assistido a vídeos na internet ou até presenciado alguém embriagado ou fumando ao seu redor.
O pediatra João Paulo Lotufo, presidente do Núcleo de Estudos de Combate ao Uso de Drogas por Crianças e Adolescentes, da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), e coordenador do Grupo de Trabalho de Drogas e Violência na Adolescência, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), orienta que devemos iniciar a conversa justamente pelas drogas lícitas.
“Para crianças pequenas até o Ensino Fundamental I, vamos falar sobre álcool e o tabaco, e para as crianças do Fundamental II, já podemos falar das drogas ilícitas. Tudo tem a sua idade, mas também a maneira de se comunicar”, diz ele, idealizador do personagem Dr. Bartô e os Doutores da Saúde, um médico que ajuda crianças a entenderem sobre as drogas por meio de uma série de livretos informativos. “Um dos livros que distribuo com mais frequência nas minhas consultas é Meu tio ficou banguela, que aborda as lesões na boca causadas pelo cigarro, feito em parceria com a Faculdade de Odontologia da USP”, conta João Paulo.
A seguir, vamos ajudar você a descobrir um caminho para melhor sanar a dúvida do seu pequeno ou pequena. Mas tenha em mente que esse é um assunto que não se esgota em uma única conversa, ok? À medida que a criança cresce, é necessário abordar outras drogas, alertar sobre os danos e até lidar com embates mais complexos na adolescência, mas gradualmente e de maneira contínua, respeitando o entendimento da criança. Vamos lá?
Começando desde cedo
“Hum, mas será que já é a hora de falar sobre drogas com meu filho?”, você pode estar se perguntando. E o especialista aponta que, com o uso cada vez mais precoce de drogas lícitas e ilícitas, é esperado que alguns pais sintam a necessidade de adiantar um pouco a conversa.
Dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que a exposição ao uso de drogas cresceu em 10 anos, passando de 8,2% em 2009 para 12,1% em 2019. O número de estudantes de escolas públicas e particulares, com idades entre 13 e 17 anos, que afirmaram já ter experimentado bebida alcoólica, por exemplo, cresceu de 52,9% em 2012 para 63,2% em 2019. Isso é preocupante, uma vez que o uso precoce de bebidas pode aumentar o risco de vício e está associado a problemas de saúde na vida adulta.
Quanto ao tabaco, embora haja uma leve queda na proporção de jovens fumantes (de 16,8% em 2009 para 13,1% em 2019), cerca de 22,6% dos estudantes na mesma faixa etária afirmaram já ter experimentado cigarro pelo menos uma vez na vida. Ainda segundo a pesquisa do IBGE, estudos demonstraram que adolescentes que começam a fumar aos 15 ou menos têm o dobro do risco de desenvolver câncer de pulmão em comparação com aqueles que iniciam após os 20 anos.
Para agravar o cenário, o cigarro eletrônico se tornou moda em vários países. Embora a importação, propaganda e venda desses produtos sejam proibidas no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), 16,8% dos escolares de 13 a 17 anos já haviam experimentado o cigarro eletrônico pelo menos uma vez.
Já no cenário das drogas ilícitas – e aqui estamos falando de substâncias psicoativas cuja produção, venda ou uso são proibidos no Brasil, como maconha, cocaína, crack e ecstasy, por exemplo – a pesquisa do IBGE mostra que 13% dos escolares de 13 a 17 anos já experimentaram algum tipo delas. Hoje em dia também é importante ressaltar o avanço das drogas sintéticas, como o fentanil, um opióide muito consumido nos EUA, e as chamadas “K” (K2, K4, K9), canabinoides sintéticos, que, no Brasil, estão se espalhando principalmente entre jovens em situação de vulnerabilidade.
“O uso de drogas se inicia muito precocemente, aos 9 ou 10 anos as crianças já estão fumando, e a idade média de experimentação de maconha é por volta dos 13 e 14 anos. O cérebro se desenvolve até os 21 anos e amadurece até os 25, ou seja, qualquer droga utilizada antes da formação cerebral aumenta as chances de lesão. Portanto, um surto psicótico aos 17 anos é mais lesivo do que aos 30 e esse é o grande problema”, aponta Lotufo, autor do livro técnico Álcool, Tabaco e Maconha: drogas pediátricas.
Os dados mostram então que, embora não haja idade certa para abordar o assunto, é melhor conversar antes que chegue à fase da experimentação. Pode ser interessante aproveitar situações oportunas para discutir com naturalidade sobre as drogas e seus efeitos desde cedo, mas sem forçar a barra com os menorzinhos.
“As crianças observam tudo o que acontece ao redor. Podem ver alguém fumando e é natural surgir o interesse. Nesse momento, você pode iniciar essa conversa. E pode ser desde cedo, porque a experimentação da droga em si está ocorrendo muito precocemente. Não adianta esperar para falar sobre álcool quando o filho já estiver com 14 anos”, explica o pediatra.
O que uma boa resposta deve conter?
Não existe uma resposta única para todas as crianças: é preciso conhecer o seu filho e progredir conforme a compreensão dele sobre o tema, acolhendo as dúvidas que surgirem. Afinal, fazer um sermão sobre drogas ilícitas para alguém de 6 anos provavelmente não terá muito efeito, não é mesmo?
Pois bem, vamos aos poucos. Se, por exemplo, a criança viu alguém fumando e não entendeu, os pais podem explicar de forma clara que é um objeto contendo folhas secas de tabaco e outras substâncias, que as pessoas acendem e puxam o ar pela boca, soltando fumaça. Porém, é importante destacar que, embora pareça divertido, é um hábito que pode prejudicar muito a saúde. Não é necessário fornecer detalhes aprofundados ou mencionar que causa câncer, por exemplo, pois a criança muito pequena não compreende a gravidade da doença em si.
Já em relação ao álcool, podemos explicar que algumas bebidas contêm essa substância que, quando consumida em grande quantidade, pode afetar nosso comportamento e pensamento, nos prejudicar ou deixar doentes. Ressalte que não é saudável e pode representar perigo para a saúde.
Nessa primeira conversa, o foco é explicar o que é, informar que causa danos e garantir que ela entenda que é proibido para crianças. Sempre, claro, adaptando o vocabulário para que seja compreensível e de acordo com o repertório que o filho tem.
Mais adiante, quando a criança estiver mais velha, aí sim você poderá aprofundar um pouco mais a conversa, trazendo outras informações sobre os efeitos de cada droga no corpo, as consequências para a saúde mental e também responder a novas perguntas, que com certeza surgirão. Dessa forma, vocês estabelecerão bases de conhecimento mais estruturadas em cada etapa da vida, ampliando a compreensão do tema aos poucos.
“É preciso saber se a criança está apta a compreender o que eu estou falando. Mesmo crianças da mesma faixa etária podem ser abordadas de maneiras diferentes. É preciso sentir e isso só é possível estando presente com os filhos”, diz Lotufo, que também é Diretor Clínico do Hospital Universitário da USP. Por isso, a importância de manter um ambiente familiar onde a criança ou adolescente se sinta à vontade para fazer perguntas e compartilhar suas experiências.
Sem demonizar: conversa contínua, clara e coerente
Respeitar a particularidade de cada criança é, portanto, fundamental para uma conversa mais efetiva e contextualizada. Existem famílias em que, por exemplo, há fumantes, usuários de drogas ou alcoólatras; em outras, no entanto, as drogas não fazem parte do cotidiano imediato. É importante ter isso em mente ao formular a conversa, pois serão abordagens diferentes para cada realidade.
E muito cuidado, porque, por mais assustados que alguns pais fiquem diante do tema, é preciso cautela com o que você mostra ou conta para seus filhos. Muitas vezes, na intenção de retratar a “realidade como ela é”, os pais podem acabar expondo as crianças a imagens ou histórias que elas ainda não estão preparadas emocionalmente para lidar. Isso apenas causa mais dúvidas e temor infundado, o que não ajuda em nada. E atualmente, já se sabe, demonizar as drogas não é o caminho. Informação de qualidade, diálogo contínuo e acompanhamento ativo dos pais, sim, são essenciais.
Sim, é necessário falar a verdade, ser honesto e claro nas explicações que vamos dar aos pequenos, porém, mais uma vez, é necessário entender que tudo tem o seu tempo e utilizar termos adequados para cada criança especificamente. Para além do medo e preconceito que os pais possam ter, é preciso se informar para poder transmitir verdades baseadas em fatos e fugir do que apenas “choca”, como imagens de crianças entorpecidas ou em coma alcoólico, por exemplo.
Outro erro é simplificar e dizer que “droga mata”. Os entorpecentes não são iguais, oferecem diferentes riscos e podem ter efeitos diversos em cada indivíduo (que, por sua vez, podem apresentar particularidades de saúde física e mental que aumentam o risco no uso de determinada droga).
Nesse momento, a literatura, vídeos e a escola também podem ajudar na formação da criança, já que podem abordar o conteúdo de maneira lúdica. “Não adianta dar aquele sermão na aula, porque isso vai entrar por um ouvido e sair pelo outro. Mas é possível falar toda semana um pouquinho”, indica o pediatra João Paulo, sugerindo que as escolas promovam pequenas discussões em várias disciplinas e de diferentes maneiras. “Só precisa ter constância no trabalho de prevenção, tanto na escola quanto em casa. Não podemos resolver o problema das drogas em uma única bronca quando um adolescente volta de uma festa cheirando álcool. A conversa precisa acontecer antes e ser contínua”.
É preciso dar o exemplo!
E, por mais que a conversa esteja alinhada, sabemos muito bem o impacto que o exemplo dos próprios pais têm, já que, na primeira infância, eles costumam ser modelos dos filhos. Dados da pesquisa do IBGE mostram que 58,9% dos estudantes de 13 a 17 anos responderam que o pai, a mãe ou ambos consomem bebidas alcoólicas. “Como você vai falar para um filho não fumar se você fuma? Ou vai dizer pro filho não beber, se nas suas festas de família, você tem 40 latas de cerveja na mesa? O menininho de 6 anos vendo o pai bebendo e fumando cigarro eletrônico vai ficar motivado a fazer o mesmo”, acredita o presidente do Núcleo de Estudos de Combate ao Uso de Drogas para Crianças e Adolescentes.
Para que as crianças compreendam a noção do risco, diz o pediatra, os pais também precisam entender que ele existe. É comum acreditar que perigos relacionados ao álcool, como dirigir embriagado ou ainda quadros severos relacionados às drogas são realidades distantes. É o famoso “comigo não acontece”, onde os adultos ignoram sinais de que o consumo de álcool, tabaco ou outras drogas possam estar prejudicando a vida – e que podem, sim, influenciar nas escolhas dos filhos no futuro. Afinal, a criança pode normalizar o uso (ou mesmo os excessos dos pais) e achar que tudo bem agir assim.
E, além do exemplo, o apoio da família também pode ter desdobramentos nos hábitos futuros da criança. É o que mostra um estudo da Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos, publicado em 2022 na revista Addictive Behavior. Nele, os pesquisadores associam a solidão na infância a um nível elevado de estresse, o que resultaria em um consumo abusivo de álcool na vida adulta.
A pesquisa contou com a participação de 310 universitários que responderam a questionários sobre sua infância. Os resultados mostraram que aqueles que relataram sentir-se mais sozinhos antes dos 12 anos também apresentaram um consumo mais frequente e em maior quantidade de álcool na adolescência e na vida adulta, em comparação com crianças que não se sentiam solitárias.
Isso apenas reforça o que os pediatras de todo mundo já enfatizam: o acolhimento familiar e das pessoas ao redor da criança é de extrema importância na prevenção do abuso de drogas em seu futuro. E não apenas a presença dos pais é importante no cotidiano infantil, mas seu olhar atento para o filho, buscando incentivar sua socialização e notando desvios comportamentais.
Confiança é a base!
Acompanhar os filhos em suas jornadas de entendimento pode não ser uma tarefa fácil. É necessário cultivar a escuta atenta, atualizar-se e dialogar com base em evidências, acompanhando de perto cada fase. Também é importante estimular o convívio social e o lazer, mas estabelecer combinados (e reavaliá-los, quando necessário), além de oferecer suporte diante de dúvidas e possíveis deslizes. E tudo isso revendo os próprios hábitos para servir de exemplo. Quanto menos tabu existir nos papos com os nossos filhos e quanto mais aberto e franco for o diálogo ao longo da vida, maiores serão as chances de que a orientação seja efetiva e valiosa na formação desse indivíduo.
São muitos desafios, bem sabemos, mas vale a pena encará-los, viu? Ao crescerem cientes dos riscos e amparados por essa base de confiança com os pais, as crianças tendem a chegar à adolescência com autoestima, sensação de pertencimento e com maior tranquilidade para lidar com a pressão social. Essa combinação geralmente resulta em uma base de segurança que permite que, diante da fase de curiosidade e experimentação – que é natural e esperado que aconteça! –, nossos filhos possam fazer escolhas mais conscientes. Essa é a verdadeira prevenção.