A Shantala, essa técnica ancestral de massagem, que está presente na cultura de várias etnias na Índia, nasceu para o Ocidente por acaso.
O hábito de untar as mãos em óleo morno e realizar sequências de massagem nos membros e no torso dos bebês, com a finalidade de promover relaxamento muscular, para facilitar a passagem de gases e aliviar desconforto intestinal, para criar laços de afeto entre mãe e bebê, já era culturalmente sedimentado, validado pela medicina ayurvédica, quando Frédérick Leboyer presenciou o exercício da prática numa calçada, no decorrer de uma viagem à Calcutá, na Índia.
O parto no século XX: sofrimento, solidão e trauma
Na década de 70 do século passado, o modelo ideal de parto, no Ocidente, era uma intervenção realizada em centro cirúrgico, a mãe posta em sedação medicamentosa induzida, ambiente em temperatura baixa e altamente iluminado. Se era um parto normal, a mãe passava por vários procedimentos, desde a tricotomia, passando eventualmente pela indução medicamentosa de contrações, até a episiotomia. As cesarianas eram extremamente comuns, e celebradas pela medicina como o melhor e mais seguro método, tanto para a mãe quanto para o recém-nascido.
Realizado o parto, a criança passava por avaliação, era removida para a área neonatal, e só era reunida novamente à mãe muitas horas depois. Nesse ínterim, a criança era alimentada com fórmula, em mamadeira. Era contida em cueiros de flanela, envolvidos em esparadrapos. A mãe era advertida a não desmanchar os “pacotinhos” ao receber o bebê, para manter a criança calma. Dessa forma, só o rostinho do bebê ficava disponível para ser tocado e acariciado.
“Ainda hoje, ao ser admitida em trabalho de parto (TP) em um hospital público, de um modo geral, a mulher é afastada de seus familiares e submetida a uma série de procedimentos de indicação duvidosa. Como forma de adequar o TP ao funcionamento do hospital e aos horários dos profissionais, sua fisiologia é modificada por intervenções que têm o objetivo de acelerá-lo, independente dos desejos da mulher ou de eventuais riscos para ela e para o bebê. Estas intervenções são geralmente executadas sem que a mulher seja informada sobre o que está sendo feito e é comum que permaneça abandonada no pré-parto sem nenhum tipo de suporte físico ou emocional. Com dor, em jejum, seminua, num ambiente estranho e com profissionais desconhecidos, a mulher não tem como vivenciar esta experiência senão como um sofrimento interminável. A ênfase dada apenas aos aspectos médicos, durante todo o acompanhamento do TP, parto e nos cuidados imediatos com o bebê é exagerada e ocorre em detrimento dos aspectos psicossociais da gravidez e do parto.”
BOURGUIGNON, A. M., & GRISOTTI, M.. (2020)
Considerando que o excerto acima refere a realidade do parto no século XXI, imagine-se a reação da classe médica às propostas de parto humanizado trazidas pelo obstetra Fréderick Leboyer. Na década de 70 do século passado, Leboyer pesquisou práticas tradicionais indianas e da ayurveda. O conceito de parto humanizado era considerado absurdo, anticientífico e em termos de saúde pública, altamente irregular e irresponsável.
Mas o que era essa proposta, no bojo da qual surgiu também a prática da Shantala?
O Parto Humanizado e a Shantala
O obstetra francês Frédérick Leboyer foi o responsável por trazer para o Ocidente uma versão da abordagem ayurveda para o momento do parto.
O método sugeria, revolucionariamente, basear o procedimento na condução da Mãe e na perspectiva do nascituro: “a mulher deve ser a capitã desse barco“, afirmou Leboyer em entrevista ao periódico britânico The Guardian. Opondo-se diametralmente à institucionalização do corpo da mulher, predominante na metodologia ocidental, a abordagem de Leboyer colocava a mãe como sujeito dessa experiência.
O ambiente em que se daria o parto deveria estar aquecido e em baixa luminosidade, com música ou sons suaves, privilegiando o bem-estar da parturiente, e diminuir o stress do nascimento para o bebê. Toda e qualquer estimulação ao corpo da parturiente deveria estar combinada e receber sua autorização para acontecer. Procedimentos universalmente utilizados, como a sedação, a tricotomia e a episiotomia não eram considerados padrão no método Leboyer.
Não mais um parto solitário: o pai era convidado a estar com a Mãe durante todo o procedimento, atuando juntamente às obstetrizes para facilitar a chegada do bebê. Em seu livro Nascer sorrindo, Leboyer descreve, do ponto de vista da criança, a possibilidade de um parto sem dor ou violência para a Mãe, sem trauma para o bebê.
Nascer sorrindo foi publicado pela primeira vez em 1974, e Shantala, em 1976, e ambos fazem parte do interesse de Leboyer pela humanização do parto e do cuidado com a primeira infância. Tendo sido, ele mesmo, vítima de violência obstetrícia, Leboyer encontrou engajamento fora da academia. Seus livros foram muito criticados pela classe médica, mas recebidos com entusiasmo pelo público feminino jovem.
No Brasil, o método chegou pelas mãos do obstetra Claudio Basbaum, ainda em 1974. Em 1979, o tema foi pauta do programa Fantástico, numa reportagem extremamente sensível, com imagens de trabalhos de parto, de falas do Dr. Basbaum e da primeira mulher a fazer o parto humanizado, que impactaram a forma como o procedimento era encarado pelo público em geral.
A validação maior, em nosso país, se deu em 2005, quando o parto humanizado foi incluído nos programas do SUS: a Lei nº 11.108, da Senadora Ideli Salvatti, do PT de Santa Catarina, conhecida como Lei do Parto Humanizado, foi sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
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A Shantala como possibilidade terapêutica e holística ao alcance da Mãe
A publicação de Shantala, em 1976, alcançou um público já impactado, e apesar da recepção fria da maior parte da classe médica e da academia, essa prática popularizou-se em espaços alternativos em todo o país.
O lançamento do livro foi acompanhado de entrevistas, onde a prática era descrita como um procedimento simples, a ser realizado em bebês com mais de um mês de idade, em um espaço calmo, com luz baixa e temperatura quente. Nenhuma ferramenta excepcional requerida, além das mãos aquecidas e do foco de quem a ministraria.
A lista de benefícios era significativa: após as primeiras sessões de massagem, a criança já demonstraria maior relaxamento, uma digestão mais tranquila, um sono mais calmo e mais longo.
Leboyer descreve em seu livro a massagem que uma mulher indiana chamada Shantala aplicava em seu bebê, Gopal. Shantala estava sentada sobre uma esteira na calçada, Gopal sobre seus joelhos, e ela massageia o rosto, o torso e os membros do bebê, com as mãos untadas em óleo vegetal, vira o bebê de bruços, e prossegue a massagem sobre a lombar do menino. No vídeo feito às margens do Tâmisa, pode-se ver Gopal reagindo com sorrisos e gritinhos à massagem, pode-se ver Shantala com os olhos fitos na criança, o sorriso aberto de volta. Pode-se ver Gopal relaxado e cedendo ao sono depois de receber a massagem.
Assim como o parto precisou ser humanizado, a relação dos pais com os bebês também passou por transformações, quando confrontada com outras possibilidades de vivenciar a primeira infância. Atualmente a shantala faz parte do rol de Práticas Integrativas do SUS, e é oferecida por secretarias de saúde em vários municípios de todo o país.
Como praticar Shantala com seu bebê
A partir do primeiro mês de vida, seu bebê já pode se beneficiar dessa prática.
O primeiro cuidado é a escolha do local onde a massagem vai acontecer: o local deve estar em penumbra, e a temperatura quente o bastante para que o bebê não sinta frio.
A posição de quem vai aplicar a massagem é igualmente importante. No vídeo, Shantala faz a aplicação com a criança sobre suas pernas, e nem todos conseguem manter essa posição com conforto durante o tempo necessário à prática. Conforto é importante para quem aplica e para quem recebe a massagem. Uma toalha dobrada, uma manta, até mesmo um tapete de Yoga podem servir para apoiar o bebê.
Use o óleo vegetal de sua preferência: o óleo de coco extravirgem é uma boa opção, e tem um aroma suave e agradável. Para que o óleo fique aquecido na temperatura ideal, você pode colocar o frasco em contato com a sua pele por alguns minutos.
Completando a ambientação, escolha sons ou músicas suaves para tocar durante a Shantala. Esse conjunto de cuidados proporcionará ao bebê estímulos em 4 de seus 5 sentidos.
Escolha o horário para a massagem pelo menos uma hora após a mamada, para não interferir na digestão. Um horário em que você esteja tranquila, e possa estar totalmente entregue à realização da Shantala, para proporcionar à sua criança não apenas uma massagem mas um momento significativo, multissensorial e afetivo.
Shantala começa a sequência pelo rostinho de Gopal, com as mãos untadas em óleo vegetal aquecido, usando as pontas dos dedos para fazer movimentos circulares descendentes, em ambas as laterais do rosto do bebê.
A seguir, Shantala começa a massagear o torso da criança, posicionando as mãos nos dois ombrinhos, fazendo em movimentos cruzados, massagem para as duas laterais do corpo. Depois, sempre com as mãos bem untadas, faz o movimento descendente, do ombro até a mãozinha. A seguir, cada um dos dedinhos também é massageado, em movimentos descendentes.
Depois, as duas pernas, em movimentos descendentes, passando por toda a extensão desde a coxa até tornozelos. A estimulação dos pés é feita primeiro em toda a sua extensão, e depois em cada um dos dedinhos.
Gopal é então posicionado de bruços, para a massagem da lombar. O toque é feito sempre em movimentos descendentes para estimular a expulsão de gases e para oportunizar alongamento, Gopal é virado novamente, e Shantala cruza seus bracinhos sobre o peito, e depois os estende, como abrindo e fechando um abraço. O mesmo movimento é feito com as pernas dobradas, trazendo os joelhinhos do bebê para o peito. A cada dobra, há também o movimento de extensão.
Todo o processo leva de 15 a 20 minutos, e deve ser incorporado à rotina diária da criança, para maximizar benefícios.
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Violência obstétrica e experiência pessoal
A primeira vez que fui pessoalmente alcançada pelo impacto das publicações de Leboyer foi em 1987, no Coletivo Feminista, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Ali, fiz as primeiras consultas obstétricas de minha primeira gestação.
Como a lei do parto humanizado ainda não existia, minha primeira experiência com a violência obstétrica se deu no ano seguinte, em 1988, em outra instituição.
Trocas culturais ajudaram a tornar possível que minha filha, 34 anos depois, tenha dado à luz acompanhada por seu companheiro, num parto humanizado, sem necessidade de hospitalização, totalmente livre de violências ou traumas.
Durante séculos, violências bárbaras foram cometidas em nome da biologização de um processo que é atravessado por questões psicossociais. Pensar a criança como um ser sensível a ser considerado desde o primeiro instante do trabalho de parto, estimular a criança através de um método que promove não apenas bem-estar físico mas comprovadamente estabelece vínculos afetivos duradouros entre mãe, pai e bebê, essas ideias foram e seguem revolucionárias.
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Estante Quindim
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