A literatura de qualidade é aquela que nos abre para a experiência humana. Que nos coloca em contato com sentimentos e instiga reflexões. Quando é compartilhada em família, pode estreitar vínculos e pelo afeto se tornar uma inesquecível memória da infância. Tudo isso é o que transpira a obra de Marina Colasanti, uma das autoras mais celebradas de nosso país e curadora do Clube Quindim. Jornalista e tradutora, Colasanti tem uma obra vasta, dedicada a leitores e leitoras de todas as faixas etárias. Em seus contos, é possível refletir sobre igualdade, identidade, liberdade e tantos outros valores fundamentais para os desafios que vivemos hoje. Por seu trabalho, recebeu prêmios como O Melhor para o Jovem, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, e o Prêmio Jabuti. Renata Nakano, cofundadora do Clube Quindim, conversou com Colasanti sobre seu trabalho literário, sobre literatura infantil e infância. Confira:

Renata Nakano: Marina, em sua escrita, você passeia por muitos gêneros. Quais caminhos a levaram para a literatura infantil?
Marina Colasanti: Os caminhos físicos foram casuais: o editor chefe do jornal em que eu trabalhava me pediu para assumir a editoria do Caderno Infantil porque a editora titular havia sido presa por atividades contra a ditadura. Mas sabemos que nada é tão casual quanto parece. O que fez com que eu transformasse a atividade puramente jornalística em um veio profundo da minha vida foi o fato de ter sido uma criança intensamente leitora. A leitura não apenas desenvolveu meu imaginário, como me deu confiança nele.

Renata Nakano: Quando pensamos em livros infantis, pressupomos uma ideia de infância. Qual é a infância que você vive em sua obra?
Marina Colasanti: Não sei se é tão simétrico quanto você coloca. Eu não vivo uma infância, nem um conceito específico de infância, em meus livros. Os conceitos de infância mudam através da história, enquanto a literatura se quer permanente. Escrevo como adulta que sou, e como adulta me dirijo às crianças – exatamente como faço na vida real. Não tento seduzi-las, não me pergunto como pensam, não quero imitá-las. Sei que cada criança se aproximará do meu livro a seu jeito, e que cada uma é uma, com seu universo particular, independente da idade. Desejo apenas que colham na minha escrita o que mais os toca, e o façam seu.

Renata Nakano: Qual o maior desafio para os pais que lidam com a infância de seus filhos no Brasil atual?
Marina Colasanti: O Brasil, aquilo que o Brasil se tornou, as estruturas e os desejos que levaram a isso, são o maior desafio. Muitas vezes os pais desconhecem esses mecanismos e, sem querer, os repetem ou os alimentam. O único colete salva-vidas para a infância no Brasil é o conhecimento.

Renata Nakano: Como a literatura pode contribuir para lidar com esses desafios?
Marina Colasanti: Toda a experiência humana, todos os sentimentos que nos qualificam, estão contidos na literatura. Através da literatura nos apropriamos da história, da sociologia, e descobrimos a dinâmica que se estabelece entre o eu e o outro. As histórias sobre as quais a literatura se constrói são o que menos importa; o que conta é a sua busca constante de entendimento da alma.

RN: No Clube Quindim, trabalhamos muito com a ideia de leitura em família, com os pais lado a lado da criança, em relação horizontal, abertos para esses olhares menos condicionados. Para você, como a literatura pode ajudar a despertar esse olhar da infância em todos nós?
MC: Pergunta complexa por várias razões. Uma delas é que remete a pais ideais, leitores eles mesmos, sem preconceitos, bem preparados, pais humanistas! E sabemos que, no Brasil, pais desse tipo sãoraros. Outra razão é porque não vivi essa experiência na infância, meus pais me davam muitos livros, muitos mesmo, mas não liam comigo, não achavam necessário. Eu lia com meu irmão e com ele aprendi a importância de compartilhar a leitura (toda a minha vida li em tandem!). Tive, porém, a experiência invertida. Como mãe li muito para, e com, minhas filhas. Que se tornaram leitoras para sempre.

RN: A moça tecelã é um dos seus livros já entregues aos leitores do Quindim. Uma história sobre uma mulher que tece (e destece) a própria história. Trata-se de uma personagem, como muitas outras suas, que atravessa dificuldades e se fortalece ao encontrar uma noção de amor-próprio e uma emancipação. Na literatura infantil, porém, é comum se encontrar resistência e segmentação entre histórias “de menina” e “de menino”. Qual a importância de essas histórias de protagonismo feminino serem também lidas e assim vivenciadas por homens?
MC: Os humanos são seres sociais, atravessam a vida cercados de outras pessoas. E, cada dia mais, as outras pessoas com que convivemos ou cruzamos são de ambos os sexos. Por que, então, a literatura limitaria entre entrecruzar? Nada mais útil do que saber como o outro pensa e sente, pois isso nos prepara para o seu modo de agir. “Meninos” e “meninas” são complementares, não antagônicos.

RN: Como curadora do Clube de Leitura Quindim, você foi convidada a fazer uma seleção dos livros que toda criança merece ler. Quais os principais desafios nesse processo de curadoria?
MC: Eu sou escritora, não sou nem professora nem teórica de literatura infantil. E o mercado é vasto. É difícil para um autor tomar conhecimento de tudo o que se publica. Temi esquecer alguma obra fundamental, desconhecer algum autor importante ou algum jovem autor de relevância. E é muito
provável que o tenha feito!

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