Num mundo que valoriza cada vez menos a arte e as mulheres, como conciliar a maternidade e o mundo artístico? Além da luta para que a profissão seja reconhecida, o desafio de se estabelecer no mercado — ao mesmo tempo em que cuida dos filhos e tenta pagar as contas —, a violência de gênero se faz ainda mais presente em um nicho específico: na arte de rua.
As violências a que mulheres que pintam e expõem seus trabalhos nos murais das grandes cidades são submetidas são uma barreira a mais, sem dúvida. Mas não as impedem de continuar ganhando o mundo: nos últimos anos, várias artistas brasileiras passaram a reivindicar seus espaços e, com isso, temas como a maternidade e a infância se tornaram cada vez mais presentes nos muros do país.
O termo muralismo nasceu a partir das pinturas feitas no início do século XX, especialmente no México. Para elaborar seus murais, realistas e monumentais, os artistas se inspiraram nas antigas culturas maia e asteca, na arte popular e no folclore mexicano do período colonial, que se aliaram com o passar do tempo às contribuições das vanguardas artísticas europeias, principalmente o expressionismo. A ideia dos artistas da época era justamente romper com a academia, criando uma arte original e ao mesmo tempo moderna.
O movimento conduzido inicialmente e por muito tempo por homens — um dos grandes nomes do cenário mexicano é Diego Rivera, marido de Frida Kahlo — chegou com mais força no Brasil apenas no final dos anos 1970. Seu principal representante foi Cândido Portinari, que pintou grandes painéis como o de Tiradentes, hoje no Memorial da América Latina, em São Paulo; os da sala da Fundação Hispânica na Biblioteca do Congresso americano, em Washington; e o famoso Guerra e paz para a sede da ONU, em Nova York.
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Violência de gênero
Mas, se no início a arte mural era dominada quase exclusivamente por homens, cada vez mais um número crescente de mulheres vem se aprimorando na técnica. Antes, no entanto, elas tiveram que percorrer um longo e tortuoso caminho.
A artista Di Couto relembra que quando começou a pintar nos muros do Rio de Janeiro, onde mora, os espaços eram muito mais hostis — numa época em que o grafite, assim como o muralismo — era ainda muito criminalizado.
“Comecei aos 15 anos e naquela época pintar nas ruas do Rio de Janeiro era muito desafiador, principalmente pela exposição à violência durante o processo. Outro ponto era a questão da criminalização do grafite, muita gente não gostava. A arte de rua era recriminada em vários aspectos“, contou.
A artista Panmela Castro, que trabalha com arte de rua desde o início dos anos 2000, revelou em uma entrevista recente para o site Arte que Acontece, ter sofrido violências sexuais nas ruas por desconhecidos — e até por colegas de trabalho em que confiava.
“Ser grafiteira no início dos anos 2000, no Rio de Janeiro, era tomar coronhada da polícia, ter o cabelo pintado de spray, ser chamada de vaca, ser roubada e assediada. Era uma vida que eu não queria para nenhuma menina“, disse.
Grafite x muralismo
O muralismo e grafite são duas expressões artísticas intimamente relacionadas. Ambas são formas de arte com um claro compromisso social — é comum encontrar murais e grafites em áreas urbanas degradadas em várias cidades ao redor do mundo. Mas, apesar das semelhanças, são duas manifestações artísticas diferentes: enquanto a primeira utiliza cores fortes e uma linguagem de rua, a segunda tem uma intenção mais decorativa e, especialmente, uma função didática.
Hoje Di Couto é mãe de duas meninas, Cora, de 7 anos, e Jade, de apenas 4 meses. E, ao se tornar mãe, sua arte também mudou: a maternidade acabou impactando profundamente a estética de seus trabalhos. Para desmistificar o seio feminino com a amamentação, por exemplo, quase todas as suas obras mais recentes têm uma gota de leite saindo do peito de uma mulher. Foi o começo de uma nova estética, com referências de sua criação e das mulheres da família, que acabou se tornando uma de suas marcas registradas.
Sua maternidade coincidiu com o crescimento e a valorização do muralismo nos últimos anos. Hoje, seu trabalho é bem mais aceito e valorizado. “Hoje, para pintar nas ruas temos uma produção prévia, com um esquema de segurança mais organizado”, contou. “E desde que me tornei mãe, já fiz muitos murais sobre mulheres e sobre maternidade. As mães são a minha maior inspiração“.
A infância também está retratada em um de seus murais mais famosos: uma menina lendo um livro dentro de um jardim, usando um uniforme de uma escola pública carioca, arte feita no prédio da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro.
“Ela está meio mergulhada no mundo da imaginação. Esse mural, especificamente, me remete à infância e à fantasia”.
Os murais como arte política
A maternidade também está retratada no maior mural de arte contemporânea do mundo feito por uma artista indígena: Daiara Tukano, descendente do povo Tukano, que vive no Alto Rio Negro, no Amazonas, na fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela. A obra ocupa mais de mil metros quadrados no histórico Edifício Levy, no centro de Belo Horizonte. “Selva Mãe do Rio Menino” retrata a figura de uma grande mãe indígena com seu filho no colo.
“A estratégia mais eficiente para a gente combater a violência é a cultura, é a arte”, disse a artista em entrevista para o portal do Instituto Socioambiental. “A arte é política”.
Já a artista visual Hanna Lucatelli cria personagens mulheres com uma aura sagrada e poderosa, geralmente retratadas em preto e branco, e quase sempre acompanhadas de mensagens provocando reflexões. Não é difícil de encontrar seus enormes murais por aí, especialmente em São Paulo.
São Paulo também é o cenário de Aline Bispo, artista multifacetada e criadora da ilustração de capa do bestseller Torto arado, de Itamar Vieira Junior. A convite da Adidas, Bispo criou a arte de uma empena no viaduto do Minhocão para homenagear a diversidade feminina da cidade, além de promover a ocupação de espaços públicos por mulheres e meninas.
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