Existem danos que causamos hoje, que só vamos perceber muitos anos depois. E, veja bem, não é por falta de aviso. A consequência da pouca conscientização ambiental culmina hoje em uma grave crise climática, que embora não seja um problema novo, agora, mais do que nunca, sentimos seus efeitos no dia a dia com uma intensidade brutal. Um bom exemplo disso é a contaminação de microplásticos, que sorrateiramente já se faz presente na nossa vida.
Primeiro, é preciso entender o que são esses inimigos silenciosos. Tratam-se de minúsculas partículas de plástico com dimensões que variam de micrômetros a milímetros – geralmente se usa a medida de partículas menores de 5 mm –, chamados de micro ou, quando menores ainda, de nanoplásticos. Elas se desprendem de fontes maiores por desgaste do tempo, por fatores ambientais que as degradam quando descartadas incorretamente ou por fragmentação mecânica (quando trituradas, batidas ou amassadas). Há ainda microplásticos adicionados intencionalmente pela indústria, como em produtos cosméticos e de higiene.
Minúsculos, na forma de detritos, fibras ou até poeira, eles caem na natureza involuntariamente e já foram encontrados no mar, em animais que acabam ingerindo-os, na neve do Ártico e até em cumes de montanhas, como os Pirineus. Além disso, também podem se dispersar no ar, em outras fontes de água e até alterar a condição do solo. Ou seja, são importantes poluentes ambientais que chegam até a nossa casa através do que bebemos, dos tecidos sintéticos que usamos, dos alimentos, como o sal e os peixes, e até no ar que respiramos.
Não por acaso, a atenção do mundo para o tema só aumenta. Em 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou sobre a presença maciça deste polímero sintético no meio ambiente e seus possíveis impactos para a saúde. A cada ano, as pesquisas apenas confirmam que o microplástico já faz mais parte das nossas vidas do que imaginamos – e desde muito cedo.
Em 2021, uma pesquisa publicada na revista científica Environmental Science & Technology apontou concentrações 10 vezes mais altas de microplástico nas fezes dos bebês do que em adultos. No ano seguinte, um novo estudo conduzido na Itália mostrou pela primeira vez a presença do material no leite materno. E ei, não para por aí: em 2023, um estudo publicado na revista científica Environment International revelou a presença de microplásticos na placenta de mulheres grávidas. É grave e só mostra que, desde muito jovens, estamos expostos a esses resíduos, sabendo muito pouco sobre as consequências dessa interação.
Mas como os microplásticos chegam até nós?
Embora sua presença seja silenciosa, não é difícil imaginar o tamanho do problema em que estamos inseridos. Afinal, basta olhar ao nosso redor: estamos cercados de plástico. De acordo com dados do relatório “Solucionar a poluição plástica: transparência e responsabilização”, do WWF (Fundo Mundial para a Natureza), em 2016, ano mais recente do qual há dados disponíveis, a produção de plástico mundial alcançou a marca de 396 milhões de toneladas métricas.
E você sabia que mais de 75% de todo o plástico produzido no mundo já virou lixo? Só no Brasil, foram 11,3 milhões de toneladas, sendo que apenas 145 mil toneladas foram efetivamente recicladas, um índice muito abaixo da média global de reciclagem plástica que é de 9%. Somos o quarto país que mais gera este tipo de resíduo no mundo, segundo dados do Banco Mundial.
O plástico é sabidamente um material ambientalmente persistente, ou seja, que demora para desaparecer. A maioria costuma ser descartado incorretamente em lixões, aterros ou mesmo no mar e em rios. Segundo dados da pesquisa “River plastic emissions to the world ‘s oceans”, de 2017, estima-se que entre 1,15 e 2,41 milhões de toneladas de resíduos plásticos entram no oceano todos os anos a partir de rios. Olha o tamanho do problema!
Uma vez no meio ambiente, o ciclo é o mesmo: o plástico vai sofrendo as intempéries do tempo, da natureza e de forças mecânicas, fragmentando-se em partículas cada vez menores que voltam a circular por aí. “Esse microplástico formado no ambiente aquático ou marinho, por exemplo, é absorvido pela fauna, ou seja, pelos peixes e crustáceos, que fazem parte da dieta humana. Então, uma das formas de absorção ou de ingresso dos microplásticos no organismo humano é através da comida”, aponta o pediatra Carlos Augusto Mello da Silva, presidente do Departamento de Toxicologia e Saúde Ambiental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
E do que bebemos também: em 2017, um levantamento conduzido pela organização não governamental Orb Media coletou amostras de água potável em nove países de cinco continentes e 93% delas continham plástico. No Brasil, nove das dez garrafas analisadas apresentaram fibras do material. Em 2019, mais um alerta, desta vez da OMS que organizou estudos apontando que a água que bebemos contém mesmo os microplásticos. E, agora, mais recentemente, outro laudo complementar e desanimador: pesquisadores da Columbia University conseguiram mensurar em um estudo publicado em janeiro de 2024, que a água engarrafada contém uma média de 240 mil fragmentos detectáveis de plástico por litro.
Além disso, o pediatra da SBP conta que há a possibilidade dos tecidos sintéticos que usamos, como poliéster e nylon, liberarem micropartículas de plástico que ficam circulando por nossa casa. “A lavagem e centrifugação liberam microplásticos que fazem parte dos polímeros dos tecidos que compõem essa roupa”, diz. Por fim, outra maneira do microplástico chegar até a nossa casa é pela poluição aérea. Ao fabricar o plástico, muitas vezes fraciona-se tanto o material que ele acaba liberando um resíduo ou uma poeira. Ela ingressa na poluição atmosférica e, junto de outros poluentes vindos de combustíveis fósseis, é inalada por nós.
Existe um limite seguro pra nossa saúde?
Em 2019, uma pesquisa conduzida pelo Departamento de Biologia da Universidade de Victoria, no Canadá, revisou e compilou 26 estudos sobre o tema para fazer um levantamento de quanto plástico possivelmente estamos ingerindo. Eles calcularam que, na época, seriam cerca de 74 mil a 121 mil partículas por ano, em média, na comida e no ar que respiramos, além de 90 mil partículas na água engarrafada. Hoje, com novas tecnologias capazes de mensurar melhor estas micro e nanopartículas, sabemos que esse número pode ser ainda maior.
Mas, afinal, quanto seria o tolerável? Infelizmente esta é uma pergunta ainda sem resposta. Não há uma medida oficial mensurada por órgãos sérios e globais do que seria seguro um ser humano consumir. Para o presidente do Departamento de Toxicologia e Saúde Ambiental da SBP, qualquer quantidade de material inorgânico no corpo humano já deveria ser um sinal de atenção.
“Não existe hoje nenhum parâmetro internacional. Então, enquanto não for definido qual o limite seguro para a gente ter de plástico, usamos, principalmente com crianças, o chamado princípio da precaução. Nós não precisamos de plástico no nosso corpo, não faz parte da fisiologia humana. Na minha opinião de médico toxicologista, nunca haverá um limite tolerado”, explica Carlos Augusto.
Como afeta o nosso corpo?
Essa é a pergunta de milhões. Embora haja diversos estudos mostrando que o microplástico foi encontrado no sangue, no tecido cardíaco e pulmonar de adultos, por exemplo, a verdade é que não se sabe ainda como ele se comporta dentro do organismo e quanto conseguimos excretar dessa quantidade sem prejuízos para nossa saúde.
O que se supõe com o que já sabemos é que, como toda substância estranha ao corpo, é esperado que ele traga consequências. A maioria dos estudos aponta que o microplástico que permanece fisicamente no organismo poderia se acumular em alguns órgãos como estômago, rins, pulmão e fígado, causando inflamações, obstruções ou alergias, algo já observado em animais marinhos em contato com a substância.
E quanto menor a partícula, mais fácil ela conseguiria penetrar nas células. Isso sem falar na possível toxicidade dos produtos químicos também presentes nelas. Outra hipótese levantada é de que o microplástico possa ainda atuar como “transporte” de outros patógenos, como fungos, bactérias e vírus, além de alterar a microbiota do nosso intestino.
Consequências indiretas também são estudadas, uma vez que já se sabe, por exemplo, da presença de nanopartículas de microplástico na placenta e no leite materno. “Se você prejudica a placenta, que é um órgão responsável pela nutrição do bebê, pode prejudicar o crescimento dele, a oxigenação do feto, então tudo tem efeitos diretos e indiretos. Como o microplástico é uma substância estranha e inorgânica, ele pode gerar uma resposta inflamatória ou gerar radicais livres, capazes de oxidar as nossas células. Tudo ainda está sendo estudado, mas certamente eles são danosos”, diz o pediatra.
E quanto mais cedo somos expostos a essa ação, como estão as crianças atualmente, mais efeitos poderemos ter no futuro, por isso a importância de mais estudos para entender como barrar efeitos nocivos desde já.
“Após a ingestão de microplásticos no corpo humano, seu destino e efeitos ainda são controversos e pouco conhecidos. Não há informações suficientes para compreender totalmente as implicações dos microplásticos para a saúde humana; no entanto, os efeitos podem potencialmente ser devidos às suas propriedades físicas (tamanho, forma e comprimento), propriedades químicas (presença de aditivos e tipo de polímero), concentração ou crescimento de biofilme microbiano”, conclui o estudo “A Detailed Review Study on Potential Effects of Microplastics and Additives of Concern on Human Health”, de 2020. Ou seja, ainda é cedo para dizer as consequências, mas tarde para não se preocupar.
Diferentes maneiras de contágio
Quando o tema é plástico, existem muitas questões problemáticas para além do consumo físico de micro e nano plástico. Os componentes químicos presentes no plástico, independente de seu tamanho, também causam preocupação, como pontuamos acima. Talvez você já tenha ouvido falar que não devemos consumir alimentos aquecidos em recipientes plásticos no micro-ondas ou mesmo que não devemos aquecer o leite do bebê na mamadeira, não é mesmo?
A raiz do problema, nesses casos, não é a liberação de pequenas partículas físicas dele no alimento, como se pensava antes, mas a contaminação que os diversos aditivos e componentes utilizados na produção do plástico podem causar na nossa saúde. É o caso, por exemplo, do Bisfenol A, componente hoje proibido nas mamadeiras por interferir na produção hormonal da criança.
“São assuntos distintos. A questão do aquecimento do plástico não é a liberação de microplásticos. É porque vários recipientes deste material tem componentes químicos que, quando aquecidos, migram do plástico para comida, contaminando-a com frações muito pequenas, mas que podem ter efeitos nocivos, principalmente para o desenvolvimento neurológico das crianças e a maturidade do sistema endócrino delas”, diz ele.
No estudo “An emerging class of air pollutants: Potential effects of microplastics to respiratory human health?”, pesquisadores da USP alertam que existem mais de 4000 substâncias químicas utilizadas na embalagem de alimentos e mais de 5000 tipos diferentes de plástico no mercado. Se considerarmos que os microplásticos são frações de todas essas possibilidades de combinação, podemos começar a entender a dimensão do problema, não é mesmo?
E tem como evitar a contaminação?
Como você já pode perceber, são muitas incógnitas para pouca certeza. O que sabemos hoje é que os impactos ambientais associados à poluição plástica e a possibilidade de contaminação da cadeia alimentar são um risco real.
E se o desespero bateu por aí, muita calma. A ideia não é alarmar as famílias, mas conscientizar para que possamos mudar a trajetória enquanto caminhamos. Em casa, podemos repensar o ciclo de consumo, substituir o uso do plástico por outros materiais que possam ser reutilizados, incentivar ações de reciclagem na nossa comunidade e ficar atentos para novos estudos.
Já globalmente, é preciso cobrar uma produção mais sustentável do polímero pelas empresas, uma legislação eficiente para o controle dos produtores, além de estimular ações que visem a uma conscientização popular, empresarial e governamental para descarte correto do lixo e para parar de perpetuar esse ciclo desastroso. Números alarmantes da WWF mostram que, se nada mudar, 104 milhões de toneladas de plástico chegarão na natureza até 2030. É bem preocupante, não?
“Como o microplástico é um subproduto da falta de reciclagem, a melhor maneira de proteger o futuro dos nossos filhos é separar o lixo e estimular na sua comunidade a reciclagem e o descarte correto. Se o plástico não for parar no mar ou no rio, ele não será picotado, degradado pelo calor e virará microplástico. Ele será reaproveitado e, se, em vez de reciclar apenas 9%, nós reciclarmos o contrário, os 80% que são jogados no ambiente, eles não iriam gerar novos microplásticos. Gerariam plásticos inteiros novamente, que seriam aproveitados, reusados e seria um ciclo virtuoso”, diz o pediatra da SBP e completa: “Nós livraríamos o rio, os mares, os peixes, as crianças e todos nós dos microplásticos”.
Há esperança, se houver conscientização, certo?
Estante Quindim
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