Você sabe o que é “sharenting”? Se nunca se deparou com o termo, certamente conhece a prática. O vocábulo apareceu pela primeira vez em 2012, no Wall Street Journal, nos Estados Unidos, mas foi com o passar dos anos que ele se popularizou, levantando debates importantes. O neologismo vem da junção de duas palavras da língua inglesa: “share” (compartilhar) e “parenting” (paternidade ou, ainda, parentalidade). Trata-se, portanto, do hábito de postar fotos e vídeos dos filhos nas redes sociais, em geral, de forma descontraída e sem grandes preocupações.
Um passeio no parque, a comemoração de aniversário, uma gracinha fofa, aquela viagem de férias… que mal pode haver ao compartilhar imagens desses momentos? A primeira questão, aqui, é lembrar que a internet é um território sobre o qual temos muito pouco controle, ainda que haja a ilusão de um certo monitoramento. Mesmo que o seu perfil na rede social seja fechado, por exemplo, você já parou para pensar que, uma vez online, fotos e vídeos saem da sua vigilância para sempre?
Além disso, o perfil privado não é garantia de segurança. Uma pesquisa feita pela Security.org em 2021, intitulada Parents’ social media habits (Hábitos dos pais nas mídias sociais), revelou que 80% dos entrevistados afirmaram ter conexões com pessoas com as quais nunca se encontraram na vida. O dado chama a atenção, mas, de fato, não é incomum aceitar seguidores que são amigos de amigos ou usuários que conhecemos apenas online.
Nos casos de perfis abertos, a preocupação é ainda maior – sabe-se menos ainda quem visualiza as imagens e com qual finalidade. Certamente, isso também vale para os conteúdos dos adultos, mas é importante lembrar que os pequenos não têm noção da exposição a que são submetidos ou qualquer controle sobre a própria privacidade.
Ao mesmo tempo, ainda que os perigos sejam conhecidos e temidos, pode parecer quase impossível pensar em um mundo fora das redes nos dias de hoje. A questão, talvez, seja encontrar um meio-termo a partir do bom senso e com medidas básicas de segurança, evitando excessos que podem ser muito prejudiciais.
oversharenting: quando a exposição extrapola alguns limites
Na esteira dos debates sobre a questão, um novo termo surgiu no mundo jurídico para dar conta de uma realidade preocupante. O oversharenting faz referência à superexposição das crianças na internet, levando ao compartilhamento de conteúdos sensíveis que podem ser usados até de forma criminosa na chamada dark web.
“Esse comportamento pode resultar em uma série de implicações negativas, como a criação de uma pegada digital permanente que pode afetar a criança no futuro, seja em termos de privacidade ou de exposição a riscos como roubo de identidade e assédio”, alerta Denise de Araujo Berzin Reupke, advogada especialista em Privacidade e Proteção de Dados e em Direito Digital.
Nome completo, endereço, a escola em que seu filho estuda. Provavelmente, nada disso está exposto de forma reunida e explícita na sua rede social, mas será que, procurando bem em todos os posts, um usuário mal-intencionado não consegue coletar essas informações? Uma foto com o uniforme da escola e stories com geolocalização são exemplos de conteúdos que permitem esse tipo de identificação – e que, certamente, devemos evitar.
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Crianças e adolescentes também têm direito à privacidade e à proteção de dados
Além da exposição a esse tipo de perigo, cabe lembrar que crianças e adolescentes, assim como os adultos, também têm direito à privacidade, como bem aponta Denise: “É importante considerar que, embora muitos vejam essa prática como uma forma de expressão e compartilhamento de momentos felizes, existe uma linha tênue entre os direitos fundamentais de privacidade versus o direito à liberdade de expressão dos genitores e da autoridade parental em relação à publicação de conteúdo em redes sociais”.
Vale explicar que, do ponto de vista legal, crianças e adolescentes têm seus direitos assegurados pela Constituição Federal, pelo Código Civil, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). “Portanto, é possível argumentar que o sharenting, sem o devido cuidado, pode violar esses direitos, indo além de uma questão moral e trazendo possíveis consequências jurídicas já amplamente discutidas nos tribunais brasileiros”, afirma Denise.
A LGPD, Lei nº 13.709, entrou em vigor em 18 de setembro de 2020, visando regular o tratamento dos dados pessoais e proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade. Sobre esse assunto, Denise explica que a Lei impactou diretamente o uso da internet, já que as plataformas tiveram que se adequar a uma série de obrigações, “oferecendo mais opções de configuração de privacidade, permitindo que os usuários tenham um controle mais granular sobre quem pode ver suas informações e como elas podem ser usadas”, detalha.
A advogada ressalta o Artigo 14, o qual estabelece que o tratamento dos dados pessoais de crianças e adolescentes deve ser realizado no seu melhor interesse. “Por ‘melhor interesse’, entende-se o tratamento de dados pessoais desses indivíduos vulneráveis de maneira a resguardar seus direitos e liberdades fundamentais, incluindo sua privacidade e proteção de dados pessoais”, salienta.
Os principais contras de expor as crianças na internet
A necessidade de proteção, claro, não é à toa. Como sabemos, a perda de privacidade, o risco de roubo de identidade, o possível uso de material para pedofilia, a exposição a assediadores e outros criminosos são os principais riscos iminentes, mas há outros pontos que devem ser considerados.
Imagine que uma situação aparentemente inocente hoje pode ser usada, no futuro, para discriminar ou ridicularizar a criança. Pense, por exemplo, naquela sua foto revelada nos anos 1990 e que, quando você vê, agradece por ter sido criança antes da era digital. Seja por uma simples vergonha, seja por qualquer outro receio, o temor é legítimo e precisa ser antevisto pelos pais ou responsáveis.
Denise reforça que as consequências podem influenciar até mesmo processos futuros de admissão na educação e no trabalho, “sem contar os rastros digitais para algoritmos que poderão manipular dados para o bem ou para mal”, acrescenta a advogada.
Outros riscos estão relacionados ao cyberbullying (por exemplo, quando uma criança vira “meme”, nome dado às imagens consideradas engraçadas viralizadas na internet), à “adultização” ou à sexualização precoce, e à criação de situações que denotem abuso físico ou psicológico com o intuito de gerar likes ou monetização das publicações – o que acontece, muitas vezes, por meio das chamadas trends feitas com as crianças (espécie de “pegadinhas” para gerar engajamento).
“Esses riscos podem ter repercussões a longo prazo, afetando a segurança, o bem-estar e as oportunidades futuras da criança”, a advogada chama a atenção.
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Cuidados básicos ao postar fotos e vídeos dos filhos
Como o ambiente online não é nada seguro, nossa navegação precisa ser. Pensando nisso, Denise traz algumas orientações essenciais ao compartilhar imagens de crianças e adolescentes na internet.
- Ajuste as configurações de privacidade de todas as suas redes sociais para que apenas amigos e familiares próximos possam ver as suas postagens.
- Não use hashtags nem geolocalização para evitar a rastreabilidade.
- Evite o uso de nomes completos (não poste, por exemplo, alguma imagem que revele os sobrenomes).
- Não inclua dados pessoais identificáveis como fotos com uniforme, lugares que frequenta, detalhes da residência, entre outros.
- Pense cuidadosamente sobre o conteúdo da imagem antes de publicá-la.
Para além dessas questões de segurança, é preciso pensar também no direito à preservação da intimidade dos filhos. Em geral, ninguém gosta de ser exposto em momentos de vulnerabilidade ou constrangimento. Mostrar a criança chorando, decepcionada ou sendo repreendida por um comportamento pode não parecer problemático num primeiro momento – e, certamente, os pais não o fazem com a intenção de prejudicar o pequeno –, mas vale refletir se é adequado expor a família dessa forma.
“O compartilhamento de tais momentos pode afetar a autoestima da criança e seu desenvolvimento emocional, além de potencialmente causar problemas de relacionamento entre pais e filhos no futuro”, pondera a advogada, que acrescenta: “É essencial que os adultos respeitem a dignidade e a privacidade de seus filhos, evitando postagens que possam causar embaraço ou desconforto mais tarde”.
Por fim, outro ponto que Denise levanta é a influência que essa exposição talvez tenha no comportamento dos pequenos. “A pegada digital de uma criança ou adolescente pode impactar significativamente a formação de sua personalidade e identidade”, diz a advogada. Isso porque, à medida que crescem, o conteúdo que foi compartilhado por seus pais pode influenciar a maneira como se veem e como são vistos pelos outros. “Por exemplo, uma criança pode sentir que sua identidade virtual foi pré-definida pelo que foi compartilhado sobre ela, o que pode limitar sua sensação de autonomia e autoexpressão, trazendo reflexos na sua identidade pessoal e na sua autodeterminação”, explica.
Um exercício simples de reflexão que Denise propõe é se questionar: se fosse feita por outra pessoa, aquela publicação lhe causaria alguma estranheza? Será que, no futuro, seu filho iria gostar de ver o post e a sua possível repercussão?
Na dúvida, o ideal é sempre optar pela preservação da criança e, conforme ela cresce, pedir a sua permissão antes de postar – prática, inclusive, que vai preparando o pequeno para o momento em que ele mesmo passar a utilizar as redes sociais, ensinando questões como consentimento, liberdade e privacidade.