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Saci versus Halloween no Brasil: vale a pena essa briga?

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Quando, em 2013, o Projeto de Lei n.º 2.479, instituiu o dia 31 de outubro como o Dia do Saci, muita gente comemorou. Afinal, nas escolas e até mesmo em ruas e condomínios, a influência do Halloween, festival de origem pagã, popularizado entre nós por meio do cinema estadunidense e, quem sabe, dos cursos de inglês, era algo a ser combatido.

Crédito: Quora

Um trecho do PL, elaborado uma década antes pelo então deputado Aldo Rebelo, afirmava que a instituição da data festiva “representa oferecer à sociedade um instrumento de valorização da cultura popular como elemento fundamental na constituição da identidade brasileira. Por meio da previsão anual da comemoração da data, na forma de eventos culturais e atividades festivas, as iniciativas propõem o resgate e a valorização de nossas tradições e manifestações folclóricas originais.” Em outro trecho, lemos que a iniciativa buscava ainda “fortalecer o processo de consolidação da identidade nacional bem como a autoestima do povo brasileiro”.

O projeto não esconde sua motivação protecionista: “A data escolhida, 31 de outubro, dia em que se festeja o Halloween, ‘Dia das Bruxas’, nos Estados Unidos, parece-nos pertinente. A comemoração do Halloween no Brasil – como tantas outras celebrações da cultura norte-americana de forte apelo comercial – tem atraído cada vez maior número de jovens e crianças”.

Desde que a data foi cogitada, no último dia de outubro, principalmente, as redes sociais são tomadas de postagens tendo por mote frases como “Viva a cultura nacional!” ou “Hoje é dia do Saci!”. Uma rápida busca via Google mostrará como grupos ultranacionalistas se apropriaram da frase a pretexto de repelir tudo o que se relaciona à dominação estrangeira em nome da “soberania nacional”.

Como o Halloween não chegou até nós pelos meios convencionais de difusão da tradição oral, a exemplo de manifestações como o bumba meu boi ou a congada, por exemplo, deve ser combatido. Há também um componente misógino nessa alegada resistência cultural: sendo o Dia das Bruxas, nada de bom deve trazer. O Saci, personagem compósito que compartilha o DNA de todos os grupos étnicos do país, seria, portanto, um símbolo de resistência, unificando todas as demandas em prol da defesa de nossas tradições, resumidas em palavras como “resgate”, “identidade nacional”, “autoestima” no Projeto de Lei.

Apesar da polêmica, é salutar indagar se a escolha do Saci para combater as bruxas do folclore celta, por mais bem-intencionada que pareça, é uma medida acertada. Pensar a cultura como algo ligado intrinsicamente à identidade nacional, como fizeram, fazem e farão regimes totalitários, é o melhor caminho para resistir ao soft-power de nações como os Estados Unidos? E, afinal, o que tem o Halloween de tão execrável para que seja movida contra ele uma batalha que une os dois polos da política nacional?

Veja também: Histórias do folclore brasileiro: ensine aos seus filhos e valorize a riqueza da nossa cultura!

Origens do Halloween

O Halloween era a festa que prenunciava a chegada do inverno entre os celtas das ilhas britânicas. Guarda estreita relação com o Samh’in (ou Samhain), o “fogo da paz”, um dos maiores festivais dos druidas, realizado no início de novembro. Ainda hoje persiste, na Escócia, com o nome de Hallow-eve. O fogo aceso tinha por finalidade restaurar o vigor do sol que, no hemisfério Norte, parece agonizante. Os cristãos, com o fito de combater a superstição, instituíram, no dia 1º de novembro, o Dia de Todos os Santos, “All Saint’ Day”. O “fogo sagrado” continua a ser aceso nas sepulturas no dia 2 de novembro, votivo aos finados, também introduzido por missionários cristãos e chamado de “All Souls’ Day”.

Para James Frazer, já naquela época, as fogueiras eram acesas para aquecer os parentes falecidos quando estes visitavam as casas onde viveram. O famoso antropólogo, em sua obra mais conhecida, O Ramo de Ouro, afirma que o costume vai muito além da área de influência celta:

‘Não só entre os celtas, mas também por toda a Europa, o Hallowe’en, a noite que marca a transição do outono para o inverno, parece ter sido, antigamente, a época do ano em que as almas dos mortos revisitavam seus velhos lares para se aquecerem junto ao fogo e se reconfortarem com as homenagens que lhes eram prestadas, na cozinha e na sala, pelos seus afetuosos parentes. Talvez fosse natural ocorrer-lhes que a aproximação do inverno trazia as pobres almas famintas e trêmulas dos campos nus e das florestas sem folhas para o abrigo das casas e o calor de suas lareiras familiares.

No período que compreendia o fim do ano em localidades como a Ilha de Man, além das almas dos entes queridos, também as bruxas e outras entidades que o cristianismo taxou como maléficas cruzavam os céus montadas em vassouras e cavalgando gatos pretos, que podiam assumir a forma de cavalos, trazendo maus presságios para quem as encontrasse. Acredita-se que as fogueiras tenham influenciado a tradição da acha de Natal, chamada de Yule log na Inglaterra.

Veja também: Bruxas: saiba mais sobre a história e a importância desse símbolo cultural.

Sem doces, mas também com travessuras

O certo é que a relação com o fogo, além do propósito mágico de aquecer ou iluminar o caminho das almas no período em que o sol entra em declínio, tem a ver com um personagem estranhíssimo, uma espécie de trickster que, por ter enganado o diabo, aprisionando-o, não foi aceito no inferno quando morreu. Por sua vida pouco edificante, também lhe foi negado o céu, sendo obrigado a vagar, como fantasma, por toda a eternidade. Seu nome: Jack With a Lantern (variando em Jack O’Lantern), em português, Jack da Lanterna. A escritora e pesquisadora de literatura fantástica, Ana Lúcia Merege, em seu blog A Estante Mágica de Ana, descreveu da seguinte forma o trapaceiro:

“Trata-se de um espertalhão que, tendo conseguido enganar o Diabo, não foi por este admitido no Inferno quando morreu, mas que também não tinha merecimento suficiente para entrar no Paraíso. Assim, ele é obrigado a vagar entre os dois mundos, iluminando seu caminho com uma brasa. Para que ela não se apague, Jack a carrega dentro de um nabo. Sim, isso mesmo: um nabo, não uma abóbora. A abóbora foi uma adaptação feita por aqueles irlandeses que, durante a Fome da Batata (por volta de 1840), migraram para a América do Norte, ali introduzindo o Halloween… que ganhou contornos locais, entre os quais a substituição do nabo pela abóbora nativa”. 

Jack with a Lantern, portanto, é um fantasma flamejante que ora guia, ora confunde os viajantes, fazendo com que se percam, sendo facilmente associado ao fogo-fátuo, assim como o nativo Boitatá (Batatão, por corruptela). Em comum com o Saci, sua índole trapaceira e o nabo com a brasa incandescente, similar ao pito de nosso duende traquinas. Se há um personagem a compartilhar características mais próximas de Jack, este é Jan de la Foice ou Jan Delafosse, assombração de Sergipe, personificação do fogo-fátuo.

Investir o Saci, arredio a qualquer compromisso, personagem multiforme, a despeito de sua representação mais característica (um meninote negro, unípede, de gorro vermelho e sempre a pitar cachimbo), da missão de nos defender de um inimigo estrangeiro, é, por absurda, uma batalha perdida. Impor, à força da lei, uma data para substituir outra, a pretexto de combater crenças que não são as nossas, repetem a estratégia dos missionários cristãos.

Fortalecer a nossa identidade passa pelo apoio institucional, sem tutela, dos grupos tradicionais, pela inserção do estudo das manifestações da cultura popular nas escolas, sem reducionismos ou estereótipos, entendendo as movências e permanências do fenômeno folclórico.

Estante Quindim

Conheça livros infantis para falar sobre bruxas e sobre o folclore brasileiro:

As bruxas, de Roald Dahl
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