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Coluna: Crianças pequenas podem ser racistas?

NOVO PADRAO Capas Revista Quindim 8

Outro dia me perguntaram se as crianças pequenas poderiam ser racistas. O questionamento veio de uma aluna cuja filha estava sendo vítima de racismo na educação infantil. Diante dos relatos da menina, que ouvia, constantemente, de outros alunos que tinha cor de cocô, ela estava relutante em acreditar que crianças de quatro, cinco anos de idade poderiam ser racistas. “Como isso é possível?”, ela me perguntava.

Claro que o urgente aí foi acolher a dor dessa mãe. Costumo dizer que todo racismo causa dor, mas o racismo que nossas crianças sofrem adiciona outra camada: a angústia de ter que ensinar à elas estratégias para sobreviver em uma sociedade racista, em um tempo em que esperávamos não testemunhar o racismo se repetindo, após todas as lutas e conquistas. Muitos sentimentos ficam implicados aí, e o desalento é um deles.

Mas como quem pratica a maternagem não tem tempo para desalentos, depois de acolher, vem o apoio às medidas de proteção racial desta criança e da escola como um todo. Numa crescente de ações, começando com o diálogo com a escola, depois a cobrança de ações antirracistas que a instituição precisa implementar e, caso não haja resposta, a busca de ajuda em outras instâncias.

No entanto, a pergunta que essa mãe me trouxe proporciona uma reflexão que merece ser compartilhada aqui. E, antes de respondermos se uma criança pode ser racista, precisamos pensar sobre o conceito de criança.

O que é uma criança, afinal?

O conceito de criança no Ocidente passa por muitas transformações na história, mas quase todas as definições tendem a uma idealização. Ou seja, a sociedade vê a criança como deseja (ou como necessita) que ela seja, e não como é. E isso vem de longe…

Por exemplo, Santo Agostinho pregou que a criança era um ser impuro e resultado direto do pecado máximo, e por isso “agente do mal” (daí a necessidade do batizado). Tal perspectiva, reproduzida e fortalecida por outras vozes importantes à época, torna a criança um incômodo social, moral e financeiro. Nesta toada, os níveis de abandono, fragilidade e mortalidade infantil chegam a padrões insustentáveis, seja do ponto de vista humano, seja do ponto de vista financeiro (custo para o Estado).

Inicia-se assim toda uma campanha de saúde para que as pessoas assumam os cuidados e a educação de seus filhos, pois o Estado e a igreja já não conseguem dar conta das necessidades das crianças abandonadas à própria sorte. Como parte da estratégia, foi preciso ensinar a sociedade a amar as crianças. Para tanto, seria preciso mudar a imagem delas. Deixar de serem vistas como pequenos demônios que só representavam gastos, doenças e preocupações (má sorte) e passar a entender toda a alegria, satisfação, realização que a presença da criança traz (boa sorte). Assim, a partir dos séculos XVII, a criança começa a ser vista como uma criatura frágil que precisa de cuidados da família, da mãe principalmente.

Depois de décadas e muito investimento na mudança da mentalidade (por meio das artes, da religião, da imprensa e de leis), o conceito de criança mudou e chegamos a essa imagem de pureza, um ser quase angelical, que não faz parte da dinâmica da realidade, que deve ser protegido de situações e temas mundanos. Ou seja, um ser não social. Como se tivesse uma data, um cronograma para sua entrada na sociedade, hoje em dia esse prazo seria em torno de dez ou onze anos – quando a criança vai para o Ensino Fundamental II, digamos.

Mas não é bem assim. De fato, a criança interage com seu meio de modo cognitivo, social e afetivo desde o berço (ou antes até), portanto um entorno racista, misógino, xenofóbico, homofóbico, capacitista, gordofóbico, já está informando e moldando essa criança desde sempre.

A partir deste ponto, podemos pensar que uma criança pequena não é racista, mas tem uma fala racista porque está em um meio racista. Daí a urgência da conscientização e do letramento racial dos jovens e adultos. Pois se a família, a escola e a mídia formam racistas, também podem formar o antirracista.

Veja também: Escola antirracista não é marketing: ações para a transformação efetiva

Como a literatura pode ajudar na construção do pensamento antirracista

Um dos atores mais importantes da engrenagem sociocultural que foi acionada para transformar o conceito de criança, até chegar ao que temos hoje, foi a literatura infantil. Não é por acaso que este fenômeno – de purificar a imagem da criança – é contemporâneo ao surgimento da literatura voltada para crianças, com as primeiras publicações dos contos de fadas em livro de Hans Christian Andersen e Irmãos Grimm.

É claro que esse processo histórico é bem mais complicado que isso e outros agentes – a escola, a medicina, a legislação, a indústria cultural como um todo – estão implicados na mudança do conceito de criança e infância, mas vou aqui enfocar a literatura, porque há uma interface com a educação, que me parece muito importante para nossa reflexão inicial: a literatura para crianças é espaço para o antirracismo.

A literatura para crianças como a conhecemos hoje, a qual chamamos de literatura infantil moderna, tem três principais características:

Após um século desse gênero entre nós, esses aspectos foram aprofundados e temos hoje uma literatura infantil com forte presença de temas não-convencionais (luto, guerras, diversidade de gênero, étnica e racial, entre outras); ainda mais comprometida com o ponto de vista infantil; e que explora com criatividade e inovação a linguagem visual do livro, incluindo sua materialidade.

Um marco importante desta trajetória foi a implementação da Lei 10.639 (que completou 20 anos, em 2023), a qual tornou obrigatório o ensino de cultura e história africanas na educação básica. Esta medida resultou no crescimento no número de livros infantis dedicados aos afrotemas. Se no primeiro momento tivemos maior atenção ao tema racial, no segundo momento tivemos o crescimento no número de autoras e autores, ilustradoras e ilustradores negros publicados.

Veja também: Protagonismo preto na literatura: entenda a importância de apresentar livros com diversidade para as crianças desde cedo

a IMPORTÂNCIA DO PROTAGONISMO E A REPRESENTATIVIDADE

Não temos dúvidas de que a escrita, a publicação e a mediação de uma literatura infantil negra contribuem com a educação antirracista, pois garantem representatividade, desconstroem estereótipos e preconceitos, além de estabelecerem ampla diversidade étnica e racial desde o início da formação das crianças.

Mas quero chamar atenção dos mediadores (familiares e professores) para o fato de a questão racial não estar presente apenas em livros sobre negros e/ou escrito por negros. Raça não é sobre ser negro, sobre negritude apenas. Ser branco também é uma questão racial. Ou seja, a questão racial está presente em todos os livros. Quer você perceba ou não. O melhor é estar consciente disto.

Para ficar mais evidente vou dar dois exemplos. Os dois livros que irei abordar são recomendados para crianças pequenas e, aparentemente, nada têm a ver com a questão racial, mas em ambos ela está presente. No primeiro há o racismo sublinear, e no segundo, o antirracismo sublinear.

Vamos começar por É o lobo pop-up, da Ciranda Cultural, primeira edição de 2012. Um livro típico da infância contemporânea, ele traz a história de um porquinho que está caçando um lobo mau. Em suas buscas pelo sítio onde mora, o porquinho cor-de-rosa aventura-se investigando esconderijos.

A criança leitora é convidada a experimentar com ele um pouco desta jornada, colocando a mãozinha nos lugares onde o lobo mau pode estar. Há regiões ásperas, gosmentas, macias, e a criança vai se divertindo com o porquinho, mas ao mesmo tempo temendo que o lobo mau esteja escondido ali e que morda sua mão. Quando o leitor vira a última folha, surge um pop-up de página dupla com a cabeça enorme de um lobo, com seus dentes famintos e olhar aterrador. Qual a cor do lobo mau? Cinza escuro, quase preto, preto.

Por que o lobo mau não pode ser branco? Por que esta insistente associação do mal com a cor preta: ovelha negra da família, caixa preta, lista negra ou a coisa vai ficar preta (para se referir a uma situação difícil)? Em especial essa associação de um ser mau e violento com a cor preta ecoa muito na visão que a sociedade brasileira tem do homem negro que, vítima de genocídio, é visto como ameaçador e criminalizado.

Alguns podem dizer que é exagero meu, que ninguém fez um livro desse para perpetuar o racismo. Ao que eu respondo, pode não ter consciência do racismo aí presente, mas este é o efeito social e imaginário gerado. Portanto, é preciso letramento e consciência racial na produção, na curadoria e na mediação dos livros.

O segundo livro é o Aqui e Aqui, de Caio Zero. Nesta obra recém-publicada pela editora Mostarda, acompanhamos um menino em uma aventura de investigação. Ele quer saber por que ele dorme em uma casa e acorda em outra. O leitor o acompanha no teste de várias hipóteses: portal de teletransporte, ser sonâmbulo e alienígenas.

Enquanto procura, ele apronta muito pela casa, irritando a mãe, a qual aparece pouco, discretamente; na maior parte do tempo ele está sozinho. O único irmão é adolescente e só dorme. O leitor percebe, por meio da ilustração, que a casa do menino fica em um bairro de classe baixa, mas as casas são aconchegantes e ele tem tudo o que precisa para viver, carinho, alimentação, livros, cachorro, plantas, etc. Mas ele não sabe por que dorme em uma casa e acorda na outra.

Direto do Instagram: Princípios da escola quilombola e a educação antirracista

Até que ele resolve ficar acordado a noite toda e ver o que de fato acontece. Com os olhinhos semicerrados, ele testemunha o esforço de sua mãe em não acordá-lo, enquanto o leva para a casa da vizinha amiga para poder ir trabalhar.

Nem uma palavra sobre “questão racial”, mas todas as personagens são negras, o que por si só já é importante para a representatividade da pessoa/criança negra. No entanto, parece, que o mais disruptivo é a quebra de paradigmas com relação a pessoa/criança negra. O menino de Caio Zero é meigo, inteligente, curioso, fofissímo e está sempre em primeiro plano, com proporções que dão a impressão do tamanho real de uma criança de 4 anos de idade.

Ao contrário do modo clássico de como a criança negra é retratada, constantemente diminuta ou com corpo animalizado. O menino de Caio Zero tem um black power macio e sedoso que fica bem perto do leitor, que em algumas cenas sente vontade de estar com ele no colo desta mãe.

A imagem que o autor-ilustrador nos dá da maternagem compartilhada com a comunidade, que abraça e aconchega para lidar com as adversidades que a vida traz, é o abraço que sempre quero dar nas mães que têm (ainda) de enfrentar o racismo contra seus filhos.

E sim, muitas vezes o racismo vem no contexto escolar por meio de uma outra criança. Mas penso que ninguém nasce racista, mas torna-se um mediante o convívio com racistas e em uma sociedade racista. Portanto, cabe aos adultos formarem crianças antirracistas e a literatura infantil tem papel importante nessa ação. Sejamos conscientes disto.

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