Marco Haurélio, poeta popular, professor, folclorista e editor, escreve para o nosso clube de assinatura infantil sobre a história da literatura de cordel e sobre o cordel infantil. Confira!
A literatura de cordel despontou no Brasil no século XIX, nas gráficas rudimentares do Rio de Janeiro, pela voz do poeta potiguar João Sant’Ana de Maria, o Santaninha, rabequeiro e historiador popular, circulando entre o Ceará e a corte (Rio de Janeiro) ou fazendo escala no Recife, com muitos folhetos na bagagem, boa parte deles lançada pela Livraria Quaresma.
O romanceiro tradicional, do qual também deriva o cordel, com ligações anímicas com a Península Ibérica, trazia históricas trágicas de amor, em redondilha maior, e episódios da gesta de Carlos Magno, desde o início da colonização. E, em 1865, no Recife, dá-se a publicação de um folheto em quadras de autor anônimo, O testamento do macaco, chamando a atenção, pelo tom moralizante e ao mesmo tempo bem-humorado:
Tendo feito a diferentes
Animais seu testamento
Justo é que o do macaco
Empreenda neste momento.
Este folheto é parecido com outro, português, igualmente em quadras, O testamento do gallo, publicado em Lisboa quatro anos antes:
Já que estou em meu juízo
Testamento quero fazer
Para meus bens deixar
A quem melhor me parecer.
O fator Leandro na literatura de cordel brasileira
Essas edições pioneiras são importantes para entendermos o percurso e os percalços da literatura de cordel brasileira. Mas, apesar de seu alcance, a temática, ainda muito limitada, e com circulação restrita quase que exclusivamente ao meio urbano, o Cordel ainda esperava uma voz mais abrangente, que ecoasse a vasta tradição oral nordestina, com a gesta do gado, o drama do cangaço e a contística popular, arraigada no imaginário indo-europeu.
E esse desabrochar veio por meio de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), poeta paraibano que, deslocando-se para Pernambuco, até estabelecer-se no Recife, com gráfica própria e grande faro empreendedor burilou e deu novo colorido aos temas preferidos pelo povo. Mas se restringiu a isso.
Dele são alguns dos maiores sucessos da literatura de cordel de todos os tempos, como os exemplos de cordel de romance dramático O cachorro dos mortos, A força do amor, Os sofrimentos de Alzira e A vida de Pedro Cem. E os folhetos cômicos O cavalo que defecava dinheiro e O dinheiro (O testamento do cachorro), que, reaproveitados por Ariano Suassuna, inspiraram a peça Auto da Compadecida. O outro folheto que inspirou o Auto é O castigo da soberba, atribuído a outro poeta pioneiro, o também paraibano Silvino Pirauá de Lima (1848-1913).
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O começo do cordel infantil no Brasil
Leandro ainda deu vida a um conto popular, a História de Juvenal e o Dragão, que, recontado em versos, encanta gerações em mais de um século de reedições ininterruptas. O seu enredo, com o mais arquetípico conto de herói, é a maior razão deste sucesso, e Juvenal e o Dragão pode ser considerado um dos primeiros cordéis infantis do Brasil. Não que, no tempo de Leandro, houvesse essa distinção, mas a razão de ser um dos preferidos dos pequenos leitores ao longo dos anos, ao lado de outro grande clássico, o Romance do Pavão Misterioso, de José Camelo de Melo Resende, escrito na década de 1920, aponta um possível pioneirismo nesse campo.
Outra coluna do cordel, o também paraibano João Martins de Athayde (1880-1959), que se tornaria o grande editor do gênero no Brasil, autor de Raquel e a fera encantada, uma versão do conto A Bela e a Fera, e de História da princesa Eliza, que recria o conto Os cisnes selvagens, de Hans Christian Andersen. A bem da verdade, Athayde serviu-se de uma adaptação feita por Figueiredo Pimentel, Os onze irmãos da princesa, que integra a obra Contos da carochinha, publicada, pela primeira vez, em 1894. Athayde ainda versou A bela adormecida no bosque, romance no qual aparece apenas a primeira parte do conto divulgado por Charles Perrault.
Nesse meio tempo, na década de 1930, uma voz feminina emergia no mundo do cordel: era Maria das Neves Batista Pimentel (1913-1994), que, infelizmente, não assinava os próprios trabalhos, e, sob um heterônimo masculino, Altino Alagoano (nome de seu marido), assinou algumas adaptações de obras clássicas, incluindo uma versão de O corcunda de Notre-Dame, de Victor Hugo. Era filha de Francisco das Chagas Batistas (1882-1930), poeta, livreiro e editor, grande amigo de Leandro.
O poeta Manoel D’Almeida Filho (1914-1995) tentou, na década de 1980, publicar um livro de cordel infantil, que conteria duas histórias: A guerra dos passarinhos e O casamento do bode com a raposa, sem sucesso. Há que se destacar ainda a iniciativa do poeta Marcus Aciolly que lançou, em 1980, pela Edições Brasil-América, Guriatã, um cordel para menino, ilustrado com linoleogravuras do mestre pernambucano José Cavalcante Soares, o Dila, não mais em folheto, mas no formato livro.
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A tradição da literatura de cordel atualizada
Um novo momento na história do cordel é instaurado a partir do emblemático evento 100 Anos do Cordel, idealizado pelo premiado escritor e jornalista alagoano Audálio Dantas (1929-2017), e realizado no SESC Pompeia, em 2001. A iniciativa foi imprescindível para que o mercado editorial olhasse “com outros olhos” a literatura de cordel. Mesmo assim, os investimentos iniciais foram tímidos e, aqui e ali, surgia uma publicação ainda carente de uma identificação maior com os temas clássicos do cordel.
A grande mudança veio em 2007, com a criação da coleção Clássicos em Cordel, idealizada por Nelson dos Reis, fundador da editora Nova Alexandria. Sem reivindicar o pioneirismo na adaptação de obras clássicas para a poesia popular, o projeto inovou ao enquadrar a mesma ideia em um projeto de coleção que abrangesse obras de diversos autores adaptadas livremente por poetas cordelistas. Já em seu primeiro ano, a editora emplacou três títulos no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) — Os miseráveis, de Klévisson Viana, O corcunda de Notre-Dame, de João Gomes de Sá, e A megera domada, de Marco Haurélio.
A Nova Alexandria, em seu selo Volta e Meia, publicou uma adaptação em quadrinhos, assinada por Klévisson Viana e Eduardo Azevedo, do grande épico do cordel A batalha de Oliveiros com Ferrabrás, de Leandro Gomes de Barros. E, ilustrada pelo mesmo Eduardo, reeditou o clássico Juvenal e o Dragão, mantendo a integridade do texto original, e o romance O guarda-florestas e o capitão de ladrões, do poeta contemporâneo Rouxinol do Rinaré. Outro destaque do catálogo é O fantástico mundo do cordel, da escritora cearense Arlene Holanda, que traz um belo conto, de cores afetivas, e, no apêndice, apresenta as regras básicas para a composição de um folheto de cordel.
Vale citar, ainda, a parceria do cordelista Arievaldo Viana com o ilustrador Jô Oliveira, que rendeu títulos como O navegador João de Calais e sua amada Constança (FTD) e A peleja de Chapeuzinho Vermelho com o Lobo Mau (Globo). E destacar o protagonismo da editora MEPH, de Fortaleza, cujo catálogo é o mais amplo em se tratando de literatura de cordel infantil e juvenil, ressaltando, ainda, o papel assumido por nomes como o saudoso Manoel Monteiro (1937-2014), além de Braulio Tavares, Gonçalo Ferreira, Paiva Neves, Janduhy Dantas, Marcelo Soares, Manoel Cavalcante, Antonio Barreto, Mariane Bigio, Silvinha França, Evaristo Geraldo, Paola Torres, Antônio Francisco, Josenir Lacerda, Erica Montenegro, Julie Oliveira e outros descortinadores de horizontes da literatura de cordel brasileira.
Para saber mais:
Breve história da literatura de cordel, de Marco Haurélio (Claridade, 2010).
Cordel: criar, rimar e letrar, de Arlene Holanda e Rouxinol do Rinaré (IMEPH, 2009).
O Cordel no cotidiano escolar, de Ana Cristina Marinho e Hélder Pinheiro (Cortez, 2012).
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