Acho bom termos um dia para celebrar a memória e a força de Zumbi e Dandara dos Palmares e de todos e todas que lutaram nos primeiros quilombos. Estreio esta coluna na Revista Quindim saudando essa ancestralidade que nos inspira e nos trouxe até aqui.
Mas novembro se tornou o mês da paciência negra para nós pretos e pardos brasileiros. Em nosso cotidiano, 365 dias por ano, 24 horas por dia (sim, até em nossos sonhos/pesadelos), o Brasil racista está presente. E, na hora da agressão, você sempre está sozinho, sozinha. Sorte de quem tem seus quilombos para buscar apoio e justiça, caso contrário terá que se recuperar só. Mas quando chega novembro… todo mundo quer falar sobre o tema. No dia 1º de dezembro, o tema muda e entram em cena as festividades natalinas eurocêntricas. Daqui 12 meses o tema racial volta…
Esse comportamento me preocupa, ainda mais quando está presente nas escolas. Especialmente depois da Lei 10.639, que estabelece o estudo da cultura e da arte africana e indígena, as escolas (salvo exceções) passaram a ver novembro como o mês de “dar conta desta demanda legislativa” e, assim, ficar em dia com suas “obrigações”.
Proponho alguns reparos em tal atitude com o objetivo de colaborar com a efetiva educação antirracista.
A construção de uma escola antirracista precisa de apoio
A primeira ação é pensar sobre o que comentei acima, colocar esse aspecto para discussão dos pares, reavaliar suas ações e repensar esse ciclo de “datas comemorativas”. É muito importante levar a questão para todos os atores, todos os envolvidos, pois a transformação deve ser da comunidade. Claro que cada um tem seu tempo, mas o movimento, o desejo de construir uma escola antirracista deve ser de muitos – na impossibilidade de ser de todos, sabemos disso.
Vejo casos nos quais tal proposta acaba ficando quase restrita aos professores e alunos negros (pretos e pardos). O que acontece? Exaustão, porque têm que fazer tudo sozinhos, o que gera sobrecarga de trabalho. Frustação, porque ficam falando para a bolha, que já está consciente da situação, e sentem que a pauta não avança, não se amplia. Esvaziamento, pois com o tempo o grupo perde força. Esse grupo é, e tem que ser mesmo, o núcleo irradiador deste movimento. Mas a comissão antirracista precisa de apoio, de recursos humanos e financeiros.
Pense na sua comunidade escolar. Na escola onde você trabalha ou na qual sua criança estuda. Lá tem uma comissão antirracista? Ela congrega funcionários, gestores, professores, alunos e famílias? Quais ações ela está operando? De que modo você pode ajudar? A instituição está de fato apoiando a comissão?
Dê uma olhada nisso. Informe-se. Escute, aprenda com o grupo que está atuando para a escola antirracista tornar-se uma realidade. Compartilhe seus conhecimentos e recursos (sejam eles quais forem). Não tem uma comissão antirracista na sua comunidade escolar? Novembro pode ser uma boa oportunidade para fundar essa comissão, fazer um planejamento anual, por exemplo. De modo que este mês não seja palco de apenas um evento, mas, sim, o início de um conjunto de ações. Frisando que não precisa esperar novembro de 2024 para iniciar essa agenda. O momento é agora, a necessidade é sempre, não importa o mês.
Explorar as temáticas durante o ano todo e de forma transdisciplinar
A segunda ação que sugiro é abordar a afrociência, a afroarte e a afrofilosofia o ano inteiro e de modo transversal, transdisciplinar. A Lei 10.639 tem 20 anos, então já está na hora das escolas antirracistas (gestores, professores, coordenadores, diretores, funcionários, crianças, jovens e famílias) irem além dela. Por exemplo, explorar o tema “África” em sua amplitude e complexidade. África não é una, uniforme, cada região, país, nação, povo, tem suas especificidades, saberes, idiomas e histórias. Matemática, geografia, história, línguas, literatura, filosofia, química, física, artes visuais e do corpo, entre tantas abordagens, podem se beneficiar da produção milenar e contemporânea do conhecimento africano.
Pense de modo reverso… Se, digamos, o mês de abril fosse dedicado à cultura europeia e só nesse mês os filósofos, pensadores, matemáticos, escritores, lideranças europeias fossem citados e lembrados. E nos outros meses nem uma palavra sobre cientistas e artistas europeus. Estranho, não é? Então, o mais indicado é que a escola inclua referências bibliográficas afrocentradas em todas as suas disciplinas e materiais didáticos. E não estou falando daquele 10% para salvar a fama de escola inclusiva. Estou falando de equidade bibliográfica. É por aí que barramos o epistemicídio negro, como bem nos ensina Sueli Carneiro.
Mas vamos pensar essa proposta, dentro da perspectiva da literatura. O comum, nas escolas é ler escritoras negras e negros em novembro. Enclausurando a literatura de ancestralidade negra numa perspectiva temática. Tal atitude é limitante e limitadora. A literatura negra deve ser lida em todos os contextos.
Por exemplo, se é uma aula sobre contos, leve a obra de Cidinha da Silva, Ruth Guimarães, Allan da Rosa, Lia Vieira, Nei Lopes, Lima Barreto… Está fazendo uma curadoria de literatura para crianças? Inclua Edimilson de Almeida Pereira, Sonia Rosa, Geni Guimarães, Caio Zero, Heloisa Pires Lima, Aza Njeri, Otávio Júnior… Está estudando romance histórico? Joel Rufino dos Santos, Júlio Emílio Braz, Ana Maria Gonçalves, Eliana Alves Cruz … Poesia? Carolina Maria de Jesus, Cuti, Ricardo Aleixo, Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Miriam Alves, Jarid Arraes… Mas se o interesse for pela literatura do século XIX, leia Machado de Assis, Lima Barreto, Gonçalves Crespo, Maria Firmina…
Todas essas autoras e autores, além de tantos outros (não gosto de fazer lista, porque sempre ficam nomes importantes de fora), devem ser lidos pelo trabalho extraordinário que fazem com linguagem literária construindo imagens que deslumbram e marcam nossas memórias de leitura, de vida, nos emocionando enquanto ensinam.
Outro desdobramento importante desta ação na construção de uma escola antirracista é o livro didático. Autores, cientistas, pensadores negros também podem e devem estar presentes no material didático enquanto citações, exemplos, enunciado de questões, entre outras possibilidades. Foi uma conquista do movimento negro brasileiro a presença de imagens de pessoas negras nos livros didáticos. Mas, dentro da proposta de uma educação antirracista, precisamos ler, estudar e aprender com a bibliografia afrocentrada.
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Oferecer repertório para todos os profissionais
O que nos leva para a terceira ação necessária: repertorizar professores, coordenadores, gestores, editores sobre o conhecimento afrocentrado. Pois se os profissionais responsáveis – por produzir e aplicar o material didático, os livros de apoio, os livros de literatura, as curadorias dos materiais envolvidos, os planejamentos de ensino, os currículos etc. – não tiverem repertórios afrocentrados e racializados fica quase impossível que as demais ações aconteçam de modo adequado.
Em última análise, estou falando de investimento institucional, comunitário e individual em leituras, reflexões e diálogos com bibliografias e intelectuais afrocentrados. E não é um curso de 10 horas que vai resolver a questão. É necessário aperfeiçoamento e atualização contínua. A educação antirracista é uma construção coletiva e constante, e mesmo sendo um projeto de longo prazo, se bem planejada, apresenta resultados imediatos. E sabe qual é o resultado imediato? Ver que ela está sendo construída de modo efetivo e não como peça de marketing.
Na próxima coluna trarei outras ações possíveis para a construção da escola antirracista, entre elas a urgência em se enegrecer o RH. Ou seja, contratar professores, coordenadores e diretores negros e negras. Mas isso é assunto para dezembro.