Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), situações extremas, como casos de calamidade pública e desastres naturais, podem gerar o chamado estresse tóxico, fazendo com que o sistema nervoso permaneça ativado por mais tempo. Esse estado prolongado de tensão tem consequências imediatas para todos, adultos e crianças, é claro, mas quando vivenciado nos primeiros anos de vida, pode repercutir ao longo do desenvolvimento infantil.
A recente tragédia que assolou o Rio Grande do Sul, com as chuvas torrenciais e o alagamento de grandes áreas, é um triste exemplo desse tipo de situação. Entre o ímpeto de ajudar das maneiras possíveis, com doações e serviço voluntário, à sempre bem-vinda demonstração de compaixão, é inevitável pensar como as pessoas atingidas vão lidar não apenas com as perdas materiais, que são tantas, mas também com os traumas que situações como essa podem gerar. Mais do que isso, como os efeitos psicológicos podem reverberar nas crianças, que ainda não têm as ferramentas necessárias para lidar com o que estão vivenciando e sentindo.
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Como falar sobre assuntos traumáticos com as crianças diretamente envolvidas?
Primeiro, é preciso entender que elas estão vivenciando a tragédia e, portanto, sabem – ainda que em alguma medida – o que está acontecendo. Além disso, crianças são ótimas para observar o comportamento de seus pais ou cuidadores. Sabendo disso, tentar esconder o que se passa ao redor não se mostra o melhor caminho, como destaca a psicóloga infantojuvenil Larissa da Silva Gomes.
“É natural que, diante de situações de guerras ou catástrofes, os pais se questionem se essas informações precisam ser fornecidas à criança, pois eles querem protegê-la. Contudo, evitar o acesso a elas pode trazer prejuízos maiores do que falar sobre o assunto”, orienta. Segundo a profissional, é importante conversar de forma clara sobre os sentimentos e pensamentos presentes, mas levando em consideração alguns fatores importantes, como a idade da criança, seu nível de entendimento sobre o que está acontecendo e seu perfil de comportamento.
“O entendimento, a assimilação e a reação emocional e comportamental de uma criança diante de diferentes eventos estressores variam de acordo com a idade e com as características individuais de cada uma”, explica. Enquanto as menores podem passar a apresentar apego excessivo a familiares e a retomar antigos comportamentos (chupar o dedo, fazer xixi na cama, ter medo do escuro), crianças maiores já manifestam sentimentos como tristeza, irritabilidade e raiva, além de sintomas fisiológicos, como dores de estômago e de cabeça. Ainda assim, cada indivíduo tem seu próprio perfil e, por isso, oferecer um espaço emocionalmente seguro é essencial para que a criança comece a se abrir.
“É importante para que pais e cuidadores possam, primeiramente, perguntar e entender como ela interpreta o que aconteceu e quais são as emoções presentes naquele momento. Mas proporcionar esse espaço de liberdade para a expressão da criança não significa que ela vai querer externalizar seus sentimentos naquele momento”, explica a psicóloga, reforçando que é preciso respeitar o tempo de cada uma, colocando-se à disposição para responder às perguntas e acolher as emoções quando elas forem manifestadas.
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Acolher e validar os sentimentos
“Não se sinta assim”, “não precisa chorar”, “pare de ter medo”. Frases como essas até são ditas com a boa intenção de acalmar a criança, mas elas podem acabar invalidando os sentimentos dela e provocando uma sensação de inadequação. O mesmo vale no sentido contrário: censurar o pequeno por não lamentar determinada situação também pode ser prejudicial.
“Quando invalidamos o estado emocional da criança dizendo para ela parar de chorar ou podando sua forma de expressar felicidade, por exemplo, estamos comunicando que ela não pode se sentir de determinada maneira, que é errado. Isso prejudica o desenvolvimento infantil, impactando as relações familiares e sociais, a saúde mental, física e emocional, a autoestima e o autocontrole”, alerta Larissa. A longo prazo, os efeitos podem permanecer e até desencadear transtornos psicológicos e distúrbios de comportamento.
Por isso, a psicóloga lembra que é importante ajudar a criança a nomear as emoções e dizer a ela, de forma clara, que entende o que está sentindo, perguntando o que pode fazer para ajudar. “Alguns recursos também podem ser apresentados, como técnicas de respiração, [mexer com] massinha, garrafa da calma, entre outros”, orienta.
Além disso, colocar-se à disposição para falar sobre o evento estressor e as reações que ele causa também é primordial. “Esteja disponível para explicar, discutir e responder aos questionamentos sobre os acontecimentos algumas vezes. Fale sobre as diferenças e individualidades de cada um, que é natural as pessoas terem reações e emoções distintas diante de uma mesma situação, e exponha como você, adulto, lida com o momento de conflito, estresse ou catástrofe”, aconselha Larissa. Se não souber responder a alguma pergunta da criança, a profissional acrescenta que não há problema em dizer que não sabe a resposta, mas que vai buscar a informação.
A seguir, a psicóloga infantil elenca algumas estratégias para uma comunicação efetiva e assertiva com os pequenos:
- Tome a iniciativa e pergunte o que elas escutaram e viram, buscando saber o que pensam, sentem e entendem sobre a situação. Por exemplo: “você sabe o que é uma enchente e sabe como ela acontece? Você já ouviu falar sobre isso em algum lugar? Como você se sente?”
- Tenha como foco os sentimentos e emoções das crianças, buscando entender o que é preocupante, confuso e importante para ela, evitando julgamentos e apresentando estratégias de como lidar com todas as mudanças.
- Tranquilize e acalme as crianças, sem minimizar e reduzir os seus sentimentos e medos gerados pela situação, mas falando sobre fatores positivos, de enfrentamento e de proteção, ressaltando seus familiares, amigos e redes de apoio.
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Exponha suas fragilidades, mas dê a segurança de que a criança precisa
Nunca é demais lembrar que os pequenos aprendem muito pela observação e pela imitação, o que faz dos adultos com os quais eles convivem uma referência, um modelo. “Dessa forma, quando falamos de aspectos emocionais com as crianças, precisamos estar sempre abertos para compartilhar também como estamos nos sentindo e como lidamos com a situação”, esclarece Larissa, que questiona: “como iremos ensinar a criança a lidar com um conflito emocional se nós mesmos não nos autorizamos a vivenciá-lo?”.
Diferentemente do que se pensa, diz a profissional, ao expor sua fragilidade, o adulto não está transmitindo fraqueza ou incapacidade, mas está se colocando em um lugar de igualdade – eu também sofro com isso e entendo como você se sente. “Assim, contribuímos para a construção de um terreno firme de autoconhecimento e autoestima na infância”, ressalta.
Ao mesmo tempo, demonstrar desespero o tempo todo pode transmitir a sensação de insegurança aos filhos, motivo pelo qual é importante tentar manter a calma e reforçar que, a despeito de toda a situação, você estará ao lado da criança dando todo o amor de que ela precisa.
Recorra a algumas estratégias
Para o pós-tragédia, enquanto ainda se vivencia os problemas imediatos dela – como no caso de famílias em abrigos ou em casas de parentes e amigos – algumas estratégias podem ajudar com as crianças. Tentar estabelecer uma rotina (dentro das possibilidades, é claro) pode ajudar a diminuir o sentimento de incerteza e de falta de controle. Assim, algumas atividades, brincadeiras, leituras, momentos de conversa e afazeres básicos ajudam a balizar o dia a dia.
“É importante estabelecer momentos em grupos, tanto de adultos quanto de crianças, como forma de apoio coletivo, de cooperação, buscando juntos estratégias e alternativas de uma rotina estabelecida com os recursos disponíveis naquele momento”, diz Larissa.
Como já foi abordado, falar sobre a situação estressora é importante, mas esse não deve ser o único assunto e nem a única atividade. Segundo a psicóloga, também é interessante redirecionar o foco do pequeno para interesses e atividades adequadas à sua fase de desenvolvimento. Brincadeiras, passatempos e atividades em grupo se mostram mais que bem-vindos nesse processo, afinal, a ludicidade é parte importante da infância e não deixa de ter seu lugar mesmo em momentos desafiadores. “Isso contribui para o processo de enfrentamento”, ressalta a profissional.
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Busque apoio profissional quando for possível
Enfrentar eventos traumáticos é sempre difícil, mas ter as ferramentas adequadas para lidar com os sentimentos ajuda no processo. Por isso, se for possível, é essencial buscar assistência psicológica profissional – tanto para as crianças quanto para os adultos. “É natural que os pais sintam dificuldade em saber quando uma criança ou quando eles mesmos precisam de acompanhamento profissional, principalmente quando já se passou um tempo após o evento estressor”, destaca Larissa.
Sobretudo em situações de tragédia, nas quais não são feitos rituais de despedida ou luto (mesmo que pelas casas e outros bens materiais perdidos), a terapia pode ter um papel fundamental. Em relação aos pequenos, a psicóloga elenca alguns pontos que precisam ser monitorados pelos cuidadores e que indicam a necessidade de acompanhamento: “observar se há alteração ou dificuldades na alimentação, sono, dificuldades escolares e no relacionamento com os familiares e colegas, comportamento agressivo ou disruptivo, medo desproporcional, retrocessos no desenvolvimento, entre outros”.
Sugestões para atravessar momentos estressores em família
Por fim, Larissa retoma e sintetiza alguns pontos de ação que podem ajudar com os pequenos em momentos de tragédia:
- Pedir para as crianças ajudarem durante a adaptação, oferecendo pequenas atividades que respeitem sua idade e suas limitações, ajudando a construir um senso de eficácia, cooperação e empatia.
- Fornecer informações claras, autênticas e diretas sobre o acontecimento, utilizando linguagem e exemplos acessíveis à fase de desenvolvimento da criança.
- Encorajar o diálogo e a livre expressão emocional da criança, ofertando uma folha ou um diário para descrever (em palavras ou desenhos) suas emoções.
- Estabelecer momentos em família com diferentes brincadeiras, leitura de livros, criar histórias juntos, entre outras atividades.
- Fortalecer a linguagem de amor com a criança por meio de abraços, carinhos, palavras de cuidado e afeto, contribuindo para a sensação de segurança.
- Proporcionar momentos com os amigos através de pequenos eventos sociais.
- Estabelecer uma rotina familiar, ajudar as crianças a estabelecerem valores e a desenvolverem uma visão positiva sobre o futuro.
Estante Quindim
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