A fim de vender as terras que recebera de herança, Estefânia viajou para Portugal. Estava grávida e voltaria com a filha em seus braços. Aurora nasceu em meio ao mar, sem a certeza de que pudesse ver a luz do próximo dia. Daí um nome escolhido com muita esperança... O pai já havia providenciado uma casa nova para a família e a menina passaria toda a vida entre o quintal e a cozinha, ajudando a mãe nas tarefas diárias, cuidar das galinhas, recolher ovos, vendê-los às dúzias, regar as couves e as dálias, descascar as batatas para o almoço e para o jantar. O pai era um homem trabalhador e reserva-se o direito de ver Péricles e Augusto homens feitos, doutores, por isso os meninos iam à escola. Aurora não.
Seria por causa de sua frágil saúde, aqueles ataques que lhe vinham, um ponto escuro no olho que ia apagando todo o mundo, a língua começando a enrolar, a sufocação que a fazia perder os sentidos? Ou era coisa das famílias da época?
Ambientada no Rio de Janeiro, na década de 1920, a novela de Nilma Lacerda nos faz enxergar costumes e tramas familiares com os olhos e a sensibilidade de Aurora. É muito certo que as crianças não podiam partilhar das conversas entre os adultos, nem demonstrar claramente seus sonhos, mas a menina percebia não existir uma regra comum em todas as casas. Sua prima Isolina ia à escola, pois os tios não tinham outros filhos com quem se preocupar... Já o primo Gastão com doze anos não ia à escola, pois precisava ajudar o pai na fábrica... Contudo, Aurora se via obrigada a viver ao pé da mãe.
Numa trama transbordante de vozes, nem mesmo a falta de afetos e perspectivas impede a história ser escrita com delicadeza. Essa ambiguidade entre o conteúdo e a forma apresenta-se igualmente nos desenhos de Rui de Oliveira, marcados pelo lápis litográfico, o grafite e o crayon. É certo que a vida de Aurora nunca teve o brilho e a suavidade das cores. São as sombras na ilustração que, no entanto, amenizam a aspereza dos traços fortes sobre o papel.