Conta o prosador mineiro Bartolomeu Campos de Queirós que seu avô possuía um olho de vidro azul-claro no lugar do olho esquerdo; via o mundo pela metade, mas a vida o velho a compreendia por inteiro. Afinal, cego é aquele que não deseja ver — porém, o avô Sebastião era um homem que enxergava através da superfície das coisas, indo penetrar na alma, na essência e na eternidade dos pensamentos... Ou era o menino que assim o via, em sua realidade tão cortada de segredos, tão pouca ternura e espantos.
Nesta narrativa de 2004, o escritor mineiro mistura casos familiares, dúvidas e novela de terror, com um pitada de mentira sobre a verdade, pois uma vida é feita de duas porções: fato acontecido e matéria imaginada.
O avô é retratado como um homem inventivo e austero, nestes fragmentos de uma memória poética. Homem vaidoso, comprara o olho de vidro em São Paulo, e passará a escolher o que amar e o que esconder. A narração, no entanto, é igualmente o retrato do menino que se vê refletido na pupila do olho vivo, porque sabe que o outro, morto, é somente uma bola fria sem movimento, sem histórias que pudessem ser contadas a todos. O avô era um homem de mistérios, falava de assombrações e ciclopes para o neto, mas não esperava que o menino visse a felicidade de algumas tardes fora de casa...
Confundindo às vezes as memórias de menino como personagem e como o autor real que foi Bartolomeu, ele mesmo costumava contar que muitas vezes, na solidão úmida da noite, via, sobre a mesa de cabeceira ou guardado atrás da porta do guarda-roupa, dentro de um pires, o olho de vidro que o avô retirava para dormir. O olho silencioso dava-lhe a segurança de que podia sentir o medo de ver um olho que nada via!