Não é um diário o caderno vermelho liso, 13x21 cm, 240 páginas em branco, pois escrever um diário é uma coisa muito chata — é o que pensa N, a menina karateca com sua mania de dizer que não é menina, é karateca. O Raul tem ombros de pedra, cabelos em caracóis como a copa de uma ameixeira, sabe bem disso e não a trata como menina: treina constantemente com ela porque é uma karateca. Na verdade, N é a segunda letra de seu nome e, assim, o leitor atento do caderno vermelho pode desconfiar que exista algo em comum entre a personagem e a escritora. Às vésperas de completar 15 anos, ela comprou um caderno com 240 patinhas onde guarda suas observações científicas e os contos surreais que inventa. O caderno também não é um caderno. Ela mesma já o viu várias vezes próximo à janela, num voo caótico como uma mosca ou abanando o marcador de página de tecido como um gato. Mais do que isso, o caderno é um caderno que lê o que ela escreve ou ele é o próprio autor?
De um modo muito bem bolado, a dor de crescimento diminui com outras preocupações. Quem é você?, a menina pergunta ao caderno e, como num jogo de espelhos, o espaço em branco parece rebater o questionamento para ela. E o que você vai ser quando crescer?
Já o livro é um espaço multidimensional do pensamento e da escritura, em palavra e imagens. A narrativa fragmentária permite à Ana Pessoa saltos e encaixes de outras histórias que N constrói, bem como uma interessante interrupção dos curtos capítulos para introduzir uma sequência de páginas com os desenhos de Bernardo Carvalho que não sabemos se (a) ilustram os últimos fatos contados e imaginados, (b) ilustram fatos futuros ou (c) narram visualmente o próprio tempo passando. É, enfim, mais importante viver do que fazer um diário — o cotidiano familiar, a escola e o shopping com as colegas, os treinos, os momentos de introvisão e de escrita de N, os passeios do caderno feito um gato preto de coleira vermelha... Este é um livro de muitos caminhos, personagens e anti-personagens, trânsito e interpretações.