Entre os muitos seres reais e imaginários, talvez o menos estranho, porém igualmente fantástico, seja mesmo o urso que vive nos canos da casa ou um prédio. Sua existência é comprovada de maneira segura. Ao abrimos a torneira de água ou do chuveiro, se ouvirmos um ronco longo e rouco é sinal que o urso dos canos está por perto... Ele vive também nos tubos de água quente, da calefação, dos velhos e mais ajeitados aparelhos de ar condicionado, viajando de vizinho em vizinho, de apartamento em apartamento. E que mal há nisso?
Nenhum, pois o urso dos canos ajuda na limpeza de toda a tubulação. Às vezes, é claro, ele apronta pequenas surpresas. Solta um grunhido mais forte na saída do gás no forno, quando ligamos o fogo, ou grita de alegria à noite! Porém, algumas pessoas não entendem, acreditam que devem reclamar com o zelador no dia seguinte.
Esse urso — que o escritor argentino Julio Cortázar nos apresenta — gosta igualmente de observar nossas manias, até sente alguma pena com as solidões e o próprio esquecimento de que a vida dentro de casa também guarda alguma graça ou magia, que existe toda sorte de sinfonia doméstica, que os cômodos nos acomodam com carinho, conforto e cuidados praticamente invisíveis. Ah, se os homens (e também as crianças) pudessem viajar pelos canos!
Com um tom carinhoso e insólito, este pequeno conto quase crônica, numa prosa com jeito de que vai virar poesia quase-triste-quase-alegre, pertence ao sexto livro de Julio Cortázar: Histórias de cronópios e de famas, escrito entre 1952 e 59, então publicado em 1962 para o leitor adulto. Destacando-se da obra original, em 2008, o “Discurso do urso” ganhou ilustrações de Emilio Urberuaga que traduz o fraterno personagem numa pelagem vermelha — espécie de metonímia visual, um urso que é todo emoção e fluxo. O cenário possui cores intensas mesclando luz e escuridão bastante palpáveis. Outros personagens se movem pelas páginas abertas, como um gato e um rato que brincam e costuram o distraído mundo humano e o segredo dos canos que rugem como um urso.