Há um medo constante: ser considerado subversivo. Mas o que isso significa? Clarice ainda não concebe a definição da palavra, mas sabe qual é a sensação do medo de ser uma pessoa subversiva. Por ser subversiva, sua mãe desaparecera.
No meio da noite, livros amarrados a pedras são jogados do alto de uma ponte em um lago. Por que afundar livros? É o que Clarice se pergunta. Fazer fumaça chamaria a atenção, respondem, e E.L.E.S logo os encontrariam. Clarice não consegue entender como alguém poderia desaparecer por causa de um livro. Um livro vermelho, diziam. Até chapeuzinho vermelho estaria proibida, pensou Clarice com humor. E.L.E.S estavam sempre atentos aos passos das pessoas. O medo percorria até os pensamentos. Vai que, sem querer, se pense em voz alta. Mesmo que o medo seja um sentimento presente, a resistência e a oposição ao que E.L.E.S representam são coisas necessárias.
Nesta narrativa, assistimos ao protagonismo infantil e o retrato da ditadura militar. O cenário é a cidade de Brasília, projetada por Lúcio Costa, com o paisagismo de Burle Marx e marcada pelo clima do cerrado. Roger Mello também cita detalhes pouco conhecidos da capital federal como a Vila Amaury, instalação residencial temporária que ficou submersa no Lago Paranoá. O escritor tem uma escrita apurada e escolhe cada detalhe com alguma razão importante; um exemplo são as referências à Clarice Lispector, não apenas no nome da personagem, mas também na epígrafe e na menção ao texto Brasiliários que ela escreveu, tendo visitado a cidade duas ou mais vezes, entre 1969 e 1970. Outro destaque é o projeto gráfico, que amplia as perspectivas da leitura e proporciona grande satisfação ao abrirmos o livro.
É evidente a importância da memória para a personagem. Em certo momento, questiona-se se as lembranças de Clarice são rasgos de sua imaginação. Porém, tudo o que lhe restou são estas reminiscências e, com leveza e sensibilidade, o leitor de hoje conseguirá se conectar com a história desta criança. Para quem não viveu estes anos pesados, o retrato ficcional mantém viva a história coletiva de uma época.