É bem possível que ao ler a primeira página deste livro você deseje encerrar a leitura. Mas, é preciso seguir. E permanecer em cada passagem vagarosamente. Primeiro, porque as ilustrações de Cárcamo pedem que o olhar se demore nos detalhes e então possa fisgar pistas do que está acontecendo. Segundo, porque o texto é um alerta ao real que por vezes se ignora, e que guarda em suas entrelinhas duas histórias possíveis.
O protagonista narra a solidão e o perigo de viver pelas ruas, sem mãe, na companhia de seus irmãos. Até o dia em que são levados embora pelos homens do furgão e passam a viver reclusos em celas, onde lhes são ofertados comida e banho de sol. Há dias mais agitados por lá, visitas chegando para tratar sobre adoção. Gente de todo jeito examinando-os, “Alguns sorriam, outros faziam aquela cara torta de quem não gostou do que viu.” Não deve ser nada fácil encarar olhares e ouvir comentários de que sua “raça” não agrada a alguém. E então surge uma moça que sorri, lhe toca, as grades se abrem, a história se encaminha para o desfecho, que surpreende e emociona. É ler e correr para um abraço bem carinhoso. Da mãe, do pai ou de quem se faz casa.
O abandono e a adoção são tratados numa via de mão dupla, palavras e aquarelas se entrelaçando para fazer arder aos olhos de quem lê uma cruel realidade de tantas infâncias e animais. Quando um livro se propõe a levar a dor do outro, que vive do lado de fora, para dentro da casa do leitor, ou de sua escola, ele está se fazendo instrumento para que não nos anestesiemos diante do que vemos corriqueiramente. É a arte buscando resgatar nossa indignação, compaixão, empatia, senso de coletividade e, principalmente, desejo por transformação.