Cidade Invisível é uma série nacional que estreou na Netflix em 2021 e a segunda temporada da série já está disponível na plataforma. O Clube Quindim convidou a autora Januária Cristina Alves, que foi consultora para a escrita do roteiro da série, para nos contar como sua obra Abecedário de Personagens do Folclore Brasileiro serviu de base para a construção dos personagens representados na série e como a produção, que foi assistida no mundo todo, é importante para a valorização e a difusão da cultura brasileira.
Januária é pesquisadora de cultura popular brasileira, com ênfase nas tradições orais do folclore brasileiro, e autora também do livro A loira do banheiro e outras assombrações do folclore brasileiro já enviado aos assinantes do Clube de Leitura Quindim. A seguir, confira o relato da autora.
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O que é visível em Cidade Invisível
Era agosto de 2018. E agosto, como sabemos, é o mês do Folclore brasileiro. Tenho certeza de que foi o Saci. Sim, ele estava por trás de tudo isso, tenho certeza.
Recebi um e-mail da Pródigo Filmes, produtora da série Cidade Invisível que estava sendo gestada na época para ser exibida na Netflix – uma das maiores plataformas de streaming do mundo – para conversar com o diretor da série, o brasileiro radicado nos Estados Unidos, Carlos Saldanha (sim, aquele de Rio e A Era do Gelo que eu havia visto tantas vezes com meus filhos pequenos). Ele e a equipe de roteiristas queriam saber mais sobre os personagens do folclore, os que estão no meu livro Abecedário de Personagens do Folclore Brasileiro, editado pela FTD Educação e Edições SESC.
O convite se confirmou pelo telefone, o que provou que, se era mais uma do Saci, tratava-se de uma traquinice com nome, endereço e telefone celular. Na hora me pus a pensar que convites como estes são, de verdade, chamados. São aqueles que a gente nunca espera, mas não recusa porque são oportunidades preciosas para a gente pular para outra parte da história e conhecer um mundo novo, que a gente não imaginava pertencer. Eu disse sim, e lá fui eu, sair das páginas dos livros para o mundo das telas, que eu só conhecia do lado de fora delas.
O Carlos Saldanha também acha que o Abecedário chegou às mãos dele por causa de mais uma peripécia do Saci-Pererê (sempre brincamos com isso!). Como um vento, quase vimos o livro pousar em suas mãos, e assim, ele mergulhou nesse universo mágico trazido pelos 141 personagens do folclore que compõem a obra. Tenho certeza de que foi por isso que sua pergunta primeira para mim foi: “Afinal de contas, esses personagens existem ou não existem?”.
Ah, ele perguntou já sabendo a resposta. Tanto, que cá estão eles habitando nossas telas, tomando conta de nossas emoções ancestrais, mobilizando nossa adrenalina, nessa série que de invisível não tem nada porque descortinou para todos nós, brasileiros, imensas possibilidades de mostrar o nosso folclore – tão rico, tão criativo, tão potente – para o resto do mundo. E de um jeito bonito, sensível, respeitoso, como esse nosso patrimônio imaterial tem que ser.
Cidade Invisível nos fez ver essas nossas histórias tão antigas quanto nós, com outros olhos, e isso é tudo o que precisávamos para recuperar a nossa identidade, tão combalida por tantas crises que assolaram esse país, especialmente nesses últimos anos.
Lançada em 5 de fevereiro de 2021 a série foi sucesso logo de cara. Segundo o site What’s on Netflix, Cidade Invisível foi o programa de TV mais popular da Netflix no Brasil, e ficou entre os 10 melhores na França, Nova Zelândia e Espanha. O Flix Patrol declarou que a série chegou ao TOP 10 de Shows de TV da Netflix de 60 países, incluindo os Estados Unidos, e permaneceu 33 dias no TOP 10 geral do Brasil. Vamos combinar que só o Saci-Pererê, a Iara, o Boto, o Curupira e o quase desconhecido Corpo Seco para conseguir uma façanha dessas! E é claro, a equipe toda envolvida nessa magia.
O ator principal da série, Marco Pigossi, que faz o Eric, um marido, pai, policial e ser humano angustiado por não conseguir admitir que acredita nesses entes que estão entre nós, ganhou o prêmio de melhor ator de séries do SEC Awards, a premiação do portal Séries em Cena, que celebra as melhores séries de TV, filmes, músicas e celebridades assistidos pelo público do portal.
A Cuca, interpretada pela bela, carismática e competente Alessandra Negrini encantou pelo recorte inédito que fez de uma bruxa que sempre habitou o nosso imaginário como um jacaré feio e grotesco. Apaixonou o público e virou meme, com todo mundo pedindo “pra Cuca vir pegar”. E o Curupira de Fábio Lago (também indicado como melhor ator no mesmo prêmio que Pigossi levou) nos fez constatar o poder e a força desse protetor de todas as matas.
O sucesso foi incontestável e cá estamos nós, ansiosos para ver a segunda temporada da série, que já está disponível nas plataformas da Netflix do mundo inteiro. Tudo muito visível, como uma história que conta sobre nós, brasileiros, seres humanos, na busca eterna de descobrir quem somos e porque estamos aqui.
Essa segunda temporada, tal como a primeira, revisita lendas bem conhecidas como as da Mula sem cabeça e Lobisomem, mas apresenta personagens menos populares como a Maria Caninana e a Matinta-Pereira, que são mais famosos na região Norte do nosso país, onde se passa a trama. E traz ainda um dos meus personagens favoritos do Folclore Brasileiro: os Zaoris.
Eles são homens que nasceram numa sexta-feira santa e que possuem olhos que podem ver, através de tudo, onde há todo tipo de riqueza material: ouro, prata, pedras preciosas, armas raras. Eles possuem “olhos de ver” o que, para mim, contém uma simbologia das mais profundas das histórias de tradição oral. De certa forma, os Zaoris simbolizam a própria série Cidade Invisível, aquela que descortina para nós, outras (e novas) maneiras de ver as nossas riquezas imateriais.
Nessa nova temporada, vemos os povos originários participando ativamente: tanto como atores, como diretores, uma vez que há a Gabriela Guarani como co-diretora, atuando junto do diretor Luís Carone, algo inédito nesse tipo de produção. E eles falam a sua língua, o Tukano, abrindo nossos ouvidos para um som que infelizmente não nos é familiar. Cidade Invisível torna visível esse fato, e tantos outros aspectos da nossa cultura popular, evidenciando o quanto nós mesmos nos escondemos atrás de outros seres mitológicos que não aqueles que se parecem conosco.
A série mostra a cara do Brasil, esse país tão profundo e abissal em sua beleza, que todos nós precisamos aprender a ver e conhecer por meio desse patrimônio que é de todos nós: o nosso folclore.
Senta aí que lá vem história. Vamos assistir a gente nas telas do mundo inteiro. Vamos nos tornar visíveis, enfim. #Somostodosfolclore