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Nise da Silveira: a médica que desafiou a crueldade da psiquiatria do século XX

Filha de Lampião

Nascida em Olinda, capital de Alagoas, em 15 de fevereiro de 1905, Nise Magalhães da Silveira era filha única de um jornalista e professor e de uma pianista. Sua casa era um centro permanente de reuniões de pessoas ligadas à cultura local. Nise recebeu uma educação fora dos padrões de sua época, e foi, desde muito cedo, incentivada por seus pais a se dedicar a atividades criativas, de cunho artístico ou acadêmico. Muito em função disso, aos 15 anos entrou para a Escola de Medicina da Bahia, localizada em Salvador. Formou-se em 1926, e a fotografia de formatura impressiona: ela é a única mulher entre 75 formandos.

Crédito: Gazeta Vargas

Nise resolve mudar-se para o Rio de Janeiro após o falecimento de seu pai e especializa-se em Neurologia. Presta concurso e passa a ser funcionária pública do Hospital da Praia Vermelha, como era conhecido o Hospital Pedro II, localizado no bairro da Urca. Ali, no ano de 1936, Nise foi vítima de uma delação. Os livros que deixara sobre sua mesa de trabalho chamaram a atenção de uma das enfermeiras, e ela foi denunciada, indiciada e presa pela polícia política do governo ditatorial de Getúlio Vargas. Seu crime foi possuir volumes sobre o regime comunista. Por esse suposto delito, Nise foi detida primeiro no Departamento de Ordem Política e Social, o DEOPS, e depois, no Presídio Lemos de Brito, na rua Frei Caneca, Rio de Janeiro. Com outros cientistas, professores e intelectuais, Nise ficou presa por 455 dias.

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos e Olga Benário Prestes também estiveram ali. Essa última, grávida de Anita Leocádia Prestes, e que foi deportada para Alemanha nazista, escoltada por oficiais da GESTAPO, vindo a dar à luz numa prisão em Berlim.

Esses 455 dias, embora tenham sido muito pouco referidos pela própria Nise, acabaram tema de duas publicações importantíssimas, de cunho biográfico: Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, e Olga, do jornalista Fernando de Morais. Graciliano fala em Nise 46 vezes no decorrer da história, registrando a serena resistência, a disposição permanente de auxiliar os demais detentos com seu conhecimento médico.

Ao ser recolhida à prisão, Nise ficou numa sala imunda, na companhia de homens detidos por latrocínio e outros crimes nada políticos, e confrontou seus carcereiros, perguntando por que estava ali, se havia espaços naquela detenção para mulheres na mesma situação obscura de terem cometido “crime de subversão”. Foi assim que Nise foi parar na Sala 4, também conhecida como Sala das Damas, onde conheceu Olga Benário Prestes, Elise Ewert, e reencontrou a amiga Maria Werneck.

A tortura física era bastante comum nos porões da ditadura Vargas, e algumas das vítimas que estiveram encarceradas na Frei Caneca foram atendidas por Nise ali mesmo, nas celas apertadas, infestadas por ratazanas, percevejos.

Elise Ewert foi duramente torturada, e nunca se recuperou daquelas sessões de horror, sendo acareada por policiais treinados pelos oficiais da GESTAPO que o regime Vargas convidou a treinar os agentes do DEOPS. Nise recorda com horror dos relatos da jovem militante, que voltava dessas sessões, que aconteciam com hora marcada, sempre no meio da noite, com marcas de queimaduras, hematomas e outros ferimentos.

Os alimentos servidos eram preparados pelos presos, mas Nise mal comia. Feijão velho, arroz com vermes, carne estragada. A manutenção e limpeza desses espaços degradantes eram providenciadas pelos próprios detentos. Nise e outras presas organizavam atividades físicas, grupos de estudo e de conversa, para manter elevada a moral do grupo, e usavam dos poucos recursos de que dispunham para tornar a vida na prisão mais humanizada. Entretanto, nada disso foi capaz de manter sua saúde e ela chegou a escrever uma carta ao diretor da prisão, solicitando ser transferida, nem que fosse para um hospital para indigentes, pois sua saúde se deteriorava cada vez mais.

De Nise, sobre esses 455 dias de prisão brutal e injusta, ficou uma frase: “na cadeia desenvolvi a mania da liberdade”.

Liberdade vigiada

No dia 21 de junho de 1937, finalmente, Nise foi libertada, pois contra ela pesava apenas a denúncia vaga de subversão, sem quaisquer provas corroboradoras. Nise não chegou a filiar-se ao Partido Comunista, no breve período em que este ganhou legalidade no país.

Sabe-se hoje que ela continuou sendo investigada pelo DEOPS por muitos anos, mesmo após a soltura por falta de provas. Abaixo, trechos do relatório sobre ela:

Psiquiatra, foi signatária do apelo das mulheres da América Latina ao dar seu apoio e colaboração à ‘Conferência Latino-Americana de Mulheres’, que se realizaria em 27 de agosto de 1954, na Capital Federal.

Médica psiquiatra que, segundo a ‘Imprensa Popular’ de 17 de abril de 1955, foi uma das signatárias da ‘Convocação do Congresso Internacional de Mães.

Médica que, segundo a ‘Imprensa Popular’ de 25 de março de 1956, foi uma das signatárias da ‘Mensagem’ lançada pela ‘Comissão Nacional Feminina pela Anistia’, conclamando a mulher brasileira a apoiar o projeto de anistia.

Não sem motivos, portanto, Nise optou por fazer uma espécie de autoexílio, saindo do Rio de Janeiro, onde era constantemente vigiada, para voltar ao Nordeste, tendo passado também um período no Norte do país, incógnita, e aproveitando o período para se dedicar ao estudo da filosofia de Spinoza.

Crédito: autores desconhecidos/arquivo Nise da Silveira

No final do período ditatorial da Era Vargas, Nise foi anistiada e pôde retomar seu trabalho no hospital, que já não mais estava funcionando na Praia Vermelha. A presença de um hospital para “alienados” como aquele num bairro cada vez mais gentrificado, como foi o caso da Urca, acabou por se tornar um problema, e em 1943 a transferência foi efetivada para o Engenho de Dentro, em Jacarepaguá, e foi lá que Nise reassumiu o cargo anterior.

A psiquiatria no século XX

Os problemas, entretanto, não paravam de se acumular, pois Nise foi exposta às novas tendências de tratamento, consideradas por seus colegas o suprassumo da modernidade. No Engenho de Dentro estavam internados cerca de 2.500 pacientes, muitos destes considerados incuráveis, pessoas internadas há tempo demais numa instituição psiquiátrica. Do exterior, vinham notícias de novos protocolos, como o eletrochoque terapêutico e a lobotomia, utilizados sobretudo em pacientes crônicos. O eletrochoque surgiu como uma forma de destruir memórias consideradas perniciosas, das quais os pacientes não eram capazes de se desvencilhar, e que potencialmente conduziriam ao delírio ou ao surto.

Para ser submetido ao eletrochoque, o paciente era imobilizado em uma maca, tinha a língua protegida por uma tira de pano ou um pedaço de madeira e era exposto por alguns segundos a um choque de voltagem alta. Além da dor, ocorre a perda da memória, comprometimento cognitivo, e o pior: não há comprovação de que esses efeitos não se tornem permanentes. A FIOCRUZ publicou artigo, em 2019, destacando os riscos e a ausência de eficácia comprovada do tratamento, mas, em 1944, tratava-se de uma condução unânime entre médicos psiquiatras.

Já a lobotomia, que foi largamente utilizada nos Estados Unidos e no Reino Unido durante as décadas de 40 e 50 do século passado, consistia numa intervenção em que o médico utilizava um objeto pontiagudo para inutilizar os lobos frontais do paciente. A terapia foi incensada não apenas por médicos e outros profissionais da saúde mental, mas foi proclamada também pela mídia como uma “cura da alma”, como sugeriu o prestigiado jornal americano The New York Times.

O procedimento foi registrado inúmeras vezes, e é fácil acessar online imagens de como era conduzido, sem quaisquer cuidados de assepsia. As imagens mostram os profissionais empunhando a ferramenta sem luvas, e na presença de grupos de estudantes de medicina, enfermeiros e curiosos sem máscara. Apenas um médico, o norte americano Walter Freeman, que ficou famoso por usar picadores de gelo para lobotomizar seus pacientes, foi responsável pela realização da lobotomia em cerca de 3.500 pacientes, incluindo 19 crianças, sendo que a mais jovem delas contava com apenas 4 anos de idade no momento da intervenção. Para que se tenha noção da projeção alcançada por esse médico, até mesmo Rosemary Kennedy, irmã de John e Robert Fitzgerald Kennedy, futuros presidente e senador da República dos Estados Unidos, foi lobotomizada por Freeman.

Veja também: A importância da saúde mental infantil: como estão seus pequenos?

Rebeldia

Crédito: Arquivo Nise da Silveira

Voltando ao trabalho no hospital, Nise deparou-se com esse quadro sinistro, e recusou-se terminantemente a tomar parte, qualquer que fosse, daquilo que considerava tortura. A médica chegou a referir-se ao procedimento da lobotomia como uma decapitação.

Ao ser instada pela primeira vez a pressionar o botão da máquina de indução de choque, Nise externou sua opinião e recusou obedecer, e foi essa atitude que a levou a ser transferida para o setor de Terapia Ocupacional do hospital, o que era considerado um castigo por seus superiores, dado o abandono do departamento. As atividades que eram desenvolvidas até a chegada de Nise resumiam-se a limpeza de latrinas, lavagem de roupas e outras tarefas de autoconsumo, ligadas à manutenção do hospital, e os pacientes envolvidos nessas tarefas eram “recompensados” com pequenas quantias em dinheiro.

A presença de Nise tudo mudou.

A revolução pelo afeto de Nise da Silveira

Neste departamento, com pessoas consideradas irrecuperáveis, desprovidas de inteligência, incapazes de quaisquer realizações, Nise construiu a revolução pelo afeto. Começou por amealhar com amigos e funcionários do hospital materiais que pudessem ser usados pela sua clientela, como passou a chamá-los: tinta, pincéis, lápis, telas, papéis, tecidos e fios, argila e ferramentas para modelagem, e criou, a partir de sua vontade e do pó da ala de Terapia Ocupacional, nada menos que 17 oficinas de criação.

Outra ferramenta utilizada por Nise no Engenho de Dentro foi oportunizar a seus clientes o contato cotidiano com os gatos que viviam no hospital. Convencida de que a cura tão buscada não poderia prescindir do aporte do afeto, Nise considerou que o contato com os mansos gatinhos que frequentavam os ateliês seria um excelente ensaio para o estabelecimento de relacionamentos afetivos complexos. Os gatos faziam parte do ambiente do hospital, e funcionavam como catalizadores de afeto, assim como os monitores, os técnicos e a própria Nise.

Os clientes que frequentavam a ala de Terapia Ocupacional passaram a ser observados cotidianamente por ela, durante o processo criativo de desenhos, pinturas, esculturas e bordados. Ela os arguia a respeito de suas produções, incentivando-os e demonstrando imenso interesse naquele discurso visual, que partia de indivíduos embrutecidos pelo encarceramento, pela inatividade e pela convivência degradada no hospital. Sua primeiríssima conclusão foi a de que, de fato, não eram pacientes, mas indivíduos cujo potencial criativo havia sido estraçalhado pela dureza do tratamento psiquiátrico, mas que ao menor estímulo mostravam-se prontos a desvelar-se. Esquizofrênicos catatônicos, pessoas que não eram capazes de elaborar um discurso verbal que elucidasse os muitos estados do ser, produziam ali um discurso visual cuja beleza chamou a atenção de artistas plásticos como Almir Mavignier, críticos de arte do peso de Mário Pedrosa e Ferreira Gullar. A leitura dessas imagens possibilitou a Nise a oportunidade de estudar o inconsciente que o hospício calava. Através dessa pesquisa, Nise teve acesso àquilo que denominava os inumeráveis estados do ser.

Veja também: A importância do tédio para a saúde e a criatividade.

Os raros pesquisadores que se debruçaram sobre a produção de desenhos, pinturas e outras manifestações artísticas de pessoas em sofrimento mental não registraram o desenvolvimento gráfico desses processos de criação. Nise realizou no Engenho de Dentro a comprovação material de que a produção artística é capaz de promover processos de cura, de autocompreensão.

Os números são impactantes. Adelina Gomes, considerada agressiva e de alta periculosidade, exposta ao tratamento na ala de terapia ocupacional, produziu 17.500 obras, entre desenhos, pinturas e modelagens. O caso dela é considerado um dos casos mais bem estudados pela Psiquiatria em todo o mundo. Adelina saiu de uma reclusão em solitária para ser uma das estrelas do departamento conduzido por Nise.

Tendo observado que alguns de seus clientes estavam produzindo imagens circulares semelhantes às mandalas das religiões orientais, Nise enviou uma carta ao Dr. Carl Gustav Jung, que pesquisava aspectos do inconsciente coletivo, e que se repetiam em muitas culturas. A carta de Nise causou perplexidade, mas sobretudo muita curiosidade sobre o método interdisciplinar que estava sendo criado no Brasil, e Nise foi convidada a participar do II Congresso de Psiquiatria, que aconteceu na Suíça em 1957, e a trazer para expor os trabalhos de seus clientes. Mais de 200 obras foram expostas nessa ocasião, e causaram grande comoção entre os participantes. Carl Jung afirmou que Nise tinha sido capaz de registrar, através das propostas das oficinas de terapia ocupacional, imagens do inconsciente de seus clientes, oportunizando a eles a possibilidade de sair da passividade de um sofrimento mental, de uma contenção hospitalar muitas vezes mantida por décadas, para a liberdade do movimento criador.

Foi para dar abrigo a milhares de trabalhos realizados no hospital que foi criado o Museu do Inconsciente. A instituição é responsável pela proteção e curadoria de exposições que são realizadas ali. Nenhum dos trabalhos dos clientes jamais foi posto a venda, e Nise afirmava a cada vez que surgia uma intenção de mercantilizar essa produção que jamais permitiria que deixassem o Museu, pois ali poderão ser sempre visitados por médicos psiquiatras, psicólogos e outros profissionais interessados em compreender como podem se expressar os múltiplos estados do ser, e como o contato com a Arte e suas linguagens pode constituir um movimento potente no sentido da cura.

Nise criou também um espaço fora do hospital para que egressos do Engenho de Dentro pudessem ter acesso a oficinas de criação, pois percebeu que muitos daqueles que recebiam alta por conta de melhoras em seu quadro clínico, em função da exposição à metodologia interdisciplinar criada por ela acabavam por ter recidivas, sendo novamente conduzidos ao hospital. A Casa das Palmeiras nasceu em 1956, para que mesmo após a alta, esses egressos pudessem continuar participando de oficinas de criação artística, vivendo com seus familiares, fora do ambiente do hospital.

Veja também: Defenda o SUS: 12 motivos para o Sistema Único de Saúde ser indispensável.

Legado: a arteterapia como possibilidade terapêutica

A leitura das imagens produzidas pelos clientes de Nise deram acesso à psiquê de pessoas que durante toda a história da psiquiatria não tiveram voz para colocar-se enquanto sujeitos de seus processos mentais. Suas falas, truncadas pela confusão e transtorno do surto e do delírio, frequentemente eram consideradas inúteis ao processo de tratamento. A possibilidade da cura, de uma retomada da vida em sociedade, era considerada uma utopia. Somente a manutenção da exclusão, nos depósitos de gente em que se transformaram os manicômios e os hospícios, era considerada a única possibilidade para eles. Nise, com sua rebeldia e com sua mania de liberdade, salvou e salva todos os dias, não só no Brasil, mas no mundo todo, pessoas que adoecem e carregam o estigma da doença mental.

Hoje, a arteterapia e a leitura das imagens produzidas em oficinas, em departamentos de terapia ocupacional, em consultórios psiquiátricos e ambulatórios para a saúde mental são uma realidade.

O nome de Nise da Silveira foi vetado pelo ex-presidente, agora inelegível, Jair Bolsonaro, para compor a lista dos heróis da pátria, publicada em livro no ano passado.

Seu legado, entretanto, segue intocado, imenso e avançando para além dos limites dos hospitais psiquiátricos em todo o mundo. A arteterapia é uma ferramenta cientificamente validada, utilizada em instituições para promover o bem-estar e a melhoria da qualidade de vida em todo o mundo, e essa possibilidade só pôde ser materializada porque essa alagoana magnífica, que não se deixou abater pela ditadura, pela misoginia, por preconceitos e ignorância, insistiu na ciência e nas possibilidades da cura através do afeto.

Estante Quindim

Conheça 2 livros para refletir sobre a loucura:

Ismália, de Alphonsus de Guimaraens e Odilon Moraes
A rainha louca! louca! louca! de Anabella López
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