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Ler em família: essas trocas formam leitores?

ler em família

Ler em família pode ser enriquecedor e extremamente gratificante, contudo, o Clube Quindim sabe que a correria do dia a dia, o cansaço e até mesmo o receio de não saber como contar alguma história podem funcionar como empecilhos na criação do hábito da leitura.

Contar histórias: uma atividade milenar

O ato de contar histórias é praticado há séculos pela humanidade. Somos envolvidos por narrativas até mesmo antes de nascer, quando familiares transmitem histórias de outros tempos, nos nomeiam, simbolizam nossas chegadas. Seguimos a jornada da vida cercados por narrações, desde aquelas transmitidas nos encontros de família ou escolares às notícias de rádio, televisão e internet.

Nos constituímos enquanto sujeitos a partir da linguagem. Necessitamos nos comunicar e, às vezes, utilizamos metáforas para reescrever a realidade, ou mesmo para responder a algo relacionado aos medos e/ou anseios sobre questões sociais, políticas e afetivas. A fantasia nos compõe, e como bem diz María Teresa Andruetto (2012, p. 54), recorremos “[…] à ficção para tentar compreender, para conhecer algo mais acerca de nossas contradições, nossas misérias e nossas grandezas, ou seja, do mais profundamente humano”.

Daí também o encantamento das crianças por ouvir histórias, incluindo as narrativas que estão nos livros literários. Mas, num tempo em que as pessoas estão sempre apressadas e comprometidas com atividades laborais, mães e pais apresentam muitas dificuldades para ler com os seus filhos. Quem, hoje em dia, consegue ler em família?

Ato de fantasiar: um obstáculo para ler em família

Tirar o relógio do pulso, desligar o smartphone, realizar uma leitura compartilhada, ler em família aproxima as pessoas, possibilita a comunhão de sentimentos. É momento de olhar nos olhos. No entanto, para muitas mães e muitos pais essa tarefa não é nada fácil, por uma série de questões, entre as quais estão a dificuldade com crianças ou até mesmo o preconceito com o ato de brincar, o fantasiar, que, culturalmente não é permitido aos adultos, como Freud aponta em O poeta e o fantasiar (1908),

A brincadeira infantil foi dirigida por desejos, na verdade por um desejo, aquele que ajuda a educar a criança: o de se tornar grande e adulta. As crianças sempre brincam de “ser grande”, imitando na brincadeira o que se tornou conhecido delas, da vida dos grandes. Elas não têm nenhum motivo para esconder esse desejo. Já o adulto é bem diferente: por um lado, sabe que se espera que ele não brinque mais ou que não fantasie mais, mas que aja no mundo real e, por outro lado, que sob suas fantasias se produzem muitos desejos que, de qualquer modo, devem permanecer necessariamente ocultos; por isso, se envergonha de suas fantasias como coisas de crianças e proibidas.

É que, para a criança, ler pode ser uma brincadeira, um mergulho em outro mundo, e ela convoca o adulto para este universo fantasioso, o que para alguns pode ser um dilema. Pai e mãe não precisam assumir os papéis de exímios contadores de história, mas, para tornar o momento mais rico, devem abraçar o encantamento que a literatura pede. É quando entra em cena a permissão subjetiva de cada um para visitar a fantasia, e cada adulto lida com isso de maneiras diversas.

Ler em família e formação leitora

Ler em família pode ser uma potente ferramenta para a formação leitora segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que aponta as mães como maiores formadoras de leitores. Além disso, para Teresa Colomer (2007), da Universidade Aberta de Barcelona, Espanha, a leitura é um aprendizado social e afetivo e ler junto é a base da formação de leitores. A partir deste princípio, ilustramos a pauta com o documentário Para cada pessoa, um livro (2018), no qual quatro famílias revelam os seus ritos de leitura, bem como os ganhos e obstáculos para cumpri-los.

No vídeo, as falas generosas das famílias abraçam a vida real ao apontar a pressa e o cansaço como os maiores impedimentos para a leitura em conjunto. No geral, em se tratando do cenário das grandes cidades brasileiras, os adultos possuem uma carga exacerbada de trabalho e reúnem muitos esforços (físicos e subjetivos) para atender as necessidades e os anseios das crianças, por exemplo, ler em família antes de dormir.

As cenas também revelam os ganhos do hábito de ler junto, como no momento em que Olívia e seu pai Levi dialogam sobre uma determinada personagem de um livro e ensaiam as muitas conversas que estão por vir a partir da curiosidade da pequena, bem como já atuam, pai e filha, no fortalecimento do laço afetivo que existe entre os dois. Frente a frente, exercitam tolerância, diálogo e cuidado, por meio do objeto livro e da leitura compartilhada.

Ler em família é aconchegante. Por vezes, é um elemento do ritual noturno de dormir, no sofá após o almoço, na varanda da vovó ou na rede preguiçosa de domingo. As pessoas se aproximam. Trocam sorrisos, olhares. Dessa forma, desde muito pequenas, as crianças ensaiam gestos de cumplicidade, confiança, até mesmo por meio de uma troca de olhares. O afeto se constrói também pelo não dito.

A propósito, quando o diálogo não é possível, por algum motivo, os livros podem ser um bom recurso às famílias. Assuntos mais delicados para crianças e jovens — como divórcio, medo, violência — podem vir à tona em belas metáforas, incrivelmente apresentadas pelos artistas das palavras e das imagens em livros ilustrados. Celso Gutfreind (2010, p. 99) nos coloca que “[…] no espaço da fantasia, podemos nos recolher sempre que a realidade estiver intolerável”. Daí, a gente necessitar de arte e não suportar o real o tempo inteiro.

A leitura compartilhada em família pode ser um rico momento de trocas afetivas. Diversos sentimentos são trabalhados entre adultos, crianças e jovens quando se destina tempo a essa experiência.

Referências

ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. São Paulo: Editora Pulo do Gato: 2012.

COLOMER, Teresa. Andar entre Livros. São Paulo. Global. 2007.

FREUD, Sigmund (1908).  Arte, literatura e os artistas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

GUTFREIND, Celso. A infância através do espelho: a criança no adulto, a literatura na psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2014.

__________. Narrar, ser mãe, ser pai. Porto Alegre: Artmed, 2010.

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