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A criança boazinha é boa para quem?

A crianca boazinha e boa para quem capa

Talvez você tenha uma criança boazinha na sua vida. Aquela que não reclama, que faz tudo o que se espera dela, de preferência em silêncio, rapidamente e sem resmungar. Talvez tenha sido você a criança boazinha.

Por trás desse rótulo, que muita gente ainda fala – e escuta – como se fosse um elogio, frequentemente estão crianças que sofrem para atender as expectativas da família, deixando de lado seus próprios desejos e necessidades. E sabe o que mais? Essas crianças podem crescer achando que precisam agradar a todo mundo para serem merecedoras de atenção, cuidado e amor.

Os perigos dos rótulos na infância

Aqui no Quindim já falamos várias vezes sobre o perigo de rotular as crianças, de compará-las com seus irmãos, primos e amigos, de minimizar seus sentimentos e muito mais. E, é claro, isso tem um bom motivo: durante a infância, as palavras ditas pelos cuidadores primários têm um peso muito grande. Não existe, ainda, repertório sobre o mundo e capacidade de ponderar se o que foi dito é verdadeiro ou não, e em que medida. Então, a criança assume aquilo que ouve como verdade absoluta e pronto.

Por isso, quando dizemos “seja boazinha e empreste seu brinquedo” ou “que feio, está chorando por bobagem”, associamos uma atitude que a criança teve com quem ela é. E um indivíduo, seja lá quem for, é muito mais do que apenas suas atitudes. Somos múltiplos, podemos ser bagunceiros e criativos em um momento, teimosos e gentis em outro.

As crianças, especialmente, ainda estão descobrindo a si mesmas, o mundo e as relações. Então, mesmo os rótulos considerados positivos pela sociedade podem trazer problemas, pois carregam em si uma série de expectativas dos adultos. São rótulos que podem levar o pequeno a acreditar que, se não for de um determinado jeito, se não agir de tal maneira, não será merecedor de amor, respeito, afeto, carinho e atenção.

O que significa ser uma criança boazinha

A criança boazinha geralmente é considerada assim de acordo com a ótica dos adultos. Ou seja, são crianças que não incomodam ninguém, que não fazem barulho, não choram e, se choram, fazem isso bem baixinho, às vezes até escondidas em um cantinho para não “perturbar o ambiente”.

Esse rótulo pode começar a surgir ainda quando são bebês (o bebê bonzinho é aquele que não chora e dorme a noite toda) e tende a se tornar mais evidente depois que o pequeno entra na escola, por conta do convívio com outras crianças. Aí, além da pressão para que a criança seja obediente e exemplar, costumam vir também as comparações com os colegas.

É claro que, como somos todos únicos, pode existir sim uma criança que seja mais calma e que não só consegue como até mesmo prefere brincar sentada, em silêncio, com bloquinhos de empilhar, enquanto outra, mais agitada, precisa correr e gritar. Mas é preciso lembrar que o movimento e a experimentação com o corpo são uma parte natural, necessária e saudável da infância, e não podemos associá-los a um mau comportamento ou, pior, má índole.

Veja também: O “mito da criança boazinha” e como ele pode engessar a infância.

Características comuns da criança boazinha

Cada indivíduo é singular e deve ser tratado como tal. Dito isso, existem alguns comportamentos tipicamente associados com as crianças boazinhas que podem servir de alerta para pais e cuidadores que querem ajudar o pequeno a quebrar esse ciclo. São eles:

Como ajudar a criança a romper com esse ciclo

Enquanto cuidadores, uma medida importante para quebrar esse ciclo é ensinar a criança a dizer “não”, e respeitá-la quando fizer isso. Não adianta querer que o “não” valha apenas na escola, no convívio com colegas e outras crianças. Deve começar a valer dentro de casa, com o núcleo familiar mais íntimo.

Aqui, entram questões como o “não” para a comida quando a criança já estiver satisfeita, o “não” para uma brincadeira que o pequeno não gostou ou para o pedido de dividir o brinquedo com outra criança na pracinha, por exemplo.

Veja também: Como e quando dizer não às crianças.

Outra questão é repensar os elogios que fazemos para que contemplem as atitudes, e não a criança em si. Por exemplo: a criança não é feia porque não catou os brinquedos depois que terminou a brincadeira. Explique que é importante recolher os brinquedos para encontrá-los no lugar quando for brincar da próxima vez, porque é importante manter a casa em ordem e por aí vai.

Exercitar a autonomia para fortalecer a autoestima da criança também é muito importante para quebrar esse ciclo. Desde pequenos, podemos criar situações e dar oportunidade para que as crianças tomem suas próprias decisões. É claro que isso deve ser feito de acordo com a idade, e sempre prezando pelo bem-estar, saúde e segurança da criança, mas é algo totalmente possível.

Veja alguns exemplos: permitir que a criança escolha a roupa que vai ao aniversário do amiguinho ou passar a tarde com a vovó; deixar que a criança decida se quer levar o lanche da escola no potinho cor de rosa ou no laranja; se prefere começar a se vestir pela camisa ou pelo short. São coisas aparentemente simples, mas que vão fazendo com que a criança sinta que a sua vontade e a sua voz têm valor, que ela é capaz de tomar decisões que serão pequenas no começo, mas que com o passar do tempo se tornarão grandes e importantes.

Como sabemos que nem sempre é fácil escolher, e pensando também no dia a dia das famílias, você pode limitar a escolha em duas ou três possibilidades, mas ainda assim permitir que a criança tome a decisão final.

Falar sobre sentimentos e emoções também ajuda

Conversar sobre sentimentos e emoções também é fundamental para quebrar o ciclo. Ajude seu pequeno a entender o que está sentindo, utilizando o nome correto para a emoção, seja ela frustração, tristeza, raiva ou o que for. Lembre-se de que não existem sentimentos ruins! Todos são válidos e experimentados por todo ser humano, então cabe a nós conhecê-los.

Veja também: Autorregulação: é possível ajudar a sua criança a se acalmar?

A literatura pode ajudar muito no processo de entender como está se sentindo e verbalizar os sentimentos, e essa é uma conquista que será ainda mais valiosa para a vida adulta. Muitas vezes, a criança boazinha cresce e se torna um adulto ansioso e inseguro, que enfrenta sérias dificuldades para colocar limites em todo tipo de situação. Por isso, incentive seu filho a falar sobre aquilo que sente, mesmo que seja algo que não agrade você.

Aliás, deixe claro para a criança que o seu amor não está condicionado a um ou outro comportamento ou emoção. A criança pode ficar com raiva e jogar o brinquedo no chão. Isso não vai fazer com que você a ame menos. Seja o adulto da relação e explique que jogar o brinquedo no chão não é legal porque ele pode quebrar, mas que isso não faz com que a criança seja menos merecedora do seu amor.

Permita que a criança seja quem ela é

É muito importante que nós, adultos, na figura de mães, pais, professores e demais cuidadores primários, tenhamos clareza do poder que nossas palavras exercem sobre as crianças. Somos figuras importantes na vida deles e, durante um bom tempo, tudo o que eles querem é receber o nosso amor. Mas as crianças não precisam – nem devem – se anular por conta disso.

Uma criança que se posiciona, que diz não, estabelece limites nas relações com outras crianças e também com adultos, não é uma criança malvada, mal-educada ou abusada. É apenas uma criança que sabe quais são os seus limites e está pedindo que os outros a respeitem. Isso, além de admirável, deveria ser um objetivo a ser alcançado por todos nós.

Pense bem e avalie se não foi você, também, uma criança boazinha. Muitas vezes, pais e mães erram mesmo querendo acertar, e pode ser que agora você esteja repetindo esse mesmo comportamento sem perceber, mesmo que isso tenha magoado você durante a sua própria infância. Se for o caso, procure ajuda e faça o que estiver ao seu alcance para que esse ciclo também seja quebrado, e para que a sua criança não precise crescer achando que precisa aceitar qualquer coisa para ser amada.

Estante Quindim

Conheça 3 obras para falar sobre autonomia infantil e sentimentos:

A bolsa amarela, de Lygia Bojunga
A Raiva, de Blandina Franco e José Carlos Lollo
Tímidos, de Simona Ciraolo
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