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100 anos de Tatiana Belinky: a irreverência e a generosidade de uma das gigantes da literatura infantil

Tatiana Belinky

Tatiana Belinky é um dos maiores patrimônios da nossa literatura infantil. Com uma vida fantástica, um trabalho para crianças que atravessou a televisão, o teatro e os livros, e um jeitinho provocador e bem-humorado, a escritora é digna de todas as homenagens. Em razão do centenário de Tatiana Belinky, que seria comemorado no dia 18 de março, reunimos depoimentos de seu editor Alberto Martins, de seu amigo e escritor Claudio Fragata e elegemos 10 razões pelas quais você precisa conhecer a obra dessa gigante da literatura infantil – e apresentá-la para as crianças com quem convive.

Tatiana Belinky, por Alberto Martins, seu editor

“Sentada na poltrona de sua casa no bairro do Pacaembu, em São Paulo, Tatiana Be­linky me contou dois episódios de sua infância em Riga, na atual Letônia, que se gravaram em mim com a força dos acontecimentos poéticos. Ela também narrou esses fatos em seu livro Transplante de menina, mas aqui vou relatá-los tal como os ouvi ou, melhor, tal como me lembro deles.

No primeiro, ela deve ter sete ou oito anos e está brincando na sala de jantar de sua casa. É primavera, mas ainda faz muito frio do lado de fora. De repente, ela espia pela janela e vê o rio Dáugava bastante turbulento. Era a época do degelo, e o degelo em Riga sempre foi um espetáculo. Depois de permanecer congelado durante quase todo o inverno, na chegada da primavera o rio começa a rugir e a rachar. De uma hora para outra grandes blocos de gelo se partem com estrondo e são carregados correnteza abaixo.

Tatiana olha pela janela e vê, bem no meio do Dáugava, uma vaca. Uma vaca sozinha tentando se equilibrar sobre uma placa de gelo que era arrastada pela força das águas. Provavelmente ela fora pega desprevenida quando tentava atravessar a superfície dura e gelada; e agora estava ali, sem saber o que fazer, descendo a correnteza violenta do rio em direção ao mar Báltico. Tatiana disse que seguiu o animal com os olhos até onde pôde — e ao longo da vida nunca se esqueceu daquela vaca amedrontada sobre um bloco de gelo, correndo perigo.

O segundo episódio é mais alegre.

Tatiana é ainda menor, deve ter cinco ou seis anos. Está no circo com seus pais, sentada numa fileira bem alta. Lá embaixo, no centro do picadeiro, um palhaço conduz um número de acrobacias sobre cavalinhos que dançam, obedecem ordens e fazem todo tipo de truque. Então ele para e anuncia que, no próximo número, vai chamar uma criança da plateia para dar três voltas em seu cavalo. Seu olhar passeia pela arquibancada e, após grande suspense, recai sobre Tatiana.

‘Quem? Eu?’

Todos os olhares se voltam para a menininha de fita no cabelo. Ela é tão pequena que, em vez de descer os degraus por conta própria, vai sendo passada no ar de mão em mão até o picadeiro.

Quando a vê de perto, o palhaço-apresentador, temendo que ela se assuste, lhe diz em voz baixa para que ninguém ouça:

‘Não tenha medo, menininha’.

Tatiana retruca de pronto, em voz alta:

‘Eu? Ter medo de bicho? Eu não! Eu adoro os animais!’.

E na mesma hora, orgulhosa e feliz, subiu no lombo do cavalinho e saiu dando voltas pelo circo.

Essas duas imagens para mim concentram o destino poético de Tatiana. Na pri­meira, enxergo a curiosidade alerta, a capacidade de se interessar e de se inquietar pelo destino dos outros: já na infância ela parece saber que o mundo é um tecido de múltiplos fios, uma trama repleta de imprevistos. O que acontece com os outros pode muito bem acontecer conosco e vice-versa. Por isso, nada no mundo é desprovido de importância, e o simples ato de estar vivo pede um comprometimento profundo com tudo o mais que vive: gente, bicho, pedra, planta, palavra, natureza, coisa.

Na segunda imagem, eu vejo a chispa, uma espécie de sabedoria muito sua, que Tatiana traz e pratica desde pequena. Assim como existe leite em pó, café solúvel e sopa de pacotinho, Tatiana tem uma receita bastante particular de saber: uma mistura instantânea de intuição e poesia. É isso que a leva a reagir sem medo e de maneira original aos desafios. É isso também que a leva a se identificar, nas histórias infantis, muito mais com as bruxinhas criativas do que com as fadas boazinhas.

Sentada na poltrona de sua casa com caneta e caderno nas mãos, Tatiana disparava rimas a torto e a direito. Como ela mesma dizia, seus versinhos pegavam carona em todo tipo de coisas: ditos populares, provérbios, clichês, banalidades, filosofias, frases fei­tas, bobagens diversas e até coisas realmente sérias… Tudo era pretexto para se aven­turar além da superfície, virar os lugares-comuns de ponta-cabeça e iluminar o mundo.

Livre e altiva como ela só, Tatiana sabia que no fundo da infância há um rio que corre sempre ao contrário. Ele é feito de leveza e irreverência. Tatiana passou a vida mergulha­da nesse rio.”

Texto originalmente publicado em Ser criança (Companhia das Letrinhas, 2013)

Tatiana Belinky, por Cláudio Fragata, seu amigo e escritor

“Eu era editor da Recreio e, certo dia, encontro o seguinte recado na secretária eletrônica: ‘Olá, Claudio. Aqui é Tatiana Belinky. Você não me conhece, mas eu conheço você porque leio seus contos e poemas publicados na revista. Eu só queria dizer que você escreve muito do meu jeito. Tchau.’ Levei um tempo para me recuperar. Primeiro, eu sabia muito bem quem era Tatiana Belinky. Segundo, eu a tinha nas alturas. Terceiro, como assimilar aquele ‘você escreve muito do meu jeito’ sem me sentir lisonjeado em demasia?

Esse recado foi o primeiro contato que tive com a extrema generosidade de Tatiana. Daí a nos tornarmos grandes amigos foi um pulo. Tínhamos mesmo muito em comum, o amor aos livros e aos gatos. E o ódio a todo autoritarismo, injustiça e preconceito. Eu a visitava com regularidade e sempre era recebido com um ‘Portinho’ (que ela adorava degustar com frutas secas), ou com poemas e limeriques quentinhos, acabados de ser feitos enquanto ela me esperava. Como esse:

 Um certo Cláudio Fragata
Não é navio nem pirata,
Mas é um aristocrata
Com ares de diplomata.

Gaiato de fino trato
Talentoso literato
Jeitoso que nem um gato —
Pra mim ele é mesmo Fragato!

Ela escreveu prefácios, pósfácios e quarta-capas para diversos livros meus, além de prestigiar todos os meus lançamentos. Era sempre a minha convidada de honra.

Quando completou 90 anos, dei a ela uma almofada em forma de gato. Tatiana adorou o presente e batizou o gato-almofada de Klau. Seu humor era rápido e ácido, não perdia a oportunidade de me fazer rir. Mas ela também era daquelas que perdia o amigo, nunca a piada. Um dia em que me demorei demais para chegar, fui recebido com o seguinte limerique:

O gatinho Klau está esperando.
O gato Fragato está chegando.
Esse Fragato,
O tal ingrato,
Que me deixa um tempão esperando!

“Essa era Tatiana.
De quem morro de saudade.
Um privilégio em minha vida.”

Conheça ainda 10 motivos para ler Tatiana Belinky

1. A vida de Tatiana é uma fantasia à parte

Imagine o que significava, para uma menina de 10 anos, nascida na Rússia, passar três semanas em um navio, fugindo das mazelas da guerra, e chegar até o Brasil? Em entrevistas, a escritora contava que essa chegada ao país havia sido uma aventura.

2. Ela deixou uma obra extensa e muito rica

Tatiana Belinky deixou mais de 120 obras, entre traduções, adaptações, memórias, poesia e prosa. Traduziu clássicos russos como Tolstói e Tchekhov, adaptou uma série de obras para a televisão e o teatro, e brindou os pequenos com versos e histórias repletos do frescor da infância. Só por seu tamanho gigantesco, precisa ser conhecida.

3. Era uma mulher dos palcos

A autora era apaixonada por teatro. Tanto que, ao lado do marido, Júlio Gouveia, adaptou peças infantis que levava para teatros de São Paulo gratuitamente. Com o sucesso da iniciativa, Tatiana é convidada a levar contos de fada e histórias fantásticas, entre outros, para as telas da TV em formato de teatro infantil. De acordo com pesquisadores da sua obra, começou com Tatiana Belinky, Júlio Gouveia e o Teatro Escola de São Paulo o teatro profissional para crianças por aqui.

4. Transportou o espírito da obra de Monteiro Lobato para a TV

O casal Tatiana Belinky e Júlio Gouveia criaram a primeira versão da série “O Sítio do Picapau Amarelo” para a TV, nos anos 50 e 60, chegando a um total de 360 episódios. Essa adaptação é considerada a mais fiel à obra de Monteiro Lobato, focada na busca pelo conhecimento e com muito respeito à inteligência da criança, características da criação do autor. Tatiana também precisava ter uma boa dose de criatividade, já que, na época, os recursos da TV eram muito mais limitados.

5. Tinha uma preocupação humanista

As obras de Tatiana Belinky para crianças e jovens propõem uma reflexão sobre a natureza humana. Também abordam temas como a justiça social, a diversidade e a importância de respeitar o outro e as diferenças. Ela procura sensibilizar o leitor fugindo do moralismo e do lugar comum, compondo obras de referência ótimas para serem apresentadas aos pequenos e suscitarem conversas.

6. Apresentou humor nonsense para crianças

Tatiana ficou famosa por trazer ao Brasil os limeriques, inspirados na forma poética inglesa “limerick”. Com humor nonsense, ela brinca com as palavras, cria personagens inusitados e destaca situações absurdas. Pode, assim, estimular os pequenos leitores a brincarem com a própria imaginação e enxergarem na literatura uma fonte de diversão.

“Ao ver uma velha coroca

fritando um filé de minhoca

o Zé Minhocão

falou pro irmão:

‘Não achas melhor ir pra toca?’”

7. Foi uma das maiores defensoras da literatura infantil

Tatiana Belinky foi pioneira na criação de arte para crianças no Brasil, sempre deixou claro o seu amor pela infância, pela literatura e pelo teatro, e fazia questão de destacar a importância da leitura em entrevistas. Veja algumas de suas falas:

“Crie uma criança no meio dos livros, ela vai se interessar.”

“A fantasia é tudo. Sempre digo aos pequenos que o livro é um objeto mágico, muito maior por dentro do que por fora. Por fora, ele tem a dimensão real, mas dentro dele cabe um castelo, uma floresta, uma cidade inteira… Um livro a gente pode levar para qualquer lugar. E com ele se leva tudo.”

“O fundamental é ler histórias, ter sempre muitos livros por perto e cantar.”

8. Ganhou vários prêmios

Prova da importância de Tatiana Belinky foram os prêmios que ela recebeu: nos anos 80, ganhou distinções como personalidade cultural e literária do ano, foi premiada algumas vezes com o Jabuti e o Prêmio Fundação Nacional do Livro Infanto e Juvenil, e foi eleita para uma cadeira na Academia Paulista de Letras.

9. Sua obra virou um álbum de canções muito divertidas

Em 2012, a cantora Fortuna e o compositor Hélio Ziskind musicaram uma série de poemas de Tatiana Belinky, dando origem ao espetáculo musical “Tic Tic Tati”. Divertidas como são os versos da autora, as canções vão conquistar as crianças.

10. Seus livros são um belo retrato da infância

Os livros de Tatiana Belinky têm uma profunda capacidade de dialogar com o espírito infantil. Guardam uma inocência e um jeito divertido de olhar para as coisas que facilmente encontram eco e identificação dentro dos pequenos. Não à toa fazem tanto sucesso até hoje e seguem conquistando gerações de leitores.


Saiba mais sobre as outras inovadoras escritoras brasileiras que estão na seleção do Clube Quindim de março.

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