Ícone do site Revista | Clube Quindim

Exposição “Karingana – Presenças Negras no Livro para as Infâncias”

Presencas Negras no Livro para as Infancias. Capa Barbara Quintino

Um ato de existência da população negra. É assim que a curadora Ananda Luz descreve a importância da exposição “Karingana – Presenças Negras no Livro para as Infâncias”, em cartaz no Sesc Bom Retiro, em São Paulo. Lá está um recorte da produção literária brasileira feita por ilustradores negros e negras. São 92 trabalhos de 47 artistas, que marcam um momento histórico na literatura, de celebração da potência de autores historicamente invisibilizados.

A exposição integra a programação de atividades do Omodé: Festival Sesc de Arte e Cultura Negra para a Molecada e poderá ser vista até 28 de janeiro de 2024.

Nesta entrevista, Ananda nos conta o que significa a palavra karingana, detalha os princípios que nortearam sua curadoria, traça o panorama histórico que possibilizou a abertura de uma exposição com artistas-ilustradores negros e fala sobre a importância de leitores negros se verem representados nas histórias, entre outros temas. Leia a seguir:

Bia Reis: Ananda, gostaria começar te perguntando o que é “karingana”, a palavra que dá nome à exposição?

Ananda Luz: Karingana é uma palavra de origem ronga, de língua moçambicana. É um diálogo entre quem conta a história e quem vai escutá-la. A pessoa que conta a história fala: karingana ua karingana. E quem recebe a história autoriza essa história a acontecer exclamando: karingana! Não é pergunta e resposta, é um diálogo mesmo para que as histórias, que são vivas, possam acontecer e fazer parte das pessoas que ali estão. Quando a gente escolhe o que seria a permissão, o karingana, é exatamente para permitir que essas histórias passem a existir nas pessoas que entrarem ali. É uma exposição sobre ilustração, mas é uma exposição das ilustrações que existem nos livros, da arte que existe nos livros.

BR: Pensando no seu trabalho de curadoria, quais foram os princípios que nortearam a escolha dos trabalhos que estão expostos?

AL: Alguns elementos conduziram a curadoria. Um primeiro é a diversidade – de autores e também de técnicas e suportes que esses artistas apresentam. São 47 ilustradores e ilustradoras negros e negras, e pensamos que eles tinham de representar uma pluralidade de percepção – modo de ver, de sentir, de perceber esse mundo e de receber as histórias, as culturas e os personagens negros do livro para a infância.

Pensamos também na questão geográfica. Quisermos trazer gente de todo o Brasil, das cinco regiões. Temos, por exemplo, o Josias Marinho, que é de Roraima e mora em Rondônia, a Paty Wolff, de Cuiabá, a Flávia Carvalho, da Bahia; no Sudeste temos alguns, como a Carol Fernandes, em Minas Gerais, o Rodrigo Andrade, em São Paulo; no Sul, a Fernanda Rodrigues.

Também tivemos como elemento pensar esse livro como corpo-território, um território de muitos encontros. O que eu quero dizer com isso é que muitas pessoas habitam o livro. Quando a gente pensa, por exemplo, no Rodrigo Andrade, que traz junto muita gente, um aquilombamento mesmo. No livro “Do Òrun ao Àiyé – A Criação do Mundo”, por exemplo, ele traz a escritora Waldete Tristão e a Aziza, editora que tem em seu catálogo ilustradores e escritores negros.

E não posso esquecer de falar da perspectiva que tivemos de apresentar o livro para as diferentes infâncias, que vai desde as crianças, que estão nessa fase vivendo esse momento, mas também as infâncias dos adultos, alguns com as lacunas de quem não teve essas representações quando pequeno. E também temos as pessoas que estarão passeando e resgatarão memórias de um tempo, poderão refletir, problematizar a literatura. A gente sabe que a literatura historicamente invisibilizava os personagens negros, ou seja, não havia personagens negros e, quando tinha, eles eram estereotipados. Viviam situações de violência, não tinham narrativas, eram jogados na história – e ainda são, ainda encontramos isso – só para dizer que havia um personagem negro, mas ele não tinha nem nome. Também queremos apresentar essas muitas bonitezas que temos nas histórias e nos personagens negros. Não é só o personagem negro como protagonista, mas ele tendo uma história para ser contada.

Ilustração de Rodrigo Andrade para o livro Com qual penteado eu vou?, escrito por Kiusam de Oliveira (Editora Melhoramentos, 2021)

br: E quanto tempo durou esse seu processo de pesquisa para a exposição? Porque imagino que uma boa parte são de livros, ilustradores e editoras que você já conhecia, mas que você também deve ter feito descobertas…

AL: Eu brinco que eu tenho uma tabela de Excel que me acompanha desde que eu descobri os livros para a infância de temática africana, afro-brasileira e de autoria negra. Todos os livros que eu leio, acesso e faço análise estão lá. Eu estou há muito tempo nesse caminho. Primeiro de forma autônoma, pesquisando como professora que fui, principalmente quando entrei na educação infantil e percebi a lacuna: não havia personagens que se parecessem com meus alunos.

Eu trabalhei em uma escola municipal no Rio de Janeiro onde quase todas as crianças eram negras, mas eu já vinha de estudo, de militância na educação antirracista. Era 2010, 2011, quando eu percebi que precisava procurar e daí comecei a mapear essa literatura e a abastecer a minha tabela. Também passei a pesquisar autores que se debruçaram a entender a literatura infantil sob o ponto de vista das ausências e das presenças de negros e negras.

O Sesc começou a sonhar com essa exposição no ano passado e também passou a se debruçar sobre o estudo dos livros para a infância de autoria negra, quem são esses ilustradores, que ilustração é essa. Nesse processo de estudar, formar equipe e ouvir alguns autores, eles me chamaram. Eu apresentei meu mapeamento, minha pesquisa e eles me convidaram para fazer parte da curadoria.

Essa minha pesquisa está sempre em movimento, então a lista cresce, mesmo depois da exposição. Hoje não consigo mapear tudo o que é lançado. Antes, eu sabia exatamente qual livro havia sido lançado. Agora não mais – e tem muita coisa boa. Isso me deixa muito feliz. E sobre as descobertas, eu moro no Recôncavo Baiano, e me surpreendeu ter encontrado um selo editorial da Bahia que não conhecia e que publicou Aline Bispo.

BR: A exposição ocorre em um momento histórico importante, com aumento de publicação de autores negros e autoras negras, que trazem histórias, personagens e estéticas diversas, e também um crescente interesse do público leitor pela temática. O que possibilitou esse cenário?

AL: É impossível citar apenas uma coisa. A gente vem de muitos anos com muitas vozes ecoando em muitos espaços, que é o movimento negro, ou melhor, os movimentos negros, no plural. Eles vêm numa perceptiva de discutir tudo o que pode ser feito para uma educação antirracista, voltada para a diversidade. E não estou falando só na educação escolar, mas sim em todos os espaços. Os movimentos negros fazem isso há muito tempo e isso se fortaleceu com pesquisa, com ação, para que se possa existir muitos ilustradores e essa exposição, em que muitos autores nos acompanharam.

Paralelo a isso, a gente não pode esquecer a Lei 10.639 (de 2003, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de História da África em todo o currículo escolar do Brasil), que impactou o mercado editorial. Esse impacto teve um lado positivo e outro negativo: muitos livros começaram a ser publicados, mas alguns são problemáticos, criados para atender editais, sem pesquisa, envolvimento nem seriedade no fazer. Eles acabam, muitas vezes, reproduzindo a estrutura racista. Com a lei, tivemos uma abertura para pesquisadores, escritores e ilustradores negros entrarem no mercado editorial e fazerem seus livros.

Ilustração de Juliana Barbosa Pereira para o livro O pequeno príncipe preto, escrito por Rodrigo França (Editora Nova Fronteira, 2020)

E não podemos deixar de falar das leis de cotas, as políticas públicas de ações afirmativas. Elas abriram para que entrasse nos espaços universitários toda a discussão dessa outra narrativa em que os negros não são mais objetos de pesquisas, mas sim sujeitos. Como dizia bell hooks (professora, escritora, teórica feminista e ativista antirracista norte-americana), é a possibilidade de investigação da própria história. Isso fez com que muitas pesquisas avançassem, muitos debates na sociedade ganhassem força e diversas narrativas fossem visibilizadas.

Veja também: Podemos falar de protagonismo negro nos livros infantis?

BR: Estudiosos da literatura têm apontado com certa frequência que o livro ilustrado é produzido da classe média para consumo/utilização da classe média. Os negros estão chegando à classe média ou estamos começando a ter uma pluralidade de vozes?

AL: Eu, como professora de educação infantil da escola pública, não consigo não pensar na importância de os livros serem produzidos (por negros) e as políticas públicas fazerem com que esses livros cheguem até as escolas. Sabemos que o preço, em média R$ 60, e na comparação com o salário mínimo, torna o livro inacessível em um país onde a fome e a violência aumentaram muito por causa dos retrocessos no último governo federal. Não temos como fugir: a compra do livro é acessível para poucos.

Mas temos, por outro lado, os espaços públicos, as bibliotecas comunitárias, municipais e estaduais. Temos de pensar na importância das políticas públicas de aquisição de livros para a escola para que eles possam chegar a todos. É importante as pessoas comprarem livros e terem suas bibliotecas em casa, mas mais importante são os espaços públicos terem livros e que eles sejam diversos. Agora, paralelo a isso tudo, a literatura de autoria negra para crianças está crescendo, está chegando em muitos espaços, diversas publicações e hoje esses livros também estão nas grandes editoras e nas independentes também, como já existia.

BR: As editoras estão atentas à diversificação de autores em seu portfólio?

AL: Estão mais atentas, porque é preciso estar. É urgente. Precisaria de uma pesquisa para dizer, com certeza, se elas estão atentas ao ponto de a produção refletir a sociedade brasileira – 56% da população é negra – mas posso dizer que provavelmente não. Mas editoras estão avançando nesse diálogo. Na exposição temos, por exemplo, Companhia das Letrinhas, Caixote, Salamandra.

Veja também: A importância do protagonismo negro na literatura infantil

BR: A Região Sudeste ainda concentra boa parte da produção literária brasileira. Isso prejudica a diversidade da literatura? De que maneira?

AL: O Sudeste concentra a maioria das editoras, mas não necessariamente dos autores. A Paty Wolff, por exemplo, nasceu em Rondônia, está em Cuiabá e é publicada pela Caixote (em São Paulo). Isso traz uma perspectiva do Sudeste para as publicações, e é onde a maioria das editoras vai estar porque São Paulo é um grande centro comercial. Mas não podemos ignorar que as editoras pequenas, como a Ereginga e a África e Africanidades, no Brasil afora fazem com que as publicações locais possam existir. Precisamos construir formas de circulação mais horizontalizada para que uma editora possa chegar tanto quanto a Companhia das Letras em diferentes espaços, possa concorrer nos editais e entrar nas escolas.  

BR: Para quais temas os ilustradores negros e negras têm sido convidados a produzir? Há ainda uma restrição de temas?

AL: Precisaria fazer uma análise para dizer com certeza, mas a exposição mostra que o ilustrador negro pode falar sobre qualquer assunto. Há uma variedade de temas abordados, mas, do ponto de vista de uma perspectiva antirracista, as editoras precisam estar atentas para ver se só estão convidando o ilustrador negro para falar sobre cabelo, África, cultura africana. Uma editora antirracista vai convidar um ilustrador negro pela técnica, pela qualidade de ilustração, para ilustrar qualquer tema que for. Ele vai imprimir sua visão de mundo e toda a história que carrega, a própria e dos ancestrais.

BR: Dentro do recorte da exposição, como você vê a técnica e a linguagem utilizada pelo grupo de ilustradores?

AL: É bem diversa. Por mais que a exposição tenha trazido as impressões é possível perceber a diversidade – só temos três originais ali –, temos a Carol Fernandes, que trabalha com acrílico, a Ani Ganzala, com aquarela, o Rodrigo Andrade que faz ilustração digital, a diversidade vai nisso tudo. E também de suporte: a Paty Wolff pinta no papelão e brinca com a textura.

Ilustração de Carol Fernandes para o livro Fevereiro (Editora Caixote, 2023)

BR: Por fim, gostaria que você falasse um pouco sobre a importância dos leitores negros se verem representados nas histórias contadas também por autores negros. E na importância de leitores brancos também terem acesso a essas histórias.

AL: Gosto de falar que a exposição é um ato de existência da população negra, que por tanto TEMPO foi invisibilizada em diferentes narrativas, inclusive no livro para a infância. A criança e o adulto negros que forem à exposição verão as múltiplas histórias contadas sobre eles, irão acessar muitos modos de representação de si. Há a percepção de que o negro é único, mas as pessoas negras são muitas, são plurais, as belezas e as histórias são diversas. Verão, principalmente, o quanto há de boniteza nessas histórias. E para as pessoas brancas é um convite para a reflexão, para conhecer essas histórias e ver, de fato, beleza nelas. Essa é uma grande discussão. Uma sociedade antirracista vai existir também quando todos passarem a ver beleza na história, na cultura negra, quando passarem a amar pessoas negras.

Sobre a Exposição “Karingana – Presenças Negras no Livro para as Infâncias”

Exposição “Karingana – Presenças Negras no Livro para as Infâncias”. Divulgação: Sesc São Paulo

Local: Sesc Bom Retiro
Endereço: Alameda Nothmann, 185 – Campos Elíseos, São Paulo – SP

Visitação: até 28 de janeiro de 2024

Horário: Terça a sexta, das 9h às 20h (exceto 21 de novembro)
Sábado, das 10h às 20h.
Domingo e feriado, das 10h às 18h

Espaço Expositivo. Grátis. Livre

Curadoria de Ananda Luz, projeto expográfico da arquiteta Francine Moura, coordenação educativa de Iliriana Rodrigues, acessibilidade de Karen Montija e design gráfico desenvolvido por Will Nunes e Rodrigo Andrade.

Agendamento de Grupos
agendamento.bomretiro@sescsp.org.br

Recursos de acessibilidade
Audiodescrição, Recursos Táteis e Libras.

Créditos: imagem de capa do artigo é uma ilustração de Bárbara Quintino para o livro Meu nome é Raquel Trindade, mas pode me chamar de Rainha Kambinda, escrito por Sonia Rosa (Editora Pequena Zahar, 2023)

Sair da versão mobile