Um dia seu filho volta da escola dizendo que tem uma namoradinha. Você acha engraçado, bonitinho até, e sem querer estimula o comportamento. Fala para ele levar flores para a “namorada” e na festa de aniversário puxa o coro do clássico “com quem será?”. Afinal, tudo não passa de uma brincadeira, não é mesmo? Nem sempre.
Essas práticas comuns, que podem parecer inofensivas, fazem parte do que chamamos de “adultização infantil” e, em último caso, expor as crianças a condutas próprias da idade adulta, especialmente quando falamos em relações amorosas, pode trazer consequências bem sérias, como a erotização precoce e o abuso infantil. Por isso, não, criança não namora.
A reprodução dos comportamentos adultos é algo normal na infância, explica a pedagoga Marcela Peconick. Através da brincadeira, elas entendem o contexto social em que vivem — brincar de família também é uma forma de entender o mundo onde ela está inserida. Nosso papel como pais, mães e responsáveis, é equilibrar e conduzir as imitações que ela faz do mundo adulto, e explicar as diferenças em relação ao mundo infantil. Professores e escolas também precisam estar atentos. Incentivar esse comportamento através de brincadeiras, colocando papéis diferentes entre meninos e meninas, não é recomendado no ambiente escolar.
“A criança usa da ludicidade, da brincadeira, para entender o contexto social onde ela vive e para elaborar algumas situações. Por exemplo, quando os pais se separaram, ela pode começar a recriar com bonecas essa situação”, afirma a pedagoga. “A criança usa desses contextos sociais para entender através da brincadeira o que está acontecendo ao seu redor. A brincadeira é uma verdade absoluta até os 9 anos”.
O afeto é, de fato, muito importante para o desenvolvimento infantil. E as crianças, em geral, demonstram o afeto de maneira bem espontânea: elas abraçam e beijam seus amigos, parentes ou entes queridos com muito mais frequência do que os adultos. Querer estar sempre com um melhor amigo ou amiga é extremamente saudável e comum. Mas quando o amiguinho é do sexo oposto, os adultos começam a incentivar uma relação que não existe no universo infantil.
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Tempo ao tempo
Em vez disso, os pais precisam direcionar a energia das crianças para o lúdico, para os esportes, para o desenvolvimento de habilidades motoras, e aguardar a maturidade completa para a entrada na puberdade. Dar tempo ao tempo é a melhor resposta.
“O namorar é natural do ser humano quando ele está pronto para isso, por volta dos 13 ou 14 anos [na puberdade]. Antes disso, estamos projetando uma relação adulta na brincadeira da criança, que não tem nenhuma conotação sexual”, diz Peconick. “Quando uma criança brinca de família com outra criança, por exemplo, é na ordem do lúdico. Por isso, é tão importante não projetar o olhar sexual do adulto principalmente nessa primeira infância, de zero a 7 anos. A criança não sexualiza essa brincadeira”.
Quem faz isso é o adulto. Por isso, quando uma criança diz que tem um namorado, e não um melhor amigo ou amiga, está simplesmente reproduzindo um conceito do mundo dos adultos, que pode ter sido aprendido em casa, na escola, ou mesmo na TV ou na internet.
E como impedir essa adultização? O que responder quando a criança diz que está namorando, ou que sente seu coração acelerado quando fica perto de um amiguinho ou amiguinha? Primeiro, é preciso reforçar que o afeto, a amizade e o amor fazem parte das relações — adultas e infantis. E querer ficar com um amiguinho mais tempo ou sentir um afeto maior por determinada criança na escola não tem problema algum. Em vez de dizer que é errado, diga: “que legal que você ama seu amigo. Vocês podem brincar juntos mais vezes”.
“Vivemos em uma cultura que ensina a criança a se dissociar do seu sentir. Dizemos o tempo todo: ‘não foi nada, não doeu, para de chorar’. Por isso, em vez de proibir, é preciso explicar a diferença entre namoro e amizade. Os pais têm que deixar claro que crianças brincam, são amigas. Já namorar é para adolescentes e adultos”, afirma a pedagoga. “É preciso aproveitar a infância, que é a etapa mais curta da vida, e mais essencial, a base do desenvolvimento do ser humano”.
Do ponto de vista psicológico, elas também precisam amadurecer antes de “brincarem” de namoro. Até porque, crianças ainda não sabem lidar bem com uma rejeição — às vezes, os adultos também não sabem. Um namoro precoce e um fim abrupto podem gerar traumas emocionais.
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Diferença entre meninos e meninas
O machismo ocupa papel central nessa história. Em idade escolar, quando começam se relacionar mais com outras crianças, os meninos começam a ser incentivados pelos adultos a terem uma namoradinha.
Mas é preciso mudar esse estigma patriarcal. Quando um menino é gentil com uma menina, por exemplo, os pais podem aproveitar para ensinar que é louvável esse comportamento a todos e reforçar que meninos e meninas podem ser amigos — não apenas namorados. Se um amigo leva uma flor para uma amiga ele não está sendo galanteador, está apenas demonstrando seu carinho e sendo afetuoso. Meninas também fazem isso, presenteiam suas amigas ou amigos, e isso não é interpretado como um flerte.
Também crescemos em uma sociedade heteronormativa, que separa a amizade por gêneros, o que não é natural na infância. Quantos adultos não dizem até hoje que “não existe amizade entre homem e mulher”? É claro que existe, e isso deve ser reforçado desde sempre pelos pais.
Os contos de fada e os desenhos infantis mais antigos também acabam estimulando essa relação: afinal, nas histórias mais tradicionais, as princesas sempre terminam com um príncipe encantado, o que acaba fazendo com que as meninas associem o sucesso ao relacionamento amoroso. Por isso, é ainda mais comum que as “brincadeiras de namoro” comecem mais cedo entre elas, e não entre eles.
Filmes mais recentes, como as animações Moana, de 2016, ou Valente, de 2012, ambas da Disney, vêm explorando menos esse estereótipo e reforçando que meninas não precisam de um príncipe ou “namorado” para ter um final feliz. Já na literatura, livros como “Pipo e Fifi”, de Caroline Arcari, ou “Meu corpo, meu corpinho”, de Rafaela Mendonça e Roseli Carvalho, vão além e ajudam a prevenir o abuso infantil.
Sexualização precoce
E em tempos de redes sociais e sexualização precoce — principalmente em aplicativos como o TikTok — uma dança ou brincadeira “inofensiva” pode ser uma porta para o abuso infantil. Pensando nisso, em 2017, o governo do Amazonas criou uma campanha para desestimular a prática no estado, que é recorde em casos de prostituição de menores.
Com o slogan “Criança não namora, nem de brincadeira”, a campanha fez viralizar a hashtag #criancanaonamora, que ganhou as redes sociais para mobilizar escolas, comunidades, psicólogos e pais contra a exploração infantil.
“Precisamos sempre educar, dialogar e orientar, principalmente no que diz respeito à educação sexual. Quando as crianças crescem sem educação sexual, acabam reprimindo sua sexualidade ou exacerbando algo que não deve ser exacerbado nessa etapa da vida. Tudo isso facilita abusos. Vivemos uma tendência em que meninas estão cada vez mais viciadas no sentimento de admiração sexual do outro, e os meninos cada vez viciados em pornografia”, afirma a pedagoga. “Tudo que acontece na primeira infância reverbera na sociedade como um todo”.