Na minha cabeça, existe uma régua, uma espécie de escala. Não sei bem em que momento da vida ela surgiu, mas aposto que foi bem cedo. Em um extremo dessa escala, está o estuprador do hospital, que se disfarçava de médico.
Com ele, há também o jogador de futebol que matou, esquartejou e deu as partes do corpo da esposa para os cachorros comerem. O eletricista que manteve sua própria filha em cárcere privado por mais de 20 anos, com abusos repetidos que resultaram em sete filhos, também está lá.
O advogado que se envolve com a colega de trabalho e “acidentalmente” vaza fotos íntimas dela para várias pessoas está presente também.
Bem como o atendente de farmácia que se esfrega na menina dentro do ônibus, enquanto ela está a caminho da escola.
O pai empresário que espera a mãe sair para abusar das crianças.
O tio comerciante que insiste em saber se a sobrinha de nove anos já menstruou e diz maliciosamente que “ela tem corpinho desenvolvido”.
O arquiteto que faz fotos e vídeos de mulheres sem que elas sequer percebam e muito menos autorizem.
O policial que agride com socos e chutes, o engenheiro que faz ameaças, o professor que controla as mensagens do celular, o motorista de aplicativo que tenta dopar.
O que assedia fazendo de conta que é elogio, o que toca no cabelo, nos ombros e nas coxas sem permissão. O que faz piadinha na consulta odontológica, o que é capaz de constranger sem sequer nos tocar.
Todos eles estão lá.
Sabe quem mais está lá? O colega que rouba o crédito pela ideia no trabalho, o marido que não respeita a vez da esposa falar, o pai que chama a filha de burra e lerda quando ela não acerta algo novo logo na primeira vez.
Se você é homem e está lendo esse texto, talvez esteja pensando “nossa, que exagero, nem todo homem faz coisas assim…”. Talvez seja verdade e nem todo homem faça coisas assim. Mas como é impossível não conviver com homens, se torna uma questão de sobrevivência para as mulheres aprender a observar, interpretar sinais e avaliar riscos.
O tempo todo, todos os dias, em todas as situações. Sem exceção.
Com isso, todas e cada uma de nós preenche uma escala própria e constrói seu repertório de alertas, de sinais vermelhos, de riscos iminentes.
Adoraríamos ter esta possibilidade, mas não somos Polianas. Sabemos que há risco potencial ao andar na rua sozinha à noite ou bem cedinho pela manhã, mas muitas vezes é só o que nos resta, pois precisamos e queremos trabalhar.
Sabemos que, se formos sair para beber e dançar com as amigas, o perigo é enorme.
Mas o que dizer do carro pedido por aplicativo, em um dia de semana, no meio da tarde, em uma grande metrópole?
O que dizer do nascimento de um filho por uma cesariana?
Não importa a roupa.
Não importa a hora.
Não importa o lugar.
Não importa a idade.
Nenhuma de nós jamais pediu para ser estuprada. Nenhuma de nós merece ser estuprada.
Os homens capazes de fazer essas coisas não são monstros. Não são doentes. Eles estão no mais pleno domínio de suas faculdades mentais, são conscientes de suas ações.
São homens que têm a mais absoluta certeza de que podem fazer e falar o que bem entenderem sem qualquer consequência. Se forem brancos, héteros e ricos, então, o sentimento de ser invencível aumenta ainda mais.
Nós, mulheres, estamos exaustas. Exaustas pelo medo, pelas notícias, porque é impossível acertar, porque nossos corpos seguem sendo tratados como se não fossem nossos. Mas nós também estamos atentas.
Entendemos que homens não acreditam na nossa palavra, então apresentamos provas.
Entendemos que homens se beneficiam da competição entre mulheres, então não vamos mais nos odiar.
Vamos nos proteger.
Vamos nos levantar diante dos abusos, das ofensas, das agressões. Não vamos nos calar. Vamos nos defender.
Nós estamos atentas. Nós estamos nos fortalecendo. Nós estamos exaustas. Nós não vamos parar.