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Masculinidade tóxica: o que está por trás da cultura que oprime meninos e meninas

masculinidade tóxica

Seja homem, deixa de ser mulherzinha, homem não chora, menino não brinca de boneca, homem é bicho solto, não consegue ser fiel. Quantas vezes você já ouviu frases como essas? Elas fazem parte da nossa cultura e informam aos meninos e aos homens como eles devem se comportar. São ligadas à ideia de que um homem “de verdade” não fala de seus sentimentos, se relaciona com muitas mulheres, tem dinheiro e um posto de trabalho poderoso, nunca mostra vulnerabilidade e é bruto. Trata-se do que hoje se diz ser uma ideia de masculinidade tóxica, que, apesar de já muito criticada, ainda se perpetua e é alimentada no ambiente da escola, da família e pela mídia.

São muitos os efeitos dessa cultura que oprimem os meninos. Recentemente, a companhia de animações Pixar lançou um curta que aborda esse tema, com o título “Purl”. A protagonista é um novelo de lã que ingressa em uma empresa e não encontra seu lugar em meio à dinâmica machista.

Curta da Pixar, “Purl”, discute a masculinidade tóxica no trabalho.

Outros resultados dessa cultura são a violência, o número que só aumenta de mulheres mortas por seus companheiros e até ataques a escolas, como o que observamos recentemente em Suzano (SP). De acordo com o professor Eric Madfis, do departamento de Trabalho Social e Justiça Criminal da Universidade de Washington Tacoma, nos Estados Unidos, os rapazes que costumam protagonizar esse tipo de massacre passam dias, semanas planejando o ato, se sentindo mais fortes e masculinos no processo.

Por outro lado, como a ideia de igualdade de gênero tem se disseminado cada vez mais, muitos homens se veem ameaçados, da mesma maneira como essa ideia tóxica de masculinidade tem enfrentado uma crise, o que também pode levar a esses ataques. Gabriel Ferreira Zacarias, professor do departamento de história da Unicamp, diz que, no momento do massacre, o garoto consegue construir uma imagem viril e bélica, mais próxima dessa autoimagem “masculina” que esse tipo de rapaz deseja construir sobre si. Mas como se estrutura essa imagem? É isso que vamos ver a seguir.

Seja um homem

Joe Ehrmann, ex-atacante de futebol americano, hoje é um dos nomes nos Estados Unidos que se dedica a refletir e discutir a construção da masculinidade, com um olhar específico para o papel dos esportes nesse processo. Em seu TED “Be a Man” (seja um homem, em português), ele pontua que, desde cedo, os meninos recebem mensagens de que devem conter suas emoções e separar o que é racional do que é emocional para que sejam “homens de verdade”.

Diz ainda que, desde o ensino fundamental, os garotos aprendem que, para serem homens, devem ser competentes nos esportes. Já entre as brincadeiras infantis e na rotina escolar, aqueles meninos que demonstram maior afinidade esportiva acabam sendo mais valorizados no grupo, reconhecidos como mais masculinos.

Posteriormente, as conquistas sexuais dos garotos, que envolvem tratar meninas como objetos a serem “usados”, são outro fator que lhes dá valor na escala da masculinidade. Na vida adulta, o campo de conquista que entra como fundamental para que um homem seja considerado realmente “um homem” é o do sucesso profissional e financeiro, da demonstração de poder.

Saúde mental dos meninos: um alerta

Dessa maneira, a forma como os garotos são apresentados a essa cultura de masculinidade, por meio da convivência escolar, familiar e através da publicidade e da mídia, muitas vezes os conduz a desenvolver uma “alexitimia” – dificuldade acentuada de descrever e verbalizar as próprias emoções e sentimentos. De acordo com a Associação Norte-Americana de Psicologia, 80% dos homens nos Estados Unidos sofrem dessa condição. Como se demonstrar sensível, chorar, revelar apego emocional e vulnerabilidades não é algo bem visto por nossa cultura machista, muitos meninos se isolam e não sabem reconhecer o que sentem.

Uma das consequências disso, como informa o ótimo documentário “The Mask You Live In”, disponível na plataforma “Netflix”, é o enorme impacto sobre a saúde mental dos meninos. Nos Estados Unidos, em comparação com as garotas, os meninos têm maior chance de serem diagnosticados com distúrbios de comportamento, de largarem a escola, de ingerirem álcool de forma excessiva e de cometerem atos de violência. Além disso, o suicídio é a terceira maior causa de morte entre garotos. Um problema sério que exige atenção e cuidado.

Trailer do documentário “The Mask You Live In”

Sexo e violência: uma equação com resultados graves

O documentário “The Mask You Live In” descortina uma série de detalhes que compõem a cultura da masculinidade. O principal aspecto dessa cultura é entender que, ao machucar meninos com toda essa pressão para que sejam “homens de verdade” e para que se comportem de determinada maneira, ela dá origem a homens que se tornam violentos e abusivos.

O campo do desenvolvimento sexual é um dos principais impactados por essa cultura. O filme informa que 93% dos garotos nos Estados Unidos são expostos a pornografia antes dos 18 anos e 21% dos jovens consomem pornografia diariamente. Sabe-se que a indústria de filmes pornográficos se torna cada vez mais violenta, estimulando uma prática sexual abusiva, que enxerga a mulher como um objeto, que não estimula o cuidado, a empatia, a aceitação de corpos diversos e a compreensão do prazer como algo complexo e muito pessoal.

Não à toa, os índices de violência contra a mulher e de estupro crescem. Por outro lado, inserir a educação sexual nas escolas é algo que se mostra um tabu, mas que é fundamental para que se possa orientar meninos e meninas a terem uma vida sexual saudável e segura.

A mídia tem um papel fundamental nessa construção. São inúmeros os filmes que trazem protagonistas homens que se realizam somente pelo poder, pela conquista de mulheres e pela prática de violência. Também são inúmeros os personagens masculinos solitários, que buscam resolver seus problemas sozinhos e que não expõem suas vulnerabilidades – basta olhar para as imagens dos super-heróis construídos nos filmes e livros, imagens completamente distantes da realidade, que se tornam modelos a serem seguidos pelos garotos das novas gerações.

São muitos aspectos, enfim, os que sustentam essa cultura da masculinidade. E é preciso combatê-los para criar meninos mais felizes, menos violentos e livres para serem quem quiserem ser: conversar e refletir sobre o tema em casa, ficar atento ao modo como nós mesmos reproduzimos essa masculinidade tóxica, e ter um cuidado especial com as histórias que oferecemos, para que elas não reproduzam apenas esse modelo mas apresentem também personagens masculinos, em que as crianças possam se identificar, que demonstrem vulnerabilidade, sensibilidade e apresentem alternativas não agressivas de lidar com os problemas.

Para fugir de tantas obras que reforçam esses clichês, o Clube Quindim reuniu 7 livros já enviados para os seus assinantes que rompem esses padrões de masculinidade tóxica e incentivam homens e meninos a elaborarem seus sentimentos. Conheça!

7 livros infantis contra a masculinidade tóxica

Autor: Eric Carle
Editora: Callis

Senhor Cavalo-marinho

Um pai cavalo-marinho que cuida dos seus filhotes e conhece outros pais que também cuidam pode parecer um tanto diferente, não? Mas não é e nem deveria ser. Este consagrado autor da literatura infantil apresenta nesta obra a importância da paternidade ativa na gestação e na criação dos filhos. Ao trazer nesta narrativa um modelo de pai ativo, sem precisar de discurso panfletário ou moral estabelecida, o autor apresenta uma alternativa diferente daquela em que o homem se realiza apenas no âmbito profissional, homenageia os pais que se dedicam a paternidade e convida os que precisam se dedicar. (E tudo pode começar com o pai lendo essa história para a criança.)

Escritora: Fernanda Lopes de Almeida Ilustrações: Alcy Linhares
Editora: Ática

Pinote, o fracote e Janjão, o fortão

Janjão era o fortão da turma, mas não imaginava que Pinote, o mais fraco, pudesse derrotá-lo. Um clássico da literatura infantil dos anos 1980, este livro critica o modelo de masculinidade tóxica que lida com as frustrações, os relacionamentos e as hierarquias de poder por meio da violência.

Escritora: Rosana Rios
Ilustrações: André Neves
Editora: DCL

O monstro monstruoso da caverna cavernosa

Outro clássico da literatura infantil brasileira, este livro de Rosana Rios já foi lido por gerações e ganhou diferentes interpretações de ilustradores. Nesta obra, a autora desconstrói clichês ao apresentar modelos de personagens alternativos àqueles estereótipos associados à masculinidade tóxica: um monstro que não gosta de comer princesas, uma princesa que não gosta de castelos e um príncipe que não gosta de lutar.

Escritora: Agnès Laroche
Ilustrações: Stéphanie Augusseau Editora: Aletria

Nícolas em o presente

Esta é uma história que apresenta um menino sensível, preocupado com o outro e capaz de expressar sentimentos de gratidão e amor. Está construída numa narrativa que deixa o leitor bem curioso. A cada virada de página, a autora coloca um elemento que incentiva o clima de suspense da história. Isso vai aumentando a tensão até o clímax e cria uma intensidade ainda maior quando o leitor chega à resolução final – e tem uma bonita surpresa, que revela essas características do personagem.

Escritores: Luiz Raul Machado e Ricardo Benevides
Ilustrações: Orlando Pedroso
Editora: Globinho

Molicha

Ser irmão ou, ainda mais, ser irmão gêmeo não significa ser igual ou parecido. Este livro desconstrói, com humor, a caixinha de padrões onde muitas vezes somos colocados, enquanto revela página a página algumas dinâmicas cotidianas tão comuns aos que vivem em família. Nesta obra, ao contarem um pouco sobre si, os personagens demonstram a personalidade e a identidade de cada um, que nem sempre é aquela que se espera para cada gênero, como o fato de o menino gostar de balé, e a menina gostar de futebol.

Escritor: André Moura
Ilustrações: Alê Abreu
Editora: Jujuba

O rei do Manacá

Esta obra traz uma história de transformação, assim como a da flor de manacá. Numa narrativa poética, os autores do livro – escritor e ilustrador – nos transportam para a simplicidade do dia a dia das crianças, de diferentes classes sociais, para mostrar que os desejos, sonhos e medos estão presentes em todos os seres humanos.

Escritora: Agnès de Lestrade
Ilustrações: Valeria Docampo
Editora: Aletria

A grande fábrica de palavraS

Esta obra trata sobre o valor das palavras, sobre a capacidade de nos expressarmos e a coragem necessária para expor nossos sentimentos, mesmo que muitas vezes não dominemos o discurso para nos expressarmos. Com delicadeza e utilizando a força da literatura, expressa como o que se diz pode ser diferente do que o que se sente, e que a palavra tem um valor capital.

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