Será que a política deve fazer parte da vivência dos alunos em sala de aula? Ricardo Azevedo, escritor e ilustrador premiado com o Jabuti e o APCA, pesquisador de folclore e um dos curadores do Clube de Leitura Quindim, reflete sobre a questão no artigo a seguir.

Falar em educação pressupõe não só levar em conta procedimentos e métodos pedagógicos, mas também políticas educacionais.
Tendemos, normalmente, a confundir as duas coisas.
Sem entrar no mérito de métodos pedagógicos, pergunto: que políticas educacionais têm sido adotadas no Brasil? Que tipo de pessoa, afinal, nosso sistema educacional pretende formar?

A questão tem razão de ser, pelo menos para alguém que como eu vem há anos criticando a maneira como a literatura tem sido, em geral e tirando as exceções de praxe, tratada na escola.

Se o objetivo de nossa política educacional é formar cidadãos humanistas, minha discussão pode fazer algum sentido. Esclareço que por humanismo refiro-me simplesmente à visão do homem como um ser eminentemente social, com consciência de que existem diferentes formas de ver a vida e o mundo, com determinadas potencialidades e limites, um ser expressivo, emotivo, criativo e efêmero, capaz de construir linguagens e símbolos e de transformar a natureza e a sociedade.

Mas, voltando, e se o objetivo de nossa política educacional for outro?

Em seu importante estudo sobre a vida moderna nos Estados Unidos, o sociólogo Christopher Lasch (A cultura do narcisismo. A vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro, Imago, 1983) recupera, páginas tantas, um pouco da história da educação norte-americana. Recorda particularmente um debate ocorrido no fim do século XIX, entre aqueles que, como John Dewey, propunham uma escola eminentemente democrática, fundada em princípios humanistas, e alguns teóricos com posições mais conservadoras.

A escola pensada por Dewey seria, em suma, acessível a todas as pessoas independentemente de classes sociais; pretendia substituir uma “hierarquia de classes” por uma “hierarquia de capacidades”; seria voltada para o desenvolvimento individual de cada pessoa; pretendia levar o indivíduo a perceber-se como alguém vinculado, comprometido e dependente de seu meio social; propunha o combate ao individualismo tradicional, ego-centrado, solipsista, estéril e ultrapassado etc.

Essas ideias, inspiradas em Dewey e outros, foram, no Brasil, defendidas num manifesto publicado em 1932 (e depois em outro manifesto de 1959) por educadores pioneiros como Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Cecília Meirelles e alguns outros ( conf. os dois manifestos em GHIRALDELLI Jr. Paulo. História da educação brasileira. São Paulo, Cortez, 2006. Tem também no google.)

Infelizmente, esses importantes intelectuais pouco ou nada foram ouvidos por nossos governantes.

Nos EUA, segundo Lasch, ocorreu o mesmo. O referido debate foi vencido pelo grupo que defendia uma educação tecnocrata e despolitizada, voltada para a valorização do conhecimento técnico, cujo objetivo era, de um lado, formar pessoas para trabalharem nas indústrias que floresciam e, de outro, dar poder aquisitivo a essas mesmas pessoas para que pudessem constituir mercados, consumir e fazer escoar os produtos industriais, fabricados em escalas cada vez maiores.

A partir daí, Christopher Lash descreve o surgimento de um “novo analfabetismo”, um analfabetismo social, resultante de uma educação voltada não para objetivos e interesses da cidadania e da sociedade como um todo mas, sim, para objetivos e interesses industriais; a valorização da formação apenas técnica; a subordinação de homens às máquinas; a inculcação de esquemas de disciplina e princípios de organização e administração inspirados nos modelos e padrões empresariais; a valorização do utilitarismo; o treinamento “vocacional” (que privilegia os cargos com demanda no mercado de trabalho do momento); a supervalorização de metodologias, estatísticas, testes objetivos de múltipla escolha, classificações do tipo QI etc. 
Em resumo, uma escola voltada a formar técnicos-acríticos, ou seja, indivíduos moldados para ocupar cargos no mercado de trabalho, mas sem capacidade e instrumentos para discutir os paradigmas da sociedade em que vivem.

Segundo Lasch, tal modelo escolar, eminentemente burocrático e técnico, “minou a capacidade da escola de servir como agente de emancipação intelectual”. 
Essa opção foi vitoriosa nos EUA e, ao que parece, disseminada por outros países, inclusive o Brasil.

Para comprovar isso, vejamos rapidamente alguns momentos das políticas educacionais brasileiras.
Gustavo Capanema, ministro da Educação de 1934-1945, período do governo de Getúlio Vargas, propôs o “dualismo educacional”. O que seria isso?

Significava organizar um sistema “bifurcado”, com o ensino secundário público destinado, nas palavras do texto da lei, “às elites condutoras” e um ensino secundário técnico e profissionalizante destinado “aos outros setores da população”.

É válido, naturalmente, pretender formar uma elite bem preparada, mas segregar antecipadamente quem vai e quem não vai estudar nas melhores escolas? Existirem, por outro lado, como estratégia política, numa mesma e única sociedade, escolas melhores destinadas a uns e escolas piores destinadas a outros?

Na época, diga-se de passagem, o colegial público, considerado muito bom, era acessível exclusivamente aos jovens das classes altas.

Temos um reflexo dessa política educacional até os dias de hoje. Basta lembrar nossas universidades públicas, frequentadas principalmente por jovens das classes médias e altas, nossas “elites condutoras”.

Outro exemplo. O regime militar que deu um golpe em 1964 importou dos EUA, através dos chamados acordos MEC/USAID (United States Agency for International Development), uma espécie de receita para construir sua política educacional. Foram doze acordos firmados entre 1964 e 1968.

Por essa época, note-se, o ministro Roberto Campos defendia a necessidade de submeter as diretrizes da escola ao mercado de trabalho.

Para Campos, a agitação estudantil brasileira – naquele tempo ela ainda existia – era devida a “vácuos de lazer” que possibilitavam “aventuras políticas”. Pregava, por essa razão, a despolitização das escolas.

Entretanto, como sabemos, isso não era bem verdade. A inquietação estudantil não podia ser considerada exclusivamente brasileira mas, sim, um fenômeno mundial.

Vale lembrar os hippies, a chamada “contra cultura’ ou o movimento estudantil de maio de 1968 na França.
Fora isso, convenhamos, a inquietação sempre foi inerente à juventude.

Queremos formar jovens, independentemente de classes sociais, inquietos, criativos e questionadores que aprendam a utilizar sua energia para seu próprio desenvolvimento e também para aprimorar a sociedade em que vivem ou, ao contrário, jovens entediados, passivos, alienados, egocêntricos e, talvez por isso, imbecilizados e violentos?

Campos defendia, ainda, que o ensino médio público, naquele momento já com conteúdos mais técnicos ou profissionalizantes, deveria atender à população “em sua maioria”, enquanto o ensino universitário deveria continuar reservado às elites.

De certa forma foi o que ocorreu e continua ocorrendo, levando-se em conta a universidade pública. 
Segundo os militares da época, em todo o caso, o sistema educacional não deveria “…despertar aspirações que não pudessem ser satisfeitas”.

Os acordos MEC/USAID, em suma, modificaram a escola do fundamental à universidade e propunham o ensino voltado à técnica e a despolitização.
Faz todo o sentido que a política de um país se preocupe em formar pessoas para ocupar os cargos do mercado de trabalho. Mas transformando cidadãos em técnicos acríticos politicamente alienados?

Vejamos o que dizia o sociólogo Octavio Ianni a respeito dessa reforma universitária: “tratava-se de dar andamento ao processo de burocratização, tecnificação e ‘despolitização’ do trabalho intelectual. O sistema de poder se propôs eliminar ou controlar o espírito critico, inerente a toda atividade intelectual: jornalística, artística, filosófica ou científica.” (…) E assim “transformar a universidade numa agência de produção de técnicos, assessores, consultores, conselheiros, executivos ou simplesmente funcionários” do sistema vigente;” ( IANNI, Octavio. Ensaios de sociologia da cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1991, p.169).

Ainda sobre a reforma universitária, segundo Paulo Ghiraldelli Jr., dela decorreu “a departamentalização, a matrícula por disciplina, o regime de créditos e a institucionalização do curso parcelado, completando uma estrutura pouco viável para um ensino universitário eficaz. (…) A consequência (…) foi a inevitável fragmentação do trabalho escolar, o isolamento dos pesquisadores e, ainda, a dispersão dos alunos pelo sistema de créditos provocando a despolitização e a impossibilidade de organização 
estudantil a partir do núcleo básico que era a turma.” (C.f. também ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil., Vozes, 2007.)

O resultado de tudo isso, esse é o ponto que pretendo ressaltar nesse artigo, foi a despolitização da escola e, em decorrência, da própria sociedade.

Confundiu-se, a meu ver, “doutrinação” com “política” e, com isso, a discussão e a reflexão política simplesmente saíram de pauta.

Ocorre que a política é um instrumento fundamental inventado pelos homens para construir o futuro. Pessoas despolitizadas ficam confusas, céticas e desesperançadas. 
Ao serem alijados e afastados do pensamento político, nossos jovens são levados a acreditar que a realidade social corresponde a algo fixo e imutável e, dessa forma, tornam-se incapazes de planejar ou mesmo de sonhar com um futuro melhor. Em outras palavras, ficam sem um canal de ligação entre eles e o futuro.

Na minha visão, isso corresponde a um gravíssimo crime social.

Num ambiente como o nosso, de individualismo sem limites, consumismo doentio, tecnocracia e despreparo e/ou corrupção das autoridades públicas, sem falar no óbvio e aviltante desequilíbrio social, o efeito da despolitização tem sido simplesmente desastroso.

Após quase trinta anos de trabalho como escritor, uma das coisas que mais me impressionam quando visito escolas e converso com estudantes que leram meus livros, assim como com seus professores, é a total ausência das questões políticas.

Trata-se de uma despolitização ampla, geral e irrestrita que, ao que tudo indica, parece ter sido fruto, pelo menos em parte, das citadas políticas educacionais.
Quero esclarecer que quando falo em discussão política não penso apenas em abordar velhos, embora importantíssimos, temas como “justiça social” mas sim:

1. discutir a tecnocracia, ou seja, a sociedade controlada pelo poder da técnica;
2. discutir o individualismo, suas características e suas implicações na vida de todos nós (como a crença de que os interesses do indivíduo estão sempre e necessariamente acima dos interesses da coletividade);
3. discutir a sociedade de consumo, suas características principais, seus objetivos e valores;
4. discutir a chamada “indústria cultural” ;
5. discutir características e limites das noções de modernidade e tradição;
6. discutir com os alunos inclusive, por que não, um pouco da história da escola, sua função social e suas políticas educacionais, ou seja, que tipo de aluno a sociedade pretende formar.

Podemos falar de uma educação que vise:

1. a integração da pessoa no sistema social vigente;
2. preparar para o trabalho produtivo, politicamente vinculado ao consumismo, dentro de uma ordem social a ser “modernizada” sem ser transformada;
3. a capacitação de mão de obra de diferentes níveis (em suma, “técnicos” e “executivos”); 
4. a formação de cidadãos ajustados ao status quo, ou seja, técnicos-acríticos prontos para constituir mercados consumidores.
5. enfim, no lugar de cidadãos humanistas formar técnicos consumidores.

Creio, francamente, que numa escola assim não faz muito sentido discutir literatura e poesia.

Podemos porém sonhar com uma educação que busque:

1. a integração do sujeito aos problemas de sua sociedade; 
2. a formação do cidadão político; 
3. a formação do cidadão que saiba pensar e se exprimir livremente; 
4. a formação de pessoas que busquem o autoconhecimento sem deixar de compreender a necessidade do respeito ao Outro;
5. a formação de pessoas com pensamento crítico capazes, não só de situar-se histórica e culturalmente, mas também de discutir a respeito dos paradigmas e valores de sua sociedade;
6. a formação de pessoas que saibam refletir tendo em vista o aperfeiçoamento social e o fortalecimento da sociedade civil;
7. em suma, uma escola que sirva como agente da emancipação intelectual do estudante.

Queria muito poder discutir literatura e poesia numa escola assim!

Creio na construção de uma sociedade brasileira melhor e mais justa mas isso só será possível quando nossos cidadãos, independentemente de idades, graus de instrução ou classe social, se derem conta de que são responsáveis pela sociedade em que vivem. 
A escola tem papel fundamental nesse processo. 
É preciso definir o que queremos. Formar alunos para manter o que aí está ou prepará-los para construir uma sociedade mais equilibrada, competente, inteligente, criativa e humana.” 
…………………….
Tudo isso para dizer o seguinte. A ideia de “escola sem partido” é correta, creio, até porque uma “escola com partido” seria algo não democrático, típico de um governo autoritário e fascista que se arvore representar o partido único.
Mas isso não significa que a escola deva ser despolitizada!
É preciso dizer o óbvio: qualquer ação que tenhamos, ou não tenhamos, sempre terá, queiramos ou não, um significado político e um peso nos rumos da sociedade.
A omissão nada mais é do que um ação política alienada.
O que precisamos é de uma educação – não “com partido” – mas com noção do da importância do que seja a Política. 
Em outras palavras, uma escola onde os estudantes sejam alfabetizados politica e socialmente, sejam levados a compreender o que é a política e sua importância, uma escola onde possam ser levantadas e discutas que políticas têm sido adotadas no Brasil. 
O que necessitamos, portanto, é uma escola com política!

  • Texto extraído do artigo “Armadilhas para a formação de leitores: didatismo, sistema cultural dominante e políticas educacionais”, publicado no livro Nos caminhos da literatura (vários autores), São Paulo, Editora Fundação Peirópolis, 2008, e também na Revista Releitura, Belo Horizonte, Junho 2008, Nº 22.
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