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José Saramago para os pequenos

Jose Saramago para os pequenos capa

Nascido no dia 16 de novembro de 1922, numa pequena aldeia chamada Azinhaga (Portugal), José Saramago é o único autor de língua portuguesa que já recebeu o Prêmio Nobel de Literatura (1998). Ele foi um escritor que abordou em suas obras a própria concepção do mundo, sua trajetória de vida, suas ideias e seus sentimentos. Em várias entrevistas e reportagens dedicadas a José Saramago se encontram comentários sobre o peso da infância em seu imaginário, assim como sua formação individual e autodidata. É possível perceber alguns traços definidores de sua personalidade: melancólico e reservado, solidário e relativista, orgulhoso e irônico. Sempre propenso à indignação, ele concebia a felicidade como harmonia e achava a bondade uma das coisas mais importantes no ser humano.

José Saramago recebendo o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, entregue por Carlos XVI  Gustavo da Suécia. Crédito: Blog do Tempo da Outra Senhora

Azinhaga: fonte da imaginação

Saramago viveu na aldeia por quase dois anos, até seus pais se mudarem para Lisboa. Mas até a juventude, o menino Zé voltava todo ano, durante as férias, ao vilarejo de nascimento, onde viviam seus avós maternos, Josefa e Jerónimo — duas referências fundamentais na vida do escritor.

Na aldeia, onde está a melhor memória, Zé colhia espigas nos milharais, furtava saborosas melancias, trepava nas figueiras mais doces que existiam no mundo, ajudava o avô a dar comida para os porcos e cultivar favas na horta. Ali, o garoto tinha contato com a natureza, corria com os primos, com lama nos pés descalços. Andava sem rumo, desde manhãzinha pelas lagoas, pescando ou remando a bordo de uma canoinha. Eis um trecho da entrevista que deu à revista Elle, de Madri, em 2007:

Há imagens que estão aí. E a imagem das coisas tem muito a ver com a pessoa que somos, com o olhar que temos, com a sensibilidade que transportamos dentro de nós. Quando me encontrei com a natureza na minha aldeia de Azinhaga, eu era um menino. Era um menino simples e pobre, nem mesmo precoce. Sensível e sério, isso sim. E um menino sério era um bicho meio esquisito. Estava cheio de melancolia, às vezes de tristeza. Gostava da solidão. Os longos percursos pelos olivais, ao luar. Essa imagem da natureza que sofreu a intervenção do cultivo do homem era minha imagem do mundo. Quando fui para Lisboa, com dois anos, passava os dias sonhando com o momento em que poderia voltar à aldeia, que era onde eu descobria as coisas pequenas. Trepar numa árvore pela primeira vez! Creio que a sensação foi idêntica à do senhor Hillary quando chegou ao Everest e ficou ali, no teto do mundo. Eu me agarrei com força ao tronco, com medo porque a árvore se mexia, mas o mundo era aquele e não outra coisa.

“En el corazón de Saramago”, Elle, Madri, n. 246, março de 2007 [Entrevista a Gema Veiga].

Algo muito curioso na história desse autor é que o sobrenome “Saramago” não foi escolhido por seu pai. Por conta e risco, o empregado do registro civil o adicionou ao sobrenome Sousa e o menino se tornou José de Sousa Saramago. Somente sete anos depois do nascimento, o pai do garoto descobriu o engano, quando teve que apresentar a certidão de nascimento para matriculá-lo na escola primária. “O mais grave, é que ele não gostava nem um pouco dessa alcunha”, disse José Saramago ao jornal O Estado de São Paulo, em 1996, quando contou a anedota. 

O leitor autodidata

Uma coisa que muitos não sabem é que José Saramago se tornou um escritor de sucesso a partir de 1980, com 58 anos. Isso se explica por uma vida de trabalho determinada pela origem humilde e formação autodidata. Quando terminou a educação básica, Saramago fez apenas dois anos de liceu (correspondente ao nosso Ensino Médio), pois a família não podia sustentá-lo até o final do curso. Depois disso, ele esteve numa escola industrial, onde se formou em serralheria mecânica. Aos dezessete, foi trabalhar numa oficina de automóveis durante dois anos: desmontava e consertava motores, regulava válvulas, condicionava etc. O mais estranho nesse curso industrial — segundo o próprio Saramago — é que havia uma disciplina de literatura: nesse momento, o mundo se abriu para o escritor.

Era um leitor apaixonado. Não havia livros na casa da família, por isso, costumava ler em bibliotecas públicas, principalmente de noite. Ainda com dezesseis anos, leu uma tradução de O paraíso perdido, de John Milton. Não havia organização em suas leituras, mas, com o tempo, Saramago conseguiu obter uma espécie de visão coerente da literatura, sobretudo da literatura francesa, da qual foi tradutor.

Começar a ler foi para mim como entrar num bosque pela primeira vez e dar de repente com todas as árvores, todas as flores, todos os pássaros. Quando fazes isso, o que te deslumbra é o conjunto. Não dizes: gosto mais desta árvore que das outras. Não, cada livro em que eu entrava, eu considerava algo único.

“José Saramago: ‘Escribir es un trabajo: El escritor no es un ser extraordinario que está esperando a las hadas’”, El País (Suplemento El País Semanal), Madri, 29 de novembro de 1998 [Entrevista a Sol Alameda].

O escritor

Depois da experiência como mecânico, José Saramago trabalhou em meios burocráticos. Em 1959, assumiu o posto de editor literário na Editorial Estúdio Cor, onde ficou por doze anos, dedicando-se exclusivamente à literatura. Nesse período, publicou dois livros de poemas: Os poemas possíveis (1966) e Provavelmente Alegria (1970). Entre 1972 e 1975, o escritor passou pelos jornais A Capital e Jornal de Fundão. A mudança em sua carreira começa a acontecer em 1975, quando foi nomeado diretor-adjunto do Diário de Notícias. Nesse mesmo ano, foi demitido e decidiu mudar o curso de sua vida, tornando-se somente escritor de literatura. Sua única fonte de renda fixa eram as traduções.

A partir dos 55 anos, a produção literária de José Saramago cresceu muito em relação ao que ele havia escrito até então. Mas foi em 1980, com a publicação do romance Levantado do chão, que Saramago deu a maior guinada de sua vida literária. A crítica especializada afirma que esse livro deu início ao estilo saramaguiano — longos parágrafos, pontuação não convencional na construção de diálogos, ao eliminar os travessões, dando maior dinâmica ao texto.

José Saramago, anos 70 Crédito: Arquivo Fundação José Saramago – FJS/Direitos Reservados

Foram mais de vinte romances ao longo de sua carreira, sendo Ensaio sobre a cegueira (1994) um dos mais lidos entre os leitores contemporâneos. Mas, para o público infantil, o material mais abundante está nas crônicas — fonte de todo o projeto ficcional de José Saramago e resultado dos “exercícios de imaginação” que ele publicou nos jornais A Capital e Jornal de Fundão entre 1969 e 1973. Esses textos foram reunidos nos livros Deste mundo e do outro (1971) e A bagagem do viajante (1973).

Quando andava a escrever as crônicas que depois reuni no volume A bagagem do viajante e também naquele a que dei o título de Deste mundo e do outro, não me passava pela cabeça que um dia eu viria a escrever romances. É certo, porém, que estes não serão inteiramente compreendidos sem a leitura das crônicas. Por outras palavras: nas crônicas encontra-se o embrião de quase tudo o que depois cresceu e prosperou… Vejo agora que, de uma maneira não consciente, já estava a apontar a mim mesmo o sentido do que iria ser o meu trabalho a partir do final dos anos 70.

“A semente da ficção nas crônicas de Saramago”, O Globo, Rio Janeiro, 28 de setembro de 1996 [Entrevista a Madalena Vaz Pinto].

Leitura para os pequenos

Antes de indicar as dez obras selecionadas para o público infantil — e também para o juvenil —, é preciso saber que José Saramago estava atento ao olhar genuíno da criança, valorizado no livro As pequenas memórias (2006), no qual seu objetivo era “reconstituir” o menino que foi.

Essencialmente, ao meu ver, todas as adolescências se parecem. Só as infâncias são únicas. De qualquer maneira, o meu livro pode ser entendido como o pagamento de uma dívida. Eu creio que tudo o que sou o devo àquele menino. Foi ele o meu arquiteto.

“Le piccole memorie”, La Repubblica, Roma, 23 de junho de 2007 [Entrevista a Leonetta Bentivoglio].

Curiosamente, José Saramago não tinha uma relação próxima com as crianças, mas detestava a hiperproteção a que muitas eram expostas, pois considerava que, sozinhas, muitas vezes elas conseguiam chegar mais longe do que quando excessivamente conduzidas por adultos que as não deixavam em paz. O que Saramago admirava na infância e na primeira juventude era a curiosidade, o impulso para fazer perguntas, sem a pretensão de querer saber tudo, porque o mundo, “todo ele, é uma interrogação” — como ele escreveu.

A seguir, o clube de assinatura Quindim selecionou quatro contos saramaguianos já publicados para crianças, três crônicas com grande potencial para esse público, e que ainda não foram exploradas por nenhuma editora, e três contos que certamente agradarão aos adolescentes que curtem mistério e ficção científica. O principal objetivo, além da formação do leitor “atento às coisas do mundo” — como queria Saramago —, é apresentar a eles um dos mais importantes escritores da língua portuguesa.

10 obras de José Saramago para crianças pequenas e grandes

1 – A maior flor do mundo

Publicado pela primeira vez em 2001, é o único conto em que José Saramago se dirige explicitamente às crianças. É a história de um menino que sai de sua pequena aldeia para fazer algo maior do que o seu tamanho. A principal mensagem do livro diz respeito à generosidade e solidariedade — projetos maiores que uma pessoa. Aqui no Brasil, o livro foi publicado pela Companhia das Letras, com ilustração de João Caetano.

As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples, porque as crianças, sendo pequenas, sabem poucas palavras e não gostam de usá-las complicadas. Quem me dera saber escrever essas histórias, mas nunca fui capaz de aprender, e tenho pena. Além de ser preciso escolher as palavras, faz falta um certo jeito de contar, uma maneira muito certa e muito explicada, uma paciência muito grande — e a mim falta-me pelo menos a paciência, do que peço desculpa.

(Saramago, 2001).

O conto deu origem a um curta-metragem espanhol, em 2006, realizado por Juan Pablo Etcheberry, narrado pelo próprio José Saramago e vencedor do Prêmio Goya, em 2007.

2 – O lagarto

Não é uma adaptação, como já ouvi por aí. É a crônica integral, retirada do livro A bagagem do viajante, publicado pela primeira vez no Brasil em 1996, com nova edição para este ano. Em forma de estrofes e com xilogravuras de José Francisco Borges, apareceu por aqui em 2016. Narra, de forma extraordinária, a misteriosa aparição de um lagarto no centro de uma cidade movimentada. Possibilita muitas interpretações por causa da presença alegórica.

De hoje não passa. Ando há muito tempo para contar uma história de fadas, mas isto de fadas foi chão que deu uvas, já ninguém acredita, e por mais que venha jurar e trejurar, o mais certo é rirem-se de mim. Afinal de contas, será minha simples palavra contra a troça de um milhão de habitantes. Pois vá o barco à água, que o remo logo se arranjará.  

(Saramago, 2016).

3 – O silêncio da água

Esse texto surgiu no livro As pequenas memórias, em 2006. A partir de um projeto em parceria com a Fundação José Saramago, foi publicado como conto em 2021. A edição brasileira apresenta ilustrações da espanhola Yolanda Mosquera. Do ponto de vista de um menino, o leitor acompanhará o relato de seu encontro com um peixe. Um acontecimento que, à primeira vista, parece banal, adquire um viés fantástico sob os olhos da infância.

Tinha eu ido com meus petrechos a pescar na foz do Almonda, chamávamos-lhe a “boca do rio”, onde por uma estreita língua de areia se passava nessa época ao Tejo, e ali estava, já o dia fazia as suas despedidas, sem que a boia de cortiça tivesse dado sinal de qualquer movimento subaquático, quando, de repente, sem ter passado antes por aquele tremor excitante que denuncia os tenteios do peixe mordiscando o isco, mergulhou de uma só vez nas profundas, quase me arrancando a cana das mãos.

(Saramago, 2022, p. 13)

4 – Uma luz inesperada

Publicado como crônica pela primeira vez no livro A bagagem do viajante, com o título “E também aqueles dias”, em 2021,  reaparece como conto. Nele também acompanhamos o ponto de vista de um menino já com seus doze anos, ao contar sobre uma ida que fez à feira de Santarém com o tio. O leitor é transportado a um mundo deslumbrante, existente apenas quando se é criança. As ilustrações são do mexicano Armando Fonseca.

E houve também aqueles dois gloriosos dias em que fui ajuda de pastor, e a noite de permeio, tão gloriosa como os dias. Perdoe-se a quem nasceu no campo, e dele foi levado cedo, esta insistente chamada que vem de longe e traz no seu silencioso apelo uma aura, uma coroa de sons, de luzes, de cheiros miraculosamente conservados intactos. O mito do paraíso perdido é o da infância — não há outro. O mais são realidades a conquistar, sonhadas no presente, guardadas no futuro inalcançável. E sem elas não sei o que faríamos hoje. Eu não o sei.

(Saramago, 2022, p. 6)

5 – A menina e o baloiço

Esta crônica e as próximas duas que vou indicar (6 e 7), estão no livro Deste mundo e do outro (1997, Caminho), com uma nova edição pela Fundação José Saramago, mas até o momento, sem publicação no Brasil — algo muito curioso, pois o volume está repleto de textos potencialmente exploráveis para o público infantil. Há textos que exploram os gêneros literários do universo do maravilhoso — contos de fadas, fábulas —, passando pelo fantástico até a ficção científica. A menina e o baloiço, por exemplo, é um texto que está no espaço do maravilhoso, pois nos transporta para um conto de fadas. Entretanto, o narrador moderniza o relato ao tratá-lo como um simples fato.

Quando chegou ao chão, ficou enrolada como um pequeno animal ou a casca de um fruto. O nevoeiro começou a dissipar-se devagar, rolando em volutas desmanchadas. Por entre elas, rompiam raios de sol. E de repente desapareceu. A menina olhou para cima. O baloiço lá estava, muito mais alto que antes, com a sua tábua de oiro e as cordas floridas. Mas não havia degraus.

(Saramago, 1997, p. 103)

6 – Alice e as maravilhas

Esse texto faz clara referência ao livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, mas pratica uma subversão para proporcionar ao leitor uma alegoria da passagem do tempo, tema recorrente nessa obra.

A história verdadeira não é bem como Lewis Carroll a contou. Nem Alice se chamava Alice. Não há sequer a certeza de o caso se ter passado com uma rapariga. Aliás, nem eu sei se a minha versão é toda ela exacta. É bom desconfiar do que se vê ou julga ver.

(Saramago, 1997, p. 105)

7 – Um azul para Marte

Essa crônica relata a ida do narrador ao planeta vermelho e serve como comparação com a Terra — o modo de vida e como se comportam os seres humanos em relação aos marcianos. Assim como os autores de ficção científica, Saramago apresentará ao leitor um ambiente estranho e imaginário a ser transformado num campo de novas ideias. A partir dessa narrativa, o escritor retrata tempos e espaços diferentes dos nossos, mas que podem se fazer presentes, pois partem de percepções importantes para as discussões sobre a sociedade contemporânea.

A noite passada fiz uma viagem a Marte. Passei lá dez anos (se a noite dura nos pólos seis meses, não sei por que não hão-de caber dez anos numa noite marciana) e tomei muitas notas a respeito da vida que lá se faz. Comprometi-me a não divulgar os segredos dos marcianos, mas vou faltar à minha palavra. Sou homem e desejo contribuir, na medida das minhas pequenas forças, para o progresso da humanidade a que me orgulho de pertencer. É muito importante este ponto. E espero, se algum dia me vierem pedir contas dos meus actos, isto é, do perjúrio cometido, que os não sei quanto bilhões de homens e mulheres que há na Terra tomem todos a minha defesa.

(Saramago, 1997, p. 195)

8 – Embargo

Este e os dois últimos contos que menciono nessa seleção (9 e 10), estão no livro Objecto quase (1978), com publicação no Brasil desde 1994. De acordo com José Saramago, os textos foram escritos “ao sabor das circunstâncias”, com uma proposta claramente contra a alienação. Em seu pensamento, alienação e morte são inseparáveis. Foi isso que procurou expressar nesse livro de contos. Com temas que dialogam com narrativas kafkianas, com as distopias e com os mitos, os contos a seguir são ideais para o público jovem.

Embargo se desenvolve no contexto referente à crise do petróleo ocorrida em 1973. A partir de uma atmosfera incerta, o leitor acompanha o protagonista em sua angustiante corrida para abastecer o carro.

Acordou com a sensação aguda de um sonho degolado e viu diante de si a chapa cinzenta e gelada da vidraça, o olho esquadrado da madrugada que entrava, lívido, cortado em cruz e escorrente de transpiração condensada. Pensou que a mulher esquecera de correr o cortinado ao deitar-se, e aborreceu-se: se não conseguisse voltar a dormir já, acabaria por ter o dia estragado.

(Saramago, 1994, p. 33)

9 – Centauro

Nesse conto, o leitor se depara com um relato que se aproxima da poesia e explora a mitologia clássica, começando pelo título. Acompanhando a trajetória de um centauro, aqui a literatura é valorizada como um dos principais territórios da imaginação, onde os sonhos são essenciais para a sobrevivência do humano.

Viu o cavaleiro ser atirado ao ar e depois um outro homem baixo e gordo acorrer, aos gritos, montado num burro. Ouviu que falavam numa língua que não entendia, e depois viu-os afastarem-se, o homem magro maltratado, e o homem gordo carpindo-se, o cavalo magro coxeando, e o burro indiferente. Pensou sair-lhes ao caminho para os ajudar, mas, tornando a olhar os moinhos, foi para eles a galope, e, postado diante do primeiro, decidiu vingar o homem que fora atirado do cavalo abaixo. Na sua língua natal, gritou: «Mesmo que tivesses mais braços do que o gigante Briareu, a mim haverias de o pagar.» Todos os moinhos ficaram com as asas despedaçadas e o centauro foi perseguido até à fronteira de um outro país. Atravessou campos desolados e chegou ao mar. Depois voltou para trás.

(Saramago, 1994, p. 113-114)

10 – Coisas

Coisas é um conto político sobre o que acontece quando “as coisas somos nós”. Aqui, o leitor acompanha o protagonista num ambiente onde se destaca o caos da tecnologia e os indivíduos são identificados por letras, seguindo uma hierarquização que os massifica numa atmosfera de absurdos.

O utente tirou a carteira do bolso e pôs o dinheiro necessário em cima do balcão. As notas eram rectângulos de material fino e flexível, de cor única mas com tonalidades diferentes, como diferentes eram também os pequenos rostos emblemáticos que as distinguiam. O funcionário contou-as. Quando as reunia para guardá-las no cofre, uma delas enrolou-se subitamente e apertou-lhe um dedo. O cliente disse:

— Sucedeu-me o mesmo hoje. A casa da moeda deveria ser mais rigorosa na fabricação das notas.

(Saramago, 1994, p. 71)

Reconhecimento de sua arte

No dia 8 de outubro de 1998, José Saramago se tornou o primeiro escritor em língua portuguesa a vencer o Nobel de Literatura. As singularidades de seu estilo, desenvolvido principalmente nos romances, exigem um leitor ativo, com quem ele gostava de imaginar ter uma relação especial, exigindo que esse leitor estivesse atento às coisas do mundo. Saramago acreditava que “o prodígio da literatura é a capacidade de chegar mais fundo na consciência dos leitores, mesmo se falando de uma outra coisa”. O que faz dele um grande autor é a capacidade de traduzir para seus leitores a realidade — por meio de alegorias e parábolas que se sustentam com imaginação, compaixão e muita ironia. “Se eu morrer antes de ti, peço-te que me vejas”, pediu Baltazar a Blimunda, personagens imortalizados na obra Memorial do convento (1982), que o consagrou como escritor. A Pilar, seu grande amor, José Saramago pediu: “continue-me”. Para continuar Saramago, compartilhemos com as crianças a sua obra.

Referências

SARAMAGO, José. Objecto Quase. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

______. A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

______. Deste mundo e do outro. Lisboa: Caminho, 1997.

______. As palavras de Saramago: catálogo de reflexões pessoais, literárias e políticas. Fernando Gómez Aguilera (sel. e org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

______. O lagarto. Xilogravura de J. Borges. — São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

______. A maior flor do mundo. Ilustrações de João Caetano. — São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

______. O silêncio da água. Ilustrações de Yolanda Mosquera. 2. ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

______. Uma luz inesperada. Ilustrações de Armando Fonseca. — São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

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