Criança precisa ser criança. Certamente você já escutou essa frase e, no sentido literal, concorda com a narrativa sem pensar duas vezes. Porém, quando analisamos as cenas e atitudes cotidianas, é possível identificar diversos contextos nos quais os pequenos são inseridos no mundo adulto de maneira muito naturalizada. Um exemplo simples é o uso da maquiagem infantil. “Que linda você está com esse batom.” “Quer usar a maquiagem da mamãe?” Essas são apenas algumas das falas comuns ditas às crianças, sem pensarmos no quanto elas podem estar relacionadas a imposições, a padrões estéticos e ao amadurecimento precoce. Tema complexo de ser discutido, por isso, o Clube Quindim conversou com a Tamires Timbó, psicóloga, que discorre um pouco sobre assunto e as percepções da nossa sociedade.

Clube Quindim: O uso em excesso de maquiagem infantil e outros acessórios antecipam um processo de amadurecimento da criança? Por quê?

Tamires Timbó: A infância é a etapa da vida em que se estrutura a base do que nós seremos. Nesse momento, construímos os nossos valores, que vão se refletir na fase adulta. Em relação à pergunta especificamente, primeiro precisamos entender o que é amadurecimento, que, por sua vez, está relacionado ao desenvolvimento da criança. Nesse caso, é necessário observar quatro aspectos: físico e motor, cognitivo e intelectual, emocional e afetivo, e social. Outro ponto muito importante relacionado diretamente à pergunta é lembrar, por mais que pareça óbvio, que a criança não é uma miniatura de um adulto. Por estarmos inseridos nesse mundo maduro, esquecemos que elas têm uma formação diferente da nossa em cada um desses quatro aspectos. 

O desenvolvimento nessas áreas vem de circunstâncias biológica, social e educacional. Ou seja, o amadurecimento depende de um contexto. O aspecto biológico é o ponto de partida para o desenvolvimento humano, mas ele vai se alterando conforme os pequenos se apropriam da cultura. O meio no qual estamos inseridos também interfere no desenvolvimento. Para acontecer o amadurecimento, é preciso passar da visão de criança para a de adulto em cada um dos quatro aspectos. E como vai acontecer isso? Por meio das experiências vividas ou imaginárias. 

O uso de maquiagem infantil, ou qualquer outro acessório, por exemplo, é uma experiência. E, sim, vai interferir no amadurecimento e crescimento durante a primeira infância. Esse é o momento de construção da base do indivíduo como um todo, de aprendizados, de valores e cultura. O cérebro está em formação, de acordo com o contexto ambiental. Tudo que acontece nessa primeira infância interfere de alguma forma. Não é definitivo, claro, mas tem o seu valor. Se o uso de maquiagens vem dentro de um contexto de brincar, ele está promovendo o amadurecimento. Nesse caso, é saudável. Agora, se a criança entende sua utilização como algo necessário para todos os dias, para ficar bonita ou receber elogios e, além disso, quando acontece atrelado ao valor da vaidade, é, sem dúvida, negativo. Por quê? Simples, porque estamos pulando etapas da infância, tirando a oportunidade de a criança aprender outras atividades relacionadas à sua idade.

CQ: Quais as consequências desse problema?

TT: Avaliando pelos aspectos do amadurecimento físico e motor, uma pessoa na primeira infância não possui ainda qualificações para utilizar maquiagem infantil ou usar salto alto, por exemplo. O sentimento de incapacidade, de não ser suficiente, ou passar por uma situação constrangedora quando as pessoas rirem pela maquiagem estar borrada, por exemplo, mexe também com a autoestima. Do ponto de vista cognitivo e intelectual, quando a criança acha que a vaidade é essencial, ela passa a agir como um adulto, sem ter a idade e desenvolvimento para isso. Essa postura, de pensar fora da etapa de vida dela, faz com que se percam situações da infância, já que ela está focada em um mundo adulto. Pode não se sentir à vontade com sua idade, não aproveitar as brincadeiras e momentos essenciais dessa fase. Os pequenos podem, até mesmo, sentir dificuldade em fazer amizades, pois não estarão confortáveis naquele mundo infantil. Do âmbito emocional e afetivo, incentivar o uso excessivo de maquiagens, muitas vezes, sexualiza a criança. E mais: quando ela só se sente bonita com esses produtos, automaticamente está procurando aprovação, admiração ou querendo agradar o outro.

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CQ: O incentivo de maquiagem infantil na primeira infância está relacionado a um padrão de beleza imposto por uma sociedade patriarcal? Por que e quais as consequências?

TT: Pergunta complexa. Aqui temos o conceito de padrão de beleza, de imposição, de sociedade patriarcal e de incentivo à maquiagem infantil. Comecemos com a base da pergunta, relacionada à sociedade patriarcal, que é doente. Ela cria um padrão para a mulher atender aos homens em alguns aspectos. Esses atributos, por sua vez, são outro problema, já que padronizam a “beleza” para uma quantidade infinita de mulheres, que, obviamente, possuem suas particularidades. Em uma sociedade patriarcal, há somente o papel feminino e o masculino, não trazendo a infância, muito menos a primeira infância à tona. A mulher, então, possui um padrão a seguir, independentemente da idade. Portanto, a criança já nasce ocupando o papel de mulher. E, mais uma vez, elas não são adultas. Por isso, acredito que, sim, o incentivo a maquiagens na infância pode ter relação à sociedade patriarcal. Acho que não é a única realidade existente, mas quando nos referimos a essa sociedade doente, é natural, dentro do contexto, que ela figure no contexto negativo e promova as consequências ruins já citadas.

CQ: Qual mundo ideal, na sua opinião, em relação ao uso de maquiagem infantil?

TT: Deveríamos ter uma sociedade na qual a gente consiga viver sem desrespeitar as individualidades de cada um. Como isso ainda está um pouco longe de acontecer, falando dentro do que vivemos, o ideal seria que a maquiagem, em específico, fosse vista pela criança como uma brincadeira, não como obrigação. E que a beleza não estivesse veiculada ao estar arrumada. Hoje, quando vemos uma criança maquiada, elogiamos, achamos fofo e bonito. Porém, ela está sendo adultizada, estamos naturalizando essas cenas. O mundo ideal, sem dúvida, é uma sociedade que promova a autonomia e a individualidade dos pequenos.

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CQ: Por fim, você acha que a cobrança estética tem efeitos negativos na saúde mental das crianças?

TT: Quando falamos de cobrança estética, estamos relacionando a um padrão ideal. E tudo que segue nesse sentido, sem levar em consideração o indivíduo, terá um efeito negativo na saúde mental. Isso porque esse padrão é inalcançável para 99% da população. A gente vive em uma sociedade que promove comparações e tenta encaixar todos os perfis a um único modelo, levando a uma saúde mental deficitária. Somos frutos de uma sociedade doente, mas não significa que precisamos odiar tudo que vem dela. É necessário questionar para mudar os processos, acolher os ensinamentos e bases. Hoje, podemos olhar diferente para as situações e ressignificá-las, até mesmo em relação à beleza. Isso é possível quando tiramos do âmbito de obrigação e trazemos como uma forma de autocuidado.  

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